Entre ameaças bolsonaristas e defensores do Estado de Direito

A marcha dos acontecimentos está empurrando a classe trabalhadora brasileira para uma escolha entre duas opções nesta campanha eleitoral. Uma delas é representada por Jair Bolsonaro, significando a continuidade da política ultraliberal praticada em seu primeiro mandato, com a adição de novos dispositivos autoritários e repressivos. Outra alternativa gira em torno da figura de Lula, que propõe retomar a trilha interrompida em 2016 com o impeachment, formar um governo de união nacional para defender o Estado saído da Constituição de 1988. Há, entretanto, outra opção, uma verdadeira terceira via. Trata-se de posicionar-se nestas eleições com uma política de independência de classe, baseada nos trabalhadores do país, abrindo caminho entre as duas opções hegemônicas.

Empresários golpistas e democráticos

Várias frações da burguesia brasileira já fizeram suas escolhas e estão em luta para garantir que suas apostas vençam a disputa. Um desses setores está representado pelo grupo de empresários denunciados por discutir e apoiar as ameaças bolsonaristas de ruptura institucional. São gente da estirpe do caricato Luciano Hang, explorador notório dos trabalhadores da rede de lojas de departamento Havan, e de Afrânio Barreira Filho, proprietário da rede de restaurantes Coco Bambu. Esses e outros capitalistas consideram que o melhor caminho para a economia passa por entabular um golpe de Estado que dê plenos poderes para Bolsonaro aplicar seus planos. Alguns deles inclusive defendem que isso deveria ter sido feito já em 2019.

Outro setor é aquele expresso pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, que orquestra o inquérito cujas operações atingiram esse último grupo semana passada. Alexandre começou e desenvolveu sua trajetória política amparado pelo atual candidato a vice-presidente de Lula, Geraldo Alckmin. Foi desse mesmo grupo político que surgiu outra figura que esteve nos holofotes neste mês de agosto, o doutor José Carlos Dias. Esse foi o porta-voz escolhido para ler a carta preparada pela Fiesp e pela Febraban intitulada “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, no pátio da Faculdade de Direito da USP, no dia 11 de agosto. Assim como Alexandre, José também foi secretário de segurança pública do Estado de São Paulo e ministro da justiça. Suas atividades ocorreram respectivamente durante a gestão de Franco Montoro, iniciada em 1983 e que marcou o começo da dinastia oligárquica que até hoje controla o Estado, e durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso.

Acontece que a burguesia que essas alas representam, enquanto classe social, representa uma ínfima minoria do eleitorado. O sufrágio universal instituído no Brasil obriga que a classe dominante precise difundir seus interesses particulares, seu programa político, sobre uma aparência de interesse geral e comum à toda a sociedade. Para alcançar esse propósito este ano o Estado vai disponibilizar um valor recorde, de mais de R$ 6 bilhões de reais, para partidos e candidatos gastarem durante as eleições deste ano, via fundos eleitoral e partidário. Por meio desse e de outros meios, os ricos tutoram a política nacional e vão integrando a seu Estado e corrompendo toda a vida pública do país, seja de setores de direita ou de esquerda.

A ideologia dominante opera justamente nesse campo e por esses meandros, cumprindo o papel de alcançar uma determinada hegemonia que faça prevalecer sobre a maioria uma dominação mais ou menos pacífica. Em momentos de instabilidade política, como o experimentado nestas eleições, a mesma ideologia serve para disputar as massas para uma ou outra opção apontada por frações da classe dominante como solução para seus próprios problemas. Na busca por efetivar seus planos, cada setor burguês recruta seus ideólogos, seus comunicadores, seus funcionários, seus agentes e seus porta-vozes.

11 de agosto e a união nacional

Duas datas permitem compreender as saídas burguesas em disputa: o 11 de agosto e o 7 de setembro. As duas alas da classe dominante em evidência se debatem sobre os mesmos problemas. Um se trata de como aumentar a extração de mais-valia do proletariado, ou seja, de reduzir o custo do trabalho, diante da deprimente situação econômica brasileira. O outro diz respeito a como lidar com a desmoralização das instituições da Nova República pactuada em 1988 e com o descolamento cada vez maior entre si própria enquanto classe e seus representantes políticos. 

Aquela parte da burguesia que se agrupou em torno das cartas em defesa do Estado de Direito fez sua aposta. Ela acredita que o melhor modo para responder aos seus problemas de classe passa por criar um governo de união nacional para salvar as instituições de seu Estado e implementar as políticas necessárias para alavancar sua acumulação de capital. Por isso, o porta-voz autorizado da classe dominante José Carlos Dias declarou emocionado em 11 de agosto: “Hoje é um outro momento, um momento grandioso, eu diria talvez inédito, em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia. Acho que nós estamos celebrando aqui, com alegria, com entusiasmo, com esperança e com certeza, o hino da democracia”.

