Neste artigo, Alan Woods analisa os atuais acontecimentos na Espanha a partir do contexto da crise global do capitalismo e como continuidade de suas análises que já previam o que se desenvolve hoje no velho continente.
Primeiro foi Túnis, depois o Cairo. Em seguida Wisconsin e, agora, a Espanha. A crise do capitalismo desencadeou um tsunami impossível de ser controlado. Todos os representantes da velha ordem se juntaram para detê-la: os políticos e os policiais; os juízes e os burocratas sindicais; a imprensa mercenária e a televisão; os padres e os “intelectuais”. Mas o tsunami de revoltas rolou de um país a outro, de um continente a outro.
A falência do capitalismo espanhol
As eleições locais e regionais na Espanha, neste fim de semana, acontecem em um momento em que a crise econômica, social e política cada vez mais se aprofunda. Por dez anos, a economia espanhola foi apresentada como uma fonte de criação de empregos na zona do euro. Ao crescimento frenético e especulativo se seguiu uma queda grave. A Espanha encontra-se agora à beira da falência. Os economistas estão alertando sobre níveis de dívida mais altos que os anteriormente divulgados. E, após o colapso na Grécia, na Irlanda e em Portugal, o “mercado” está voltando sua atenção para a Espanha.
O capitalismo espanhol subiu como um foguete e caiu como uma pedra. O colapso do boom da construção civil deixou a Espanha com uma ressaca dolorosa de preços de casas caindo, dívidas enormes, um milhão de casas vazias e a maior taxa de desemprego na União Europeia. As filas de desempregados na Espanha subiram para cerca de 4,9 milhões. Com um desemprego na casa dos 21%, a insatisfação foi crescendo. O descontentamento se reflete no ceticismo em relação a todos os principais partidos políticos, o que, dada a sua atuação, não deve surpreender ninguém.
Na Espanha, existem dois partidos principais: o PP [Partido Popular], de direita; e o PSOE [Partido Socialista Operário Espanhol], “socialista”. O primeiro é composto pelos representantes mais conhecidos do Capital, é o partido dos banqueiros e dos capitalistas. Sabemos muito bem o que esperar deste partido. O PSOE é supostamente o representante dos interesses da classe trabalhadora. Mas, será que é mesmo? Milhões de trabalhadores votaram nesse partido com a esperança de que iria defender seus padrões de vida. Mas estas esperanças foram cruelmente defraudadas.
O líder do Partido Socialista, José Luis Rodriguez Zapatero, era considerado de “esquerda”. Mas, sob as condições da crise capitalista, há apenas duas alternativas: ou tomar medidas para quebrar o poder dos banqueiros e dos capitalistas ou, então, aceitar os ditames do grande Capital e atacar os padrões de vida dos trabalhadores. Não há terceira via, como Zapatero logo descobriu. Os líderes do PSOE se renderam aos banqueiros e aos capitalistas, como todos os reformistas têm feito em qualquer outro país.
Usando a desculpa da crise econômica (ou seja, da crise do sistema capitalista), os líderes do PSOE deram as mãos à burguesia para salvar o sistema. Estão tentando colocar todo o peso da crise sobre os ombros daqueles menos capazes de suportá-lo: os trabalhadores, os jovens, os velhos, os doentes, os desempregados. Derramam milhões nos bolsos dos banqueiros, ao atacarem os padrões de vida e as aposentadorias e pensões. 89% dos espanhóis consideram que os partidos políticos só se preocupam com eles mesmos, de acordo com uma pesquisa do instituto Metroscopia. Portanto, não é de admirar que as pessoas se afastem dos partidos políticos quando veem este tipo de coisa.
Os socialdemocratas sempre prepararam o caminho para a reação de direita. Este é o seu papel. As pesquisas de opinião já indicam que o PSOE poderia perder para o direitista Partido Popular (PP) em pelo menos uma região chave. Mesmo a Andaluzia, que sempre foi governada pelos socialistas, poderia cair nas mãos da direita. Este seria o cenário aberto para a derrota nas eleições gerais do próximo ano, entregando o governo ao Partido Popular, o representante do grande negócio capitalista.
