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Ensaio dialético sobre a Pandemia

Desde os tempos mais remotos os homines sapiens demens (humanos) se relacionam com a natureza não só por serem seres da natureza, mas por serem seres que dependem dela para existir/viver. Pensada pela perspectiva dialética, esta relação entre ser humano e natureza acontece através da negação/contradição da natureza em seu estado bruto pelo trabalho realizado pelo ser humano. Desta negação/contradição, acontece a superação cujo resultado é a sociedade. Ou seja, a natureza em seu estado ‘puro’ é negada na medida em que ela precisa ser transformada, através do trabalho, para a sobrevivência humana cujo resultado é a organização social.

O início dessa relação se deu, segundo Engels (1979), quando “depois de lutas milenares, se fixou a diferenciação da mão e do pé, donde resultou o caminhar ereto, o homem se tornou diferente do mono; constitui-se o fundamento do desenvolvimento da linguagem articulada e da formidável expansão do cérebro (…). A especialização da mão: ela significa a ferramenta; e a ferramenta significa a tarefa especificamente humana, a reação transformadora do homem sobre a Natureza, sobre a produção” (ENGELS, 1979, p. 25). Assim, é dessa relação, em que o ser humano nega a natureza (tese) pelo trabalho (antítese) que se origina a sociedade (síntese). Daí, novas contradições entre sociedade e natureza surgirão e estas deverão ser superadas resultando, assim, na espiral das transformações/desenvolvimento das organizações sociais e dos seres humanos.

Ao negar a natureza em seu estado bruto o ser humano a transforma e ao transformá-la transforma a si próprio pois, é na modificação da natureza que se encontra a base essencial e imediata do pensamento humano e, na medida em que o ser humano foi aprendendo a transformar a natureza sua inteligência foi crescendo (ENGELS, 1979). Assim, elementos da floresta – galhos, gravetos, troncos – se tornam ferramentas –arco, flecha, lança. A pedra foi lascada e transformada em ponta de lança/flecha, machado. As árvores, transformadas em canoas, cabana, oca, casa. Os animais caçados, transformados em alimentos e seus pelos e couros transformados em vestimentas. As penas das aves, transformadas em cocar e, tudo isso, única e exclusivamente pela ação eminentemente humana: o trabalho, ou seja, o ato de transformar matéria-prima em produto útil com o uso de ferramentas e gasto de energia.

Neste processo ainda não há separação entre trabalhador/produtor e consumidor. Os produtos não se fundamentam no valor-de-troca. Como dizia Marx, “o trabalho como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade – é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana” (MARX, 1982, p. 50). Assim, o trabalhador/produtor é também consumidor e o objetivo do produto não é outro se não a satisfação das necessidades existenciais dos que juntos vivem. Neste sentido o trabalho (processo em que participam o ser humano e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona e controla o seu metabolismo material com a natureza) e o fruto do trabalho são, eminentemente, sociais. A natureza, entretanto, não cria os possuidores de dinheiro e de mercadoria de um lado e, de outro, os meros possuidores da força de trabalho. Esta separação não tem origem na natureza, nem é uma relação social comum a todos os períodos históricos.

O aparecimento do produto sob a forma de mercadoria supõe uma divisão do trabalho e o capital só aparece quando “o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre no mercado vendendo sua força de trabalho, e esta única condição histórica determina um período da história da humanidade” (MARX, 1982, p. 190), o capitalismo. Neste modo de produção, o trabalhador/produtor é separado do consumidor. Os produtos deixam de ter o objetivo de satisfazer as necessidades e passam a ser mercadorias cujo objetivo é a constante obtenção de mais lucro.  Para isso, novas e poderosas tecnologias separarão, cada vez mais, os trabalhadores dos meios de produção e os seus proprietários, por sua vez, concentrarão mais e mais riquezas e novas contradições deverão ser superadas pois, o ser humano “conseguiu imprimir seu selo sobre a Natureza, não só trasladando plantas e animais, mas também modificando o aspecto, o clima de seu lugar de habitação; e até transformando plantas e animais em tão elevado grau que as consequências de sua atividade só poderão desaparecer com a morte da esfera terrestre” (ENGELS, 1979, p. 25).