A candidatura presidencial que se apresenta como capaz de realizar essa tarefa de “unir capital e trabalho” é a da chapa encabeçada por Lula com o vice Alckmin. Evidentemente que, como tal “união” é uma construção ideológica, portanto falsa, seu efeito prático é a subordinação do “trabalho” ao “capital”, a dominação sobre formas democráticas da maioria da população pelos banqueiros e capitalistas. Vencendo essa proposta, essa fração burguesa acredita ter condições de implementar suas políticas neutralizando o movimento operário e estudantil. O fiel garantidor dessa condição são as direções do PT e do PCdoB, que controlam respectivamente as direções da CUT e da UNE. 

A traição política dessas lideranças é tão grande que, além de assinar as cartas preparadas pela Fiesp e a Febraban, aceitaram uma garantia extra. Ao colocar Alckmin como vice-presidente, Lula não apenas informa que pretende governar para o capital, como concede uma salvaguarda para a burguesia. A classe dominante tanto poderá ter um dos seus no governo do país em caso de morte de Lula, como também pode retirá-lo por vias legais. A campanha “Em defesa do Estado Democrático de Direito” cumpriu assim o papel de agrupar as frações burguesas favoráveis a reabilitar a política de colaboração de classes – rompida com o impeachment de 2016 – e de mostrar que os dirigentes das principais organizações e partidos de esquerda estão dispostos a agir para garanti-la.

Reabilitação da colaboração de classes

Estamos diante de uma campanha ideológica intensa sobre as massas trabalhadoras do país, tentando incutir nelas uma “consciência cívica” e um “espírito cívico”. Essa está sendo a tônica não apenas das reportagens da imprensa burguesa, dos comentaristas políticos e das personalidades públicas do país. Também faz eco nos discursos e nas mobilizações da burocracia sindical e dos líderes oportunistas nos sindicatos, nas entidades estudantis, nas manifestações e os candidatos de esquerda a eles ligados.

Tentam convencer nossa classe a somar-se à campanha que fazem em defesa do sistema e de suas instituições reacionárias. Associam um governo Lula controlado pelo capital e limitado pelo sistema político com recuperação do poder de compra, reversão da destruição dos serviços públicos e estabelecimento de condições dignas de vida.

A classe trabalhadora e os estudantes cogitam sim valer-se da via eleitoral para livrar-se do governo Bolsonaro e resolver os problemas que associam a ele. Porém, cada passo de Lula, da direção do PT e do PCdoB dado em direção aos empresários, aos políticos e aos partidos do sistema, é percebido pelo eleitorado como uma sinalização de que também essa candidatura não lhes serve. 

Apesar de todas as pesquisas de intenção de voto indicarem a vitória de Lula, observa-se uma dificuldade em continuar seu crescimento e uma recuperação de terreno por parte de Bolsonaro. Essa situação se deve a uma crescente desconfiança das massas em relação à chapa Lula/Alckmin. O motor profundo desse sentimento diz respeito não às fake news ou às manobras eleitorais do governo, por mais que essas tenham seus efeitos. Trata-se no fundo de uma sabotagem operada pela própria candidatura petista.

As massas intuitivamente percebem que os oportunistas falam em seu nome, mas se comprometem a implementar um capitalismo de face humana.  Elas estão em busca de saídas radicais para sua condição. Lula e as direções do PT e do PCdoB, ao tentarem reeditar sua fórmula de governo de aliança com os capitalistas e os políticos do sistema, colocam-se na contramão do espírito que se desenvolve entre a população brasileira.

7 de setembro e fôlego de Bolsonaro

Bolsonaro ganha musculatura eleitoral e margem para suas articulações preparatórias para 7 de setembro devido à debilidade política do programa e da campanha da chapa Lula/Alckmin. Isso não significa que o eleitorado está convergindo ativamente para a manutenção do atual governo, ou de que o “fascismo” está se fortalecendo no país, como alertam há 4 anos os impressionistas de esquerda. Ao invés disso, o efeito político desse cenário para a corrida presidencial projeta-se para o fortalecimento do voto nulo e para uma abstenção massiva em 2 de outubro.

A desmoralização das eleições, sua ilegitimidade cada vez maior perante a população, continuará a ser uma marca nas eleições deste ano. Significa dizer que o sentimento antissistema, a insatisfação das massas com o atual estado das coisas, continuará a ser a tônica do processo eleitoral em 2022. Em 2018, um total de 68,5 milhões de eleitores se abstiveram, votaram nulo ou em branco.

Se Lula e a direção do PT continuam nessa toada, Bolsonaro pode se ver em melhores condições para avançar sua escalada golpista e mesmo se valer da vitória usando o sistema de votos válidos e dos efeitos desses números no cálculo eleitoral. Foi assim nas eleições de 2018 e dessa forma Bolsonaro conseguiu ser eleito, mesmo quase sem tempo de TV e rádio. Seu  trunfo foi aparecer para os eleitores como a personificação de um espírito anti-sistema. 

Lembremos que naquela oportunidade Fernando Haddad foi derrotado justamente por contrapor-se a Bolsonaro com a mesma política expressa dia 11 de agosto pelas cartas em defesa do Estado de Direito. Naquela oportunidade, o PT se opôs a Bolsonaro com uma frente “democrática”, reunindo até mesmo Alckmin, o que foi entendido pelas massas insatisfeitas como uma frente em defesa do sistema. A candidatura Lula/Alckmin de 2022 comete o mesmo erro.