Isto é o mesmo que saltar da frigideira ao fogo. Se o PP obtiver maioria, vai introduzir cortes ainda maiores. Eles dirão: “Você pensava que havia muita dívida, mas não, não há mais”. Já vimos isto na Catalunha, onde as eleições regionais do último ano varreram o governo de coligação liderado pelos socialistas, e onde o novo governo da CiU [Convergência e União – Coalizão de dois partidos regionais catalães] introduziu um pacote vicioso de cortes na assistência à saúde e à educação e ataques às condições de vida, que provocaram uma onda de greves selvagens e uma manifestação sindical de 200 mil pessoas em Barcelona.
Sentimento de decepção
Os líderes dos tradicionais partidos dos trabalhadores estão completamente enredados com os capitalistas e seu Estado. É intolerável que estes líderes, que falam em nome do socialismo e da classe trabalhadora, ou, até mesmo da “democracia”, presidam enormes resgates aos bancos privados, o que significa um grande aumento na dívida pública, que será paga por anos de cortes e austeridade. Tudo isto é feito em nome do “interesse geral”, mas, na realidade, é uma medida no interesse dos ricos e contra os interesses da maioria.
Nestas condições, a classe trabalhadora sempre procura os sindicatos para liderá-la. Sob a pressão da base, os líderes da UGT [União Geral dos Trabalhadores – uma das centrais sindicais espanholas] e CCOO [Comissões Obreiras – união sindical comunista] apelaram por uma greve geral em 29 de setembro do último ano. Mas os dirigentes sindicais estavam desesperados por fazer um acordo com o governo e viam a greve geral somente como um meio de pressão sobre Zapatero, para obter algumas concessões. Eles pensam que podem conseguir o que querem através da negociação.
Para os dirigentes, este é apenas um meio de dissipar a pressão do vapor na caldeira. Para os sindicalistas sérios, ao contrário, as greves e as manifestações são o meio de se conseguir que os trabalhadores conheçam o seu poder e preparem o terreno para uma mudança fundamental na sociedade. Embora se considerem como pessoas práticas e realistas, os dirigentes sindicais não têm a menor ideia da gravidade da crise do capitalismo. Imaginam que, ao aceitar cortes e outros tributos, tudo vai dar certo no final. Esta é uma ilusão. Para cada passo dado atrás, como eles fazem, os patrões vão exigir mais três.
Na realidade, os líderes sindicais simplesmente perderam contato com o sentimento de raiva dos trabalhadores e jovens, da mesma forma que os líderes dos partidos políticos. Tendo convocado uma greve geral, logo concordaram com uma “reforma” previdenciária completamente insatisfatória do ponto de vista da classe trabalhadora. Isto levou a uma onda de decepção, que reforçou ainda mais o sentimento de frustração, alienação e descontentamento.
Enquanto se desenvolve a luta de classes, a radicalização das fileiras dos sindicatos entrará, sem dúvidas, em conflito com o conservadorismo de sua liderança. Os trabalhadores exigirão uma transformação completa dos sindicatos do topo à base, e lutarão para transformá-los em verdadeiras organizações de luta. Mas, no momento, os sindicatos estão aquém das necessidades dos trabalhadores e da juventude. Elena Ortega, que conseguiu encontrar apenas um emprego por tempo parcial de secretária, e ajudou a espalhar a convocação através do Facebook dos protestos na quarta-feira, disse à CNN: “Se isto está acontecendo, é porque os sindicatos não estavam fazendo o que era necessário, quando era necessário. Eles não se pronunciaram”.
Esse sentimento é mais intenso entre os jovens, que, como sempre, são as principais vítimas da crise. O número de jovens desempregados está em torno de 45%. Muitos universitários graduados, tendo trabalhado duro para obter qualificação, não podem encontrar emprego, e então são obrigados a aceitar empregos braçais por baixos salários. Os níveis de emprego “precário”, ou seja, casual, por tempo parcial, ou por contratos curtos de trabalho sem nenhum direito, são os mais elevados de todos os tempos na Espanha.
