A vitória esmagadora de José Antonio Kast no segundo turno das eleições chilenas, em 14 de dezembro de 2025, não é um acidente político, mas o resultado lógico e previsível de um ciclo aberto com a chegada ao poder de Gabriel Boric. O candidato de extrema-direita obteve cerca de 58% dos votos válidos, contra 42% da candidata oficialista Jeannette Jara, uma derrota histórica para a esquerda chilena. Este desfecho representa o ponto final de um governo que, nascido das esperanças da revolta de classe de outubro de 2019, se transformou em seu antípoda: um gestor da ordem capitalista que, ao tentar conciliar classes irreconciliáveis, desarmou politicamente os trabalhadores, frustrou suas expectativas e pavimentou o caminho para a vitória de Kast.
O governo de conciliação de classes: a trajetória do desencanto
A coalizão Apruebo Dignidad chegou ao poder em 2021 com a promessa de ser “a tumba do neoliberalismo” e realizar as transformações estruturais demandadas nas ruas. No entanto, desde o primeiro dia, Boric revelou-se um governante de conciliação de classes. Sua estratégia foi a de apaziguar os mercados e a burguesia, nomeando figuras da antiga “Concertación” (coalizão de partidos social-democratas) para pastas-chave, como a Fazenda, e insistindo em um discurso de “responsabilidade fiscal”. A mensagem ao grande capital foi clara: “a fratura social precisa ser sanada para que o país possa crescer”.
Essa orientação levou ao abandono progressivo de seu programa. Promessas como o fim das Administradoras de Fundos de Pensões (AFP) transformaram-se em reformas complexas e de implementação gradual, que mantiveram o núcleo do sistema privado. A lei das 40 horas, uma demanda histórica, foi aprovada com flexibilizações que beneficiam os patrões.
Adoção da Agenda da Direita: incapaz de melhorar materialmente a vida da população, com 70% dos novos empregos criados sob seu governo sendo precários, e pressionado pela estagnação econômica, Boric adotou a agenda de segurança pública da direita. A promulgação da Lei Nain-Retamal (2023), que concede “legítima defesa privilegiada” aos Carabineiros, foi o símbolo máximo dessa capitulação. O governo que surgiu contra a repressão passou a gerir e ampliar o aparato repressivo do Estado, mantendo a militarização do Wallmapu e a Lei Antiterrorista.
A frustração popular foi reflexo de uma economia estagnada para a maioria: o desemprego manteve-se alto e a sensação de insegurança, longe de diminuir, intensificou-se. O “programa transformador” mostrou-se um conjunto de meias-medidas que não enfrentou o poder dos grandes grupos econômicos, das AFP ou das mineradoras.
Este reformismo sem reformas, ao vender a ideia de que era possível mudar o sistema por meio de acordos com a própria burguesia, mostrou-se incapaz. Sua principal consequência foi a desmobilização e a desilusão de sua base social. Os trabalhadores e jovens que levaram Boric ao poder viram-se sem um instrumento político para suas lutas, enquanto a direita, fortalecida, preparava o contra-ataque.
A punição nas urnas
A desilusão transformou-se em punição eleitoral. O primeiro turno, em novembro, já indicava um deslocamento massivo do eleitorado para a direita. A soma dos votos dos candidatos explicitamente de direita (Kast, Parisi e Kaiser) e da centro-direita (Matthei) superou 70% do total. Jeannette Jara, ministra do Trabalho de Boric, obteve apenas 26,85%, uma votação pífia para um oficialismo.
O segundo turno consagrou essa tendência. Kast não apenas venceu, mas o fez em todas as regiões do país, demonstrando uma penetração nacional inédita para a extrema-direita. O voto obrigatório, reintroduzido em 2022, mobilizou uma nova massa eleitoral que, desencantada com a “esquerda no poder”, foi capturada pelo discurso simplista e de “mão de ferro” de Kast contra o crime e a imigração, similar ao que ocorreu no Brasil em 2018. A candidata oficialista, tentando disputar esse terreno, moderou ainda mais suas propostas e adotou a agenda do adversário, o que apenas confundiu seu eleitorado e legitimou o discurso reacionário.
Kast soube capitalizar o apoio das outras alas da direita, recebendo o apoio público de Johannes Kaiser, do Partido Nacional Libertário, e da representante da direita tradicional, Evelyn Matthei. Enquanto isso, Jara não conseguiu unificar de forma efetiva a esquerda, que chegou fragmentada e desmotivada ao pleito. A vitória de Kast, portanto, é menos um endosso entusiástico ao seu projeto ultradireitista e mais um voto de protesto massivo e punitivo contra um governo que prometeu mudanças e entregou continuidade, que nasceu da mobilização e governou pela repressão.
Lições para o Brasil: o perigo do vazio à esquerda
O caso chileno ressoa como um alerta grave para a esquerda brasileira e internacional. A experiência de Boric demonstra, de forma cristalina, que o reformismo dentro dos marcos do capitalismo é uma falsa saída; que tentar administrar o Estado burguês “de forma responsável” não leva a transformações, mas à assimilação pelo próprio sistema. A conciliação de classes desarma ideológica e organizativamente a classe trabalhadora, deixando-a vulnerável quando a crise se aprofunda.
Ao adotar a pauta da segurança pública da direita, o governo Boric não conquistou seus votos; apenas normalizou e amplificou seu discurso. O debate público passou a ser sobre como reprimir, e não sobre por que superar as condições sociais que geram a violência.
A frustração popular não evapora; é capitalizada pela direita. Quando um governo de esquerda falha em atender às demandas materiais (emprego, salário, saúde, educação) e à sede por mudança real, a ira popular não desaparece: ela é redirecionada e canalizada por demagogos de direita, que oferecem bodes expiatórios (imigrantes, “criminosos”) e soluções autoritárias.
No Brasil, onde Bolsonaro e a direita foram eleitoralmente destituídos, mas não desarticulados, a lição é clara. A simples gestão “responsável” e os acordos com o centrão não serão suficientes para conter um retorno do bolsonarismo, mesmo que na figura de outro candidato. Pelo contrário, podem reproduzir o mesmo desgaste. É necessário construir uma alternativa política clara e independente, que retome o programa das ruas: não uma gestão mais “humana” do capitalismo, mas sua superação por meio da organização e da ação direta da classe trabalhadora.
A vitória de Kast não é o fim da história. Seu governo, com um Congresso fragmentado e um programa de cortes brutais e repressão, enfrentará contradições agudas e provavelmente aprofundará a crise social. A tarefa dos comunistas internacionalistas, no Chile e no Brasil, é aprender com esses erros trágicos, romper com a ilusão reformista e preparar-se para as lutas que virão, confiando apenas na força organizada da classe trabalhadora.
Organização Comunista Internacionalista (Esquerda Marxista) Corrente Marxista Internacional