Sessenta anos do suicídio de Hemingway
“Todo homem é a partícula de um continente“, escreveu John Donne, cujo poema inspirou o título de um dos livros mais famosos de Ernest Hemingway. “Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.
Em 2 de julho, há 60 anos, os sinos dobravam pelo suicídio de Hemingway e, com esta perda, dobravam também por toda a humanidade. Esta humanidade que ele tanto amou, tanto defendeu e tão bem retratou em sua literatura.
O mais literato dos jornalistas ou o mais jornalista dos literatos do século 20 optou por não passar pelas cadeiras da universidade, mas vivenciou as duas grandes guerras mundiais e a Guerra Civil Espanhola. Imaginemos quantas universidades isso vale.
Conhecer a obra de Hemingway diz respeito à necessidade de termos acesso à boa literatura. Sua forma de escrever foi revolucionária e carrega características do estilo jornalístico nascido nos Estados Unidos: rápido, objetivo, conciso, indo direto ao ponto.
Assim como o fruto da obra de outros gênios, de diversas outras áreas, o texto de Hemingway é o resultado do trabalho de um homem extremamente talentoso somado ao tempo em que ele viveu. Um tempo convulsivo, de guerras, revolução, grandes crises e imperialismo. Em seus livros, podemos perceber a habilidade de um repórter que tem pouquíssimas palavras para telegrafar notícias extraordinárias. E este estilo é sustentado por ele seja em 120 páginas de “O velho e o mar” ou em 620 páginas de “Por quem os sinos dobram”.
Na pequena homenagem que prestamos com este texto não temos o objetivo de discutir, analisar as posições políticas, por vezes confusas, do homem Hemingway, tampouco de avaliar moralmente sua vida boêmia, amorosa ou as circunstâncias de sua morte – ainda que toda a sua vida tenha sido muito excêntrica. Nossa homenagem vai ao encontro do que diz Otto Maria Carpeaux:
“Hemingway é um artista que sonha com a ação, sem capacidade de encontrar sentido fora da arte. Mas dentro de sua arte realizou, se não obras perfeitas – isso não é próprio dos românticos – pelo menos algumas páginas nas quais uma experiência profundamente humana está transfigurada em palavras de concisão clássica; as últimas páginas de ‘A farewell to arms’ são das mais perfeitas que já se escreveram no século XX.”
Hemingway ganhou notoriedade em 1926 após escrever “O sol também se levanta”, obra aclamada pela crítica na ocasião. Mas é “Adeus às armas”, de 1929, o livro que foi considerado o melhor romance ambientado na guerra e que chegou a ser apontado por muitos como o melhor romance escrito por um americano. Seu título é inspirado em Barnabe Rich, fonte da peça de teatro de William Shakespeare “Noite de Reis”, no original “Twelfth Night, Or What You Will”.
Hemingway gostava muito de voltar aos clássicos em seus títulos e em grande parte deles usou uma dose de ironia, salvo em “Por quem os sinos dobram”. O livro “Adeus às armas” é a história de um amor de guerra, onde encontramos, em diálogos rápidos, história, geografia, filosofia, medos, horrores, amores, na mais veloz fluência de seu estilo.
A obra, sem dúvida, é inspirada na própria vida do autor, que foi motorista da Cruz Vermelha na Primeira Guerra. Mas, por certo, ela vai muito além de ser um retrato autobiográfico. Como costuma-se afirmar, na literatura é tudo verdade, mas fundamentalmente é tudo inventado. Ou, nas palavras de Trotsky: “A arte, direta ou indiretamente, reflete a vida dos homens que fazem ou vivem os acontecimentos”.
Em “Adeus às armas” vamos do desejo de uma noite de amor…
“[…] e a porta fechada e o calor e apenas um lençol na cama e a noite inteira nos amaríamos no calor noturno de Milão”.