Esta situação não é muito diferente da enfrentada pelos jovens em lugares como a Tunísia e o Egito. No entanto, a Espanha não é um país do chamado Terceiro Mundo, mas uma economia europeia desenvolvida e próspera. Esta flagrante contradição tem produzido um sentimento de raiva, frustração e amargura na juventude, que não encontra qualquer reflexo nos partidos existentes ou nos sindicatos.
O descontentamento e a frustração acabaram por rebentar à superfície. No domingo, 15 de maio, mais de 150 mil pessoas marcharam em cerca de 40 cidades em toda a Espanha, sob a bandeira de Democracia real já. A maior manifestação foi em Madri, com mais de 25 mil pessoas, seguida pela de Barcelona, com 15 mil. A principal palavra de ordem da manifestação foi: “Não somos mercadorias nas mãos de banqueiros e políticos”, o que revela o caráter instintivamente anticapitalista do movimento.
Políticos e comentaristas especialistas repudiaram este movimento como “não tendo objetivos claros”, ou até mesmo por “estar aberto à manipulação da direita”. A verdade é que a esmagadora maioria das pessoas presentes nas manifestações de 15 de maio considerava-se como progressistas e de esquerda. As palavras de ordem sobre a falta de moradias, a falta de empregos, a falta de futuro, a falta de uma verdadeira democracia, a ditadura dos mercados, contra a corrupção dos políticos e seus salários obscenos, sobre a força do povo organizado, mostra isto claramente.
Enquanto muitos foram tomados de surpresa pelas manifestações de 15 de maio, na verdade elas foram precedidas por uma série de mobilizações que mostraram a crescente pressão sob a superfície. Em janeiro e fevereiro, demonstrações de massas de funcionários públicos abalaram Murcia, onde o governo regional de direita, do PP, tem realizado uma política de cortes particularmente ultrajante. Na mesma região, os ativistas organizaram uma resistência eficaz aos despejos de famílias inadimplentes no reembolso de suas hipotecas. Em sete de abril, milhares de jovens tomaram as ruas na sequência de um apelo feito pela “Plataforma da juventude sem futuro”, uma coalizão de jovens de esquerda e grupos de estudantes.
Também está claro que a onda da revolução árabe tem sido uma inspiração para muitos na Espanha. Eles viram o poder das pessoas simples em mudar as coisas quando entram em movimento. A ideia da criação de acampamentos de tendas vem diretamente da Praça Tahir, no Cairo. Muitos também se inspiraram nos trabalhadores e nos jovens gregos em suas corajosas mobilizações por todo o último ano, no movimento de greves de massa na França e ainda no movimento da juventude em Portugal. Em um cartaz em Madri se lia: “A França e a Grécia lutam. A Espanha vence… no futebol”, mas não mais será assim. A despeito da total falta de liderança, que deveria ser oferecida pelos dirigentes das organizações oficiais, a juventude espanhola está em movimento, e ela tem a simpatia de largas camadas de trabalhadores.
Milhares protestam, desde domingo, dentro e fora da Puerta del Sol, no centro da cidade de Madri e em mais de 80 cidades e vilas por toda a Espanha. Os protestos também foram organizados por grupos de jovens espanhóis fora das embaixadas em várias capitais europeias.
Ameaça à democracia?
Estes protestos pegaram todos os políticos de surpresa. Reagiram com histeria e alarme. Os defensores da sociedade existente estão escandalizados: “isso é anarquia”, eles protestam. “Isto é o caos!” Alguns até mesmo dizem que é uma “ameaça à democracia”. Mas o que estamos vendo nas ruas de Madri e outras cidades espanholas não é nenhuma ameaça à democracia, ao contrário, é uma tentativa de exercer democracia direta: de dar voz àqueles que não têm voz, de defender os interesses daqueles que ninguém defende.