Os capitalistas, na sua constante busca por mais lucro (o lucro desse ano tem que ser maior que o do ano passado, mas, necessariamente, menor que do próximo ano), criam megaempresas urbanas e rurais com tecnologias caras e de alto impacto ambiental. Assim, as Indústrias de alimentos se utilizam de conservantes, aditivos, corantes, sódio, emulsificantes, gordura anidra, polifosfato de sódio e várias outras substâncias que trazem em si contradições e, por isso, provocam males a saúde humana, mas, com certeza, não acarreta nenhum prejuízo ao lucro do capitalista em um curto período de tempo. Cabe aqui esclarecer que no capitalismo, as tecnologias foram e são apropriadas pelos capitalistas para terem seus lucros ampliados. As tecnologias desenvolvidas não têm outro objetivo se não a busca do lucro. Nos países em que a economia foi planificada, e essa é uma contradição que ainda deverá ser superada, as tecnologias efetivadas não romperam com as tecnologias capitalistas, mas, elas foram, apenas adaptadas e utilizadas na nova realidade de produção.

Agora, as mercadorias alimentos não resultam mais de uma simples relação com a natureza. Agora a agroindústria dita a quantidade e o ritmo da produção que deve ser sempre maior em menor tempo e dita, também, o tipo de relação com a natureza e novas contradições terão que ser superadas. No intuito de aumentar a produção de carne, leite e derivados, a agroindústria se utiliza de estratégias cruéis para com os animais; usa anabolizantes e hormônios que podem deixar animais doentes – caso da vaca louca. Inventam novos animais geneticamente transformados (chester, por exemplo), produzidos em questão de meses, abatidos, processados e transportado para todas as partes do planeta.

As contradições dessa realidade capitalista podem ser observadas em várias situações como as manifestadas pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), em seu relatório intitulado “word livestock 2013: changing disease landscapes” (Pecuária Mundial 2013: mudando o panorama das doenças), onde dizia que com a natureza alterada a possibilidade de ser ter novas doenças são maiores e, com a globalização há a possibilidade ainda maior de novos vírus se espalharem, como já havia ocorrido com as gripes aviárias e suínas. Menos conhecidos são os patógenos mortais que sofrem mutações e que emergem desses agro-ambientes especializados. De fato, muitas das novas doenças mais perigosas nos seres humanos podem ser encontradas em sistemas alimentares, entre eles Campylobacter , vírus Nipah, febre Q, hepatite E e uma grande variedade de novas variantes de influenza (WALLACE, 2016). Tais efeitos são parte efetiva das contradições da sociedade (tese) que transforma a natureza (antítese) favorecendo novas doenças (síntese) e, é aí, na contradição entre sociedade capitalista e natureza que deve ser encontrada a origem do coronavírus (Covid-19).

Para Cida de Oliveira, da Rede Brasil Atual, o modelo de produção efetivado pelo capitalismo contemporâneo “espalha vírus selvagens mortais para organismos adoecidos por alimentos cheios de açucares, gorduras e agrotóxicos” colocando em risco a vida de milhões e até bilhões de homines sapiens demens sendo este risco, considerado pela agroindústria, um risco que vale a pena pois, sua centralidade é sempre mais lucro. Se antes os vírus e suas infecções se espalhavam na e pela floresta, agora eles se propagam por populações humanas vulneráveis intensificadas pelas atividades humanas. Para Wallace (2020), “o aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à produção de alimentos e à lucratividade das empresas multinacionais. Qualquer pessoa que pretenda entender por que os vírus estão se tornando mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção pecuária.

O capitalismo está, constantemente, em busca de novas terras atingindo as florestas para transformá-las em pastagens ou em plantio. Essas práticas impulsionam o desmatamento e o desenvolvimento em todo o mundo proporcionando o surgimento de mais e novas doenças. Na medida que a produção industrial de suínos, aves e afins se expande para a floresta primária, ela “pressiona os operadores de alimentos silvestres a se aprofundarem na floresta em busca de populações de origem, aumentando a interface e a propagação de novos patógenos, incluindo o Covid-19” (WALLACE, 2020).  Assim, o capitalismo (tese) proporciona a constituição de novas doenças (antítese) que precisam ser superadas (síntese). Porém, a superação efetiva das contradições oriundas da organização capitalista de produção só virá, efetivamente, com o seu fim, ou seja, com o socialismo (nova tese), cujas contradições (antítese) e superações (síntese) serão objetos de um outro ensaio.

Referências:

ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979

MARX, Karl. O capital Livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: DIFEL, 1982

REDE BRASIL ATUAL. https://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/2020/04/coronavirus-agronegocio-modelo-predatorio/ Acesso: 03/04/2020 e 06/04/2020

WALLACE, Rob. Big farms make flu: dispatches on infectious disease, agribusiness, and the nature of science. New York: Monthly Review Press, 2016. (Conferir REVISTA MENSAL – https://monthlyreview.org/product/big_farms_make_big_flu/ acesso: 07/04/2020

WALLACE, Rob. Entrevista ao Site alemão Marx 21 em 11 de março de 2020. https://www.marx21.de/coronavirus-agribusiness-would-risk-millions-of-deaths/ Acesso: 11/04/2020