O Presidente da República Jair Bolsonaro, através do Decreto n. 10.530/20, autorizou estudos para que as Unidades Básicas de Saúde (UBS) fossem incluídas no programa de privatizações e concessões do Governo Federal – ou “Programa de Parcerias de Investimentos” (PPI). O Decreto foi revogado por pressão midiática e popular, mas despertou a atenção dos brasileiros para a situação do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente na área da atenção básica.
A redação do Jornal Foice & Martelo entrevistará nesta edição a médica Márcia Nazaré, 30 anos, que nos trará o ponto de vista de uma profissional que esteve dentro de uma UBS localizada no interior de Pernambuco.
Poderia começar nos contando um pouco sobre o que são as UBS?
O papel das UBS é basicamente o de triagem, prevenção e acompanhamento. Elas são parte de uma rede do SUS, ou deveriam ser vistas dessa maneira, e foram criadas para atender universalmente, em qualquer lugar do Brasil, onde elas funcionam. Mas há grandes diferenças e desafios regionais.
Quais as dificuldades práticas as UBS enfrentam para garantir uma saúde pública, gratuita e de qualidade ótima para todos?
A atenção primária assume responsabilidades muitas vezes maiores para as quais ela foi projetada, pois a continuidade na investigação diagnóstica ou do tratamento em outras esferas da rede do SUS ainda não acontece de um modo bem estruturado e eficaz. A prevenção e o acompanhamento não são realizados nas UBS e são substituídos pela hospitalização da saúde, o que favorece políticos, hospitais privados, que têm leitos contratados pelo SUS, e oligarquias locais, principalmente em cidades do interior. O acesso à saúde virou, muitas vezes, moeda de troca, um balcão de negócios. Por isso a rede é vista como ruim.
Um dos argumentos para a privatização é que as UBS apresentam problemas graves no atendimento ao público, como falta de estrutura, profissionais, e dificuldades operacionais. Qual a causa disso? Considera que a privatização resolveria o problema?
O caráter privado do atendimento pode limitar o acesso, que precisa ser universal. No SUS, qualquer pessoa pode ser atendida, sem restrições. O SUS privado ficaria mais ainda na mão de políticos e das empresas. O político ou empresário passaria então a usar os postos e hospitais como se fossem seus. Isso já acontece no SUS atualmente, se for privado se agravará.
Há práticas nos serviços públicos de saúde de outros países que você considera interessantes para serem pensadas no Brasil?
Na Inglaterra e na França, o médico primeiro participa da atenção básica para depois se especializar. No Brasil, há mais liberdade, mas essa liberdade de escolha na área médica a se seguir, faz com que pouca gente queira trabalhar na atenção básica. Em Portugal, há uma planificação na utilização dos médicos, existe uma gerência da necessidade da população com relação à quantidade de vagas que estão disponíveis para cada área. Não basta o médico querer estar em determinada área, é preciso ter uma necessidade da população por aquela especialidade para que ele possa ocupar uma vaga, de acordo com um plano.
Qual a situação atual dos médicos com relação à atenção básica no Brasil?
Os médicos nas UBS são sobrecarregados com funções que não são as suas, sujeitos a grandes riscos, com salários mais baixos do que de outros médicos e sem plano de carreira. As UBS não dão prestígio para o profissional. O sucesso médico ainda é muito atrelado à especialização em alguma área da medicina mais valorizada no mercado, e o tempo que trabalham na atenção básica é considerado “tempo perdido”, que poderia estar sendo usado em alguma especialização. O Programa Mais Médicos, que trouxe médicos cubanos para o Brasil, tentou suprir a falta de profissionais na atenção básica.
Para finalizarmos, poderia nos dizer o que você pensa sobre as Organizações Sociais da Saúde (OSS), que administram muitas UBS e hospitais atualmente?
No caso das organizações sociais (OSS), a situação é ainda pior, pois o dinheiro é administrado totalmente pela empresa privada. Os trabalhadores veem que tem muito dinheiro em jogo, mas não há transparência nenhuma sobre ele. É uma forma ruim de gestão do dinheiro público. Além disso, os profissionais são descartáveis, contratados e recontratados ao bel prazer das organizações sociais.