Quando eles falam de “ameaça à democracia”, o que querem dizer? Democracia no seu sentido literal significa governo do povo. Mas é verdade que o povo realmente manda na Espanha ou em qualquer outro lugar? Não, isto é falso. No âmbito da sociedade capitalista, a participação da maioria das pessoas na democracia se limita a votar a cada cinco anos ou mais por um ou outro dos partidos existentes. Uma vez eleitos, eles fazem o que querem, e as pessoas não têm meios para mudar nada.
Sob o capitalismo todas as decisões importantes são tomadas pelos conselhos de administração dos grandes bancos e monopólios. São eles que decidem se as pessoas terão empregos e casas ou não. Ninguém os elegeu e eles não são responsáveis por ninguém, além de si mesmos. A relação real entre os governos eleitos e a burguesia ficou exposta na recente crise, quando os banqueiros receberam um presente de bilhões de dinheiro público sem nenhum questionamento. Na realidade, “democracia” burguesa é apenas outra forma de se dizer ditadura do capital.
Os que protestam o fazem porque não se reconhecem em nenhum dos partidos existentes. E quem pode culpá-los? Muitos estão dizendo: para que votar se são todos iguais? Eles olham para a campanha eleitoral com uma mistura de indiferença e asco. Se isto representa uma “ameaça à democracia”, os responsáveis não são os jovens que estão protestando na Puerta del Sol, mas os que se sentam no Palacio de la Moncloa [sede da presidência do governo na Espanha].
O direito ao protesto pacífico é um direito democrático básico. Foi por esse direito que a classe trabalhadora espanhola lutou durante décadas contra a ditadura de Franco. No domingo passado, milhares de pessoas, principalmente jovens, mas também outros, foram para a Puerta del Sol, no centro de Madri, para registrar seu protesto contra um sistema que, efetivamente, os exclui. Assim fazendo, estavam exercendo esse direito básico. Como é que esta conquista democrática está sendo respeitada por aqueles que se encontram no controle de Madri e de toda a Espanha?
As pessoas que enchem a boca com a palavra “democracia” descrevem este protesto pacífico como uma “ameaça à democracia”. Na madrugada de terça-feira, 17 de maio, as autoridades de Madri enviaram a tropa de choque para dispersar um grupo relativamente pequeno de manifestantes que haviam montado um acampamento na Puerta del Sol, com a maior violência. Madri é governada pelo direitista PP. Devem, portanto, arcar com a responsabilidade direta por este ataque brutal e não provocado. Mas eles nunca teriam feito isto sem a aprovação (tácita ou aberta) do governo de Zapatero. Este coro hipócrita era de se esperar a partir da direita. Mas é vergonhoso que as pessoas que se intitulam “socialistas” e de “esquerda” deem eco a este coro venenoso.
A tática de usar os valentões não funcionou. Na noite de terça-feira, dezenas de milhares de manifestantes retornaram à praça central de Madri. Na manhã da quarta-feira, muitos permaneciam em seu acampamento noturno. Na quarta-feira à tarde, a Junta Eleitoral de Madri proibiu a manifestação prevista para as oito horas na Puerta del Sol. Um porta-voz do escritório regional disse que a Junta Eleitoral estava tentando evitar demonstrações durante os últimos dias da campanha eleitoral porque elas “poderiam afetar o direito dos cidadãos a votar livremente”. A Junta afirmou não haver “sérias e extraordinárias razões” para permitir a manifestação no curto prazo. E, para acalmar os nervos dos eleitores, El Pais [jornal espanhol] informou que as autoridades planejavam ter suficientes policiais à mão para evitar a manifestação. O sistema de Metrô de Madri estava alertando os passageiros a não irem à Puerta del Sol “porque a manifestação não tinha sido permitida”.
Mas, enfrentados a dezenas de milhares de pessoas, que, mais uma vez, estão determinadas a realizar seu protesto, as autoridades perceberam que seria imprudente usar a polícia antimotim para confrontá-las, visto que isto apenas radicalizaria ainda mais o movimento e provocaria uma resposta ainda mais massiva.