… Ao mais realista dos relatos do front, que tomamos a liberdade de reproduzir aqui para aguçar a vontade dos leitores:
“Consegui me mexer, finalmente, e soltar as pernas. Por fim, quando me arrastei para o lado, esbarrei nele. Era Passini, e, quando esbarrei nele, soltou um berro. Suas pernas estavam voltadas para mim e vi, na penumbra pontilhada de clarões, que estavam esmagadas acima dos joelhos. Uma perna havia sido totalmente separada, e a outra estava presa pelos tendões e parte da calça, com o toco mexendo-se, contraindo-se, como se não estivesse ligado ao resto. Passini mordia o braço e chorava: ‘O, Mamma mia Mamma mia’ ou ‘Dio te salve, Maria. Dio te salve, Maria. Ó Jesus, mate-me. Jesus, mate-me, Mamma mia, Mamma mia Mate-me, Maria. Pare com isso. Pare com isso. O, Jesus, ó. Maria, parem com isso. Ai, ai, ai…’ E, abafadamente, ‘Mamma mia, Mamma mia’. Depois, parou quieto, mordendo o braço e com o toco da perna a repuxar-se. – Porta feriti! de voz. – Porta feriti! Tentei me aproximar mais de Passini para ajustar-lhe ao toco de perna um torniquete, mas não consegui me mover. Tentei de novo, e minhas pernas se mexeram um pouco. Pude então me arrastar para trás, com a ajuda de meus braços e cotovelos. Passini aquietara-se. Sentei-me ao seu lado, abri minha túnica e tentei rasgar um pedaço da fralda da camisa; não consegui. Tentei então romper a bainha com os dentes. Depois me lembrei das perneiras de Passini. Eu estava com meias de lã, mas Passini usava perneiras. Todos os motoristas usavam perneiras e, como ele estava só com uma perna, eu poderia aproveitar a faixa da perneira da perna cortada. Desenrolei a faixa, mas, ao fazê-lo, percebi que o torniquete era inútil porque Passini já estava morto. Certifiquei-me então de que ele morrera e tentei localizar os outros três motoristas. Consegui ajeitar meu corpo sentado e, ao fazer isso, qualquer coisa dentro de minha cabeça moveu-se, como aqueles trapesos internos dos olhos das bonecas, e bateu-me lá pelo lado de dentro contra as órbitas dos olhos.
Em 1940, Hemingway publicou “Por quem os sinos dobram”, um livro ambientado na Guerra Civil Espanhola, que está – também – entre as suas obras mais aclamadas. Nele, a personagem principal é Robert Jordan, um professor norte americano voluntário na Brigada Internacional que apoiava os republicanos.
A missão de Jordan é explodir uma ponte e, para isso, encontra apoio em um grupo de guerrilheiros republicanos. A história se passa em apenas três dias, nos quais ele se apaixona perdidamente por Maria – uma moça violentada pelos fascistas – e conhece personagens intensos, como a cigana Pilar, Pablo e Anselmo.
Há neste livro uma das passagens mais marcantes da literatura. Pilar conta a Robert e Maria como o movimento revolucionário começou na sua pequena cidade espanhola: com uma matança organizada pelo seu companheiro Pablo. É uma cena forte, sobre como camponeses ébrios de vinho e de raiva de classe prenderam, espancaram, humilharam e mataram os fascistas da cidade.
Os leitores desavisados poderiam apreender desta cena lições pacifistas – sobretudo contra a guerra civil, que é a mais violenta das guerras. Mas não podemos realmente compreender o que Hemingway quis contar lendo-o com uma moralidade burguesa e cristã. Na verdade, por meio da história relatada por Pilar, ele retrata nua e cruamente a fúria de um povo que se levanta após séculos de exploração e sofrimento.
Assim como em “Adeus às armas”, percebemos na construção dos protagonistas de Hemingway várias pitadas de autobiografia. O autor viveu na Espanha por quatro anos, onde trabalhou como correspondente de guerra em Madri e assumiu posição ao lado dos republicanos. Sim, Hemingway foi destes grandes jornalistas que tiveram a coragem de escolher um lado, sem a hipocrisia acadêmica da imparcialidade. Não é à toa também que Cuba foi o país escolhido por ele para viver e morrer.
Em 1954, Ernest (nascido nos EUA) ganha o Nobel de Literatura e, em uma das entrevistas, afirma que está muito feliz por ser o primeiro cubano a ganhar o prêmio, tamanha era a intimidade do escritor com a ilha. Esta intimidade foi sensivelmente descrita nas impecáveis páginas de “O Velho e o Mar”.
Ambientado em Cuba, este livro conta a história de Santiago e sua odisseia com um peixe gigante. O solilóquio de Santiago em uma das pescarias é magnífico, nervoso, ágil e explora todos os limites da racionalidade humana e todas as possibilidades físicas do homem com a natureza. O título deste texto é uma reflexão de Santiago dentre as inúmeras as que o livro nos leva.
A relação de Cuba com Hemingway está cristalizada em incontáveis símbolos e locais da ilha, vai dos drinks às estátuas, dos livros aos museus. O gigante da atualidade Leonardo Padura prestou sua homenagem no livro “Adeus, Hemingway”, colocando seu personagem mais conhecido Mário Conde para investigar um cadáver no terreno do sítio que era de Hemingway. Conde só aceita voltar ao trabalho porque o caso envolve, de alguma maneira, Ernest, escritor que ele conheceu quando criança e admira.
Ernest Hemingway já é um clássico, pois como diz Italo Calvino: “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”.
Sem dúvida, a vida e a obra deste autor são inesquecíveis. E a mais valiosa homenagem que podemos prestar a ele nesses 60 anos da sua morte é lê-lo. Leiam Hemingnway, inspirem-se na sua escrita e no seu profundo amor pela humanidade!
“Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”. (John Donne)
Francine Hellmann é jornalista e militante da Esquerda Marxista, Maritania Camargo é professora de literatura e militante da Esquerda Marxista.