A verdadeira terceira via

Uma política que se contraponha a esses dois blocos burgueses em luta precisa estar fundamentada pela independência de classe. A classe trabalhadora precisa ser convocada a assumir protagonismo na luta política, de forma independente e sem se subordinar aos setores da classe dominante. Os capitalistas estão em busca de abrir caminho para suas saídas para a situação, e os reformistas chamam os trabalhadores a se contentar com a defesa das instituições reacionárias e a gestão do Estado capitalista.

A tarefa dos revolucionários consiste em propagandear que há sim uma verdadeira terceira via. E essa não atende por nenhum dos outros políticos do sistema, como Ciro Gomes ou Simone Tebet. Há a via da revolução socialista, a via que pode abrir um mundo novo para a humanidade, a via onde toda a capacidade criativa e a estrutura econômica será colocada a serviço dos seres humanos enquanto espécie. Essa via não só é possível, como ela é urgente e necessária para nossa sociedade sair do atoleiro social em que os capitalistas e seus governos nos colocaram.

Essa terceira via apenas pode ser aberta com uma política baseada na independência de classe, que garanta que os trabalhadores persigam seus próprios interesses, agindo enquanto classe no cenário político. Por isso, os marxistas revolucionários precisam propagandear que a única saída benéfica aos trabalhadores consiste em eleger Lula sob a base de um programa de reivindicações da classe trabalhadora que seja defendida desde já em manifestações, greves e mobilizações nas fábricas, bairros, escolas e universidades

Aqueles revolucionários que optam pelo voto nulo estão se colocando sectariamente à margem de uma viva luta de classes em curso, onde uma fração enorme do proletariado brasileiro tentará se utilizar do terreno eleitoral e da candidatura de origem operária de Lula para derrotar um governo sabidamente inimigo. Trata-se da própria essência do trabalho revolucionário partir das ilusões ideológicas que as amplas massas têm nas eleições e em Lula, sem perdê-las de vista em nenhum momento. Desse dado concreto da realidade, deve-se estabelecer as táticas e as tarefas que correspondam às necessidades imediatas e históricas da própria classe trabalhadora e que a ajude a superar suas ilusões.

Uma política de independência de classe

Como explicamos em nossa declaração distribuída nas manifestações de 11 de agosto, nossas tarefas imediatas consistem em: 1) explicar que lutar para derrotar Bolsonaro e sua horda reacionária não requer nenhum acordo político com defesa do sistema e suas instituições reacionárias; 2) mostrar que nenhum benefício pode ser adquirido para os trabalhadores e estudantes aliando-se aos capitalistas da Fiesp, aos banqueiros da Febraban e seus porta-vozes; 3) demonstrar que a única força segura para derrotar Bolsonaro nas urnas e nas ruas consiste nos batalhões da classe trabalhadora agindo por suas próprias reivindicações e métodos de luta; 4) exigir que a CUT e a UNE rompam com os capitalistas e os banqueiros, revogando sua adesão às cartas em defesa das instituições reacionárias. 

Foi a luta de classes e a entrada em cena da classe trabalhadora a partir de 1977 que colocou a Ditadura Militar em crise e por fim levou à sua substituição pelo regime da Nova República. Será também a luta de classes o caminho por onde será decidida a nova forma de governo da sociedade brasileira que substituirá o atual regime em crise. As condições do regime que sairá da crise política contemporânea é algo a ser resolvido pelas forças sociais em luta. Vivemos em um tempo de revolução e tudo ainda está por ser decidido pelo confronto nas ruas e nas urnas entre revolução e contrarrevolução.

O Estado de Direito trata-se de uma forma democrática de domínio da mesma minoria que apoiou a deposição de João Goulart em 1964, que fez fortuna sob o governo dos militares e que continuou enriquecendo aos custos das massas do país desde 1988. A transição pacífica para o regime da Nova República anistiou os generais e os torturadores, inocentou os colaboradores da Ditadura Militar e manteve as instituições e aparatos da repressão, que agiram contra o povo durante 21 anos. 

É sobre essa herança reacionária que a Nova República foi fundada e que se consumou o “Estado Democrático de Direito” de que nos falam os doutores da Faculdade de Direito da USP. Foi esse regime que permitiu o surgimento de políticos como Bolsonaro, oriundo da escória social e política partidária e mesmo agente da Ditadura Militar. Essa democracia não é democrática. Essa é uma democracia de classe. É uma democracia dos burgueses e para os burgueses.

Os trabalhadores precisam lutar pela sua própria democracia de classe. Uma democracia dos trabalhadores e para os trabalhadores. Um verdadeiro governo do povo, em uma sociedade de classes, apenas pode ser alcançado com a maioria no poder, pela classe trabalhadora. Mas para isso ela precisa se apresentar de forma independente no cenário político. A eleição de Lula consiste em uma batalha para derrotar Bolsonaro na guerra de classes em curso na sociedade. A luta pela via da independência de classe, porém, precisará continuar mesmo após a derrota de Bolsonaro, então contra aqueles que insistem em subordinar a maioria à minoria.