Não é somente na Espanha que os direitos democráticos estão sendo pisoteados. Há não muito tempo atrás, a Cossiga, que era cristão-democrata e foi ministro do interior da Itália na década de 1970 e que, mais tarde, foi presidente da república e, agora, é senador, foi perguntado o que deve ser feito nas manifestações dos estudantes. Ele respondeu:
“Deve-se deixá-los ir em frente por um tempo; retirar a polícia das ruas e dos campi; infiltrar no movimento agentes provocadores que estejam prontos para qualquer coisa; e deixar os manifestantes por cerca de 10 dias devastarem lojas, queimarem carros e virarem a cidade de cabeça para baixo. Depois disso, ao ganharmos o apoio da população – garantindo que o barulho das sirenes das ambulâncias seja mais alto que o das sirenes da polícia e dos carabinieri – as forças da ordem devem atacar impiedosamente os estudantes e enviá-los ao hospital. Não prendê-los, porque os juízes vão libertá-los imediatamente. Simplesmente espanca-los e também aos professores que fomentam o movimento.”
Esta é a autêntica voz da burguesia “democrática”. No momento em que seus privilégios são ameaçados, ela põe de lado a máscara sorridente da “democracia” e recorre à violência e à repressão. Os jovens da Espanha – como os jovens da Grã-Bretanha há alguns meses – estão recebendo uma esplêndida lição dos valores da democracia burguesa, dada sob a forma de golpes de cassetetes. Através da dispersão de uma manifestação pacífica, os governantes da Espanha mostraram duas coisas: em primeiro lugar, o seu desprezo total ao direito democrático do protesto; em segundo lugar, seu medo do povo.
Manifesto do Movimento 15 de Maio
Os jovens da Espanha estão começando a tirar as conclusões mais avançadas. Apresentamos a seguir o Manifesto do Movimento 15 de Maio. Embora não concordemos com cada ponto e vírgula deste documento, ele representa uma extraordinária expressão dos sentimentos de milhões de pessoas que agora estão começando a despertar para a vida política, pois ele é, fundamentalmente, um documento político, embora seus autores não utilizem esta palavra. A razão deles não gostarem da palavra “política” deve-se à escandalosa conduta dos partidos políticos existentes que fizeram esta palavra feder em suas narinas:
“Somos pessoas comuns. Somos como você: pessoas que se levantam todas as manhãs para estudar, trabalhar ou procurar emprego; pessoas que têm família e amigos. Pessoas que trabalham duramente, todos os dias, para proporcionar um futuro melhor àqueles que nos rodeiam.”
Comentário: O aspecto mais importante disto é justamente o fato de ser um movimento espontâneo, que vem de baixo, da base real da sociedade. É a voz de quem trabalha nas fábricas e estuda nas escolas e universidades: a voz real da Espanha, e não a dos exploradores e parasitas. É isto que representa sua força interna e sua resistência.
“Alguns de nós se consideram progressistas; outros se consideram conservadores. Alguns de nós somos crentes; outros, não. Alguns de nós temos ideologias claras e definidas; outros são apolíticos, mas estamos todos preocupados e irritados com as perspectivas políticas, econômicas e sociais que vemos ao nosso redor: a corrupção entre os políticos, empresários, banqueiros, deixando-nos indefesos e sem voz.”
Comentário: Este é um movimento de massas que está dando voz ao povo que não tem voz: as pessoas que não se sentem representadas pelos políticos profissionais e burocratas que se sentam nas Cortes, isto é, a grande maioria do povo espanhol. É um protesto contra a corrupção e a exploração. Mas, aqui, encontramos uma contradição. Como é possível afirmar concepções tão radicais e ser um conservador? Um conservador é alguém que quer conservar o status quo, que defende a ordem vigente que o movimento tem por objetivo derrubar.
Procurar construir um movimento de massa com a mais ampla base é muito bom. Mas não é possível combinar fogo e água. Ou defendemos uma mudança completa da sociedade, e neste caso seremos revolucionários. Ou defendemos sua preservação, e neste caso seremos conservadores. Uma pessoa pode ser uma ou outra coisa, mas não ambas.
“Tornou-se normal uma situação de sofrimento diário e sem esperança. Mas, se juntarmos forças, poderemos mudá-la. E já é hora de mudarmos as coisas; já é tempo de construirmos uma sociedade melhor juntos. Portanto, argumentamos solidamente que:
As prioridades de qualquer sociedade avançada devem ser a igualdade, o progresso, a solidariedade, a liberdade cultural, a sustentabilidade e o desenvolvimento, o bem estar e a felicidade do povo.
Estas são as verdades eternas que devemos respeitar em nossa sociedade: o direito à moradia, ao emprego, à cultura, à saúde, à educação, à participação política, ao desenvolvimento pessoal livre, e os direitos do consumidor para uma vida saudável e feliz.”
Comentário: Sim, temos de lutar por todas estas coisas. Mas devemos entender que há interesses poderosos que se opõem à mudança. Os banqueiros, os latifundiários e os capitalistas não aceitam que o direito à habitação, ao emprego, à cultura, à educação, à participação política, ao desenvolvimento pessoal livre e os direitos do consumidor a uma vida saudável e feliz sejam direitos inalienáveis.
Eles nos dizem que essas coisas são luxos que não podem pagar. Apenas o direito dos banqueiros de receberem grandes quantidades de dinheiro público é considerado por eles como algo inalienável.
“O fato corrente de nosso governo e de nosso sistema econômico não cuidarem destes direitos e de muitos outros casos, é um obstáculo ao progresso humano.”
Comentário: Isto é verdade, mas necessita ser esclarecido, para que não haja uma só sombra sobre a real natureza do problema. O desemprego não é resultado de más políticas deste ou daquele governo. É a expressão da enfermidade de todo um sistema, isto é, do capitalismo. O problema não é a ganância de alguns indivíduos, nem a falta de liquidez ou a falta de confiança. O problema é que o sistema capitalista em escala mundial encontra-se em um beco sem saída.
A causa básica da crise é que o desenvolvimento das forças produtivas superou os estreitos limites da propriedade privada e do Estado-nação. A expansão ou a contração do crédito é muitas vezes apresentada como a causa da crise, mas, na verdade, é apenas o sintoma mais visível. As crises são parte integrante do sistema capitalista.
É realmente lógico que as vidas e os destinos de milhões de pessoas sejam determinados pelo jogo cego das forças de mercado? É justo que a vida econômica do planeta seja decidida como se fosse um gigantesco cassino? Pode-se justificar que a avidez pelo lucro seja a única força motriz que decide se os homens e as mulheres vão ter emprego ou teto sobre suas cabeças? Os que possuem os meios de produção e controlam nossos destinos responderão de forma afirmativa, pois é de seu interesse fazê-lo. Mas a maioria da sociedade, que forma a legião de vítimas inocentes deste sistema canibal, discorda disto.
“A democracia pertence ao povo (demos = povo, kratos = governo), o que significa que o governo é feito de cada um de nós. Contudo, na Espanha, a maioria da classe política sequer nos ouve. Os políticos deviam estar levando nossa voz às instituições, facilitando a participação política dos cidadãos através de canais diretos que ofereçam o maior benefício a toda a sociedade, e não se esforçarem para ficar ricos e prósperos a nossa custa, atendendo apenas à ditadura das grandes potências econômicas e à manutenção no poder através de um bipartidarismo chefiado pelas irremovíveis siglas PP&PSOE.”
Comentário: A democracia capitalista deve ter necessariamente um caráter restrito, unilateral e fictício. O que é a liberdade de imprensa quando todos os grandes jornais, revistas e empresas de televisão, salas de reunião e teatros encontram-se nas mãos dos ricos? Enquanto a terra, os bancos e os grandes monopólios continuarem nas mãos de poucos, todas as decisões realmente importantes que afetam nossa vida vão ser tomadas, não pelos parlamentos e governos eleitos, mas por trás de portas fechadas nos conselhos de administração dos bancos e das grandes empresas. A crise atual expôs este fato a todos que possam ver.
Defendemos uma democracia genuína em que o povo tome o funcionamento da indústria, da sociedade e do estado em suas próprias mãos. Esta seria uma verdadeira democracia, ao contrário da caricatura que temos agora, em que qualquer um pode dizer (mais ou menos) o que quer, enquanto as decisões mais importantes que afetam nossas vidas são tomadas a portas fechadas por pequenos grupos não eleitos nos conselhos de administração dos bancos e dos grandes monopólios.
“A paixão pelo poder e seu acúmulo por poucos criam desigualdades, tensões e injustiças, que levam à violência, que rejeitamos. O obsoleto e antinatural modelo econômico alimenta a maquinaria social em espiral crescente que se consome através do enriquecimento de uns poucos e que envia à pobreza o restante. Até ao colapso.
O desejo e objetivo do presente sistema é a acumulação de dinheiro e não a eficiência e o bem estar da sociedade. Desperdiçando recursos, destruindo o planeta, criando desemprego e consumidores insatisfeitos.
Os cidadãos são as engrenagens de uma máquina concebida para enriquecer uma minoria que não respeita nossas necessidades. Somos anônimos, mas sem nós nada disto existiria, porque nós movemos o mundo.
Se, como sociedade, aprendermos a não confiar nosso futuro a uma economia abstrata, que não retorna benefícios à maioria, poderemos eliminar o abuso que todos estamos sofrendo.”
Comentário: O direito ao trabalho é um direito fundamental. Que tipo de sociedade é este que condena milhões de homens e mulheres a uma vida de inatividade forçada, enquanto o seu trabalho e sua competência são necessários para satisfazer as necessidades da população? Não necessitamos de mais escolas e hospitais? Não necessitamos de boas estradas e casas? Não necessitam de reparos e melhorias nossas infraestruturas e sistemas de transporte?
A resposta a todas estas perguntas é óbvia. Mas a resposta da classe dominante é sempre a mesma: não podemos permitir tais coisas. Agora, todos sabem que esta resposta é falsa. Sabemos, agora, que os governos podem gerar somas extraordinárias de dinheiro quando convém aos interesses da minoria rica que possui e controla os bancos e as indústrias. É somente quando a maioria do povo trabalhador solicita o atendimento de suas necessidades que o governo alega não ter dinheiro disponível.
O que isto prova? Prova que, no sistema em que vivemos, o lucro de uns poucos é mais importante que as necessidades de muitos. Isto prova que todo o sistema produtivo baseia-se em uma só e mesma coisa: a motivação do lucro, ou, dito com mais clareza, a ganância.
“Necessitamos de uma revolução ética. Em vez de colocar o dinheiro acima dos seres humanos, devemos colocá-lo a nosso serviço. Somos pessoas e não produtos. Eu não sou um produto que compro, porque posso comprar e que compro.”
Comentário: A única solução para os problemas aqui listados é a derrubada do corrupto e injusto sistema e sua substituição por uma sociedade verdadeiramente racional e democrática, que é o verdadeiro socialismo ou comunismo. Para se atingir este objetivo, porém, é necessária uma mudança fundamental na sociedade através de uma revolução.
O Manifesto fala de uma “revolução ética”. Mas esta formulação é demasiado vaga. A ética de uma determinada sociedade reflete a base econômica dessa sociedade. Se aceitarmos um sistema econômico baseado no lucro, teremos de aceitar a ética que daí deriva: “cada um por si e o diabo contra todos”.
Uma sociedade canibal terá, inevitavelmente, a ética antropofágica. Para termos uma ética humana, devemos ter necessariamente uma sociedade baseada em verdadeiras relações humanas. A condição prévia para uma revolução ética é uma revolução social.
“Por tudo que foi exposto, estou indignado.
Penso que se pode mudar isto.
Penso que posso ajudar,
Sei que juntos podemos. Penso que posso ajudar.
Sei que juntos podemos.”
Esta conclusão contém uma lição muito importante. Ela nos diz que, enquanto eu, como indivíduo, sou impotente, não há poder na terra que possa com as massas, uma vez mobilizadas e organizadas para a transformação revolucionária da sociedade. Esta é a lição da Tunísia e do Egito. A classe trabalhadora tem em suas mãos um poder colossal: nenhuma lâmpada brilha, nenhuma roda gira, nenhum telefone toca sem nossa permissão.
Conclusões avançadas
O fato mais importante é que a juventude está se movimentando. E, através da experiência da luta concreta, as conclusões que o movimento como um todo está tirando estão se tornando mais avançadas e estão entrando de forma mais aberta em conflito com o próprio sistema capitalista. Assim, na manifestação de Madri da terça-feira, em protesto contra o brutal despejo do acampamento naquela mesma manhã, as seguintes palavras de ordem estavam sendo ouvidas: “Não é a crise; é o sistema”, “A revolução começou”, “O povo unido jamais será vencido”, “Lutar, criar, poder popular”.
O manifesto aprovado por dezenas de milhares de pessoas presentes na Puerta del Sol em Madri, em 18 de maio, foi certamente um passo a frente. Entre outras coisas, reconheceu o caráter político do movimento: “Nós perdemos o respeito pelos partidos políticos principais, mas não perdemos nossa capacidade de criticar. Pelo contrário, não temos medo da política. Expressar uma opinião é política. Buscar formas alternativas de participação é política”. O manifesto também esclareceu que não exige abstenção nas eleições, mas exigiu que “o voto tivesse um impacto real em nossas vidas”. O manifesto também identifica claramente os responsáveis pela “situação que enfrentamos: o FMI, o Banco Central Europeu, a União Europeia, as agências de notação de crédito, como a Moody’s e a Standard and Poor’s, o Partido Popular e o PSOE”, entre outros. Alguns também estão questionando a monarquia como instituição argumentando que deve ser submetida a um referendo.
Agora, a Junta Eleitoral declarou que nenhum protesto no sábado (o “dia da reflexão” antes das eleições, dia em que nenhuma propaganda política é permitida) e no domingo (dia da eleição) será permitido. Este é um desafio direto ao movimento. O único efeito da repressão em Madri, na terça-feira, dia 17 de maio, e da proibição da manifestação da quarta-feira, dia 18 de maio, foi o de radicalizar e difundir o movimento. Manifestações em capitais provinciais dobraram de tamanho nos últimos dias e os acampamentos surgiram em todas as partes. Há agora um apelo para que todos permaneçam nas praças a partir da meia-noite de hoje, desafiando, assim a proibição das manifestações.
A classe dominante espanhola enfrenta uma escolha difícil: se usar a repressão para fazer cumprir a decisão de proibir as manifestações, então poderá provocar uma explosão social; se não o fizer, então o movimento obterá uma vitória e revelará o poder das massas em oposição ao poder das instituições oficiais. O vice-presidente do governo, Rubalcaba, tentou hoje resolver o problema da quadratura do círculo, argumentando que o fato das pessoas se reunirem, apesar da proibição de encontros, “não é razão suficiente para a polícia intervir, se não houver violência”.
Nós, os marxistas, damos as boas-vindas aos protestos da juventude. Expressamos nossa solidariedade incondicional ao movimento de protesto e apelamos à classe trabalhadora para apoiá-lo ativamente. Já está na hora de se usar o poder da classe trabalhadora para mudar a sociedade. Paremos de tentar sustentar um sistema doente e moribundo! É tempo de união e luta! Este é o significado real dos protestos espanhóis e do Movimento 15 de maio.
Viva os protestos espanhóis!
Viva o Movimento 15 de maio!
Londres, 20 de maio de 2011.