– Eu jamais teria uma filha do teu nível (…) Tu vive disso, isso é seu ganha pão né, Mariana? É seu ganha pão a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem. (…) Essa foto aqui foi extraída de um site de um fotógrafo onde a única foto (…) com posições ginecológicas é só a dela. (…) Por que você apagou a foto, então? (…) Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lágrima de crocodilo. – apontamento de dedo e deboche.
– Eu gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo, eu estou implorando por respeito no mínimo. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de deus, gente. Que que isso? Nem os acusados de assassinatos são tratados como eu estou sendo tratada. Eu sou uma pessoa ilibada, nunca cometi crime contra ninguém! – choro e desespero.
Esse é o diálogo sujo e assustador entre o advogado de defesa do acusado e vítima, em plena audiência de julgamento, na presença virtual do promotor e do juiz. A vítima é Mariana Ferrer, jovem trabalhadora, estuprada em 2018 em um café de luxo de Santa Catarina. Mariana era virgem e, segundo exames, provas e testemunhas, foi dopada e violentada por André de Camargo Aranha, empresário de jogadores, rico e influente, filho de Luiz de Camargo Aranha Neto, advogado que já atuou em processos em defesa da grande emissora Rede Globo.
A jovem de apenas 23 anos luta há dois anos pela condenação de seu agressor e, em 2019, tornou o caso público na tentativa de pedir reforços e atenção a algo que estava sendo barrado diariamente por uma justiça manipulada e desonesta. Durante esse tempo, Mariana passou por diversas situações em que foi humilhada e torturada psicologicamente; e a gravação de uma das audiências, que só foi divulgada pelo Intercept na manhã desta terça feira (03/11), só deixou ainda mais evidente e revoltante, a qualquer um que ainda tivesse dúvidas, esse sistema que estruturalmente violenta mulheres em todos os setores.
Durante a audiência, o advogado de Aranha, Claudio Gastão da Rosa Filho, conhecido por defender Sara Winter e Olavo de Carvalho em outros casos, humilha e difama Mariana, que chora e implora por respeito, não recebendo ajuda de nenhum dos – apenas homens- participantes da sala. O advogado chega a apresentar fotos da jovem de biquíni, como “prova” que ela não era “uma moça de bem”, não era “santa”, tentando forçar que de alguma forma isso interferia no caso em análise.
O vídeo da audiência, por si só, deixa qualquer um enojado pela insensibilidade e profunda degradação endereçada a uma mulher indefesa. Indefesa porque a figura do promotor, que de acordo com a lei deveria estar defendendo os interesses da vítima, simplesmente preferiu ficar em silêncio. Já o juiz ofereceu a opção de “tomar uma água” para Mariana se recompor antes de seguirem os ataques à jovem, que ironicamente figurava na posição de vítima e não de ré.
Aranha foi inocentado em setembro por uma sentença em que o juiz aceitou os argumentos da defesa e do próprio Ministério Público de que, em função do estado da vítima e do laudo toxicológico, o réu não teria como saber se ela estava em condições de consentir ou não, o que configuraria um suposto “estupro culposo”. Pelo princípio do in dubio pro reo (ou “presunção de inocência”), não se pôde concluir a “intenção” de estuprar e, como não existe a modalidade de “estupro culposo” no Código Penal, o fato não se constituiu crime.
Nesse caso, não é preciso ser nenhum estudante de direito para entender que não existe a possibilidade lógica de haver um caso de “estupro culposo”. No crime de estupro, seja contra vulnerável (art. 217-A §1º do Código Penal, que constava na acusação) ou em sua modalidade clássica (art. 213 CP), o fator determinante, que configura o dolo do autor, é a intenção de ter a conjunção carnal, sendo o consentimento da vítima um fator condicionante. A ação será proposta pelo Ministério Público caso a vítima alegue que não houve consentimento de sua parte. Juridicamente, isso significa que não existe a possibilidade de alguém, sem ter a intenção, transar sem o consentimento da vítima. Exatamente por isso a modalidade culposa do crime de estupro não existe no ordenamento, não porque não deve ser crime, mas porque é impossível de ser cometido na prática.
No caso concreto, a justiça burguesa moveu montanhas ao decidir que nenhum artigo do código penal poderia ser aplicado, ou seja, que o fato não constituiu crime, porque o abusador supostamente não tinha como saber que não havia consentimento. Os exames de DNA do sêmen nas roupas, o sangue, os laudos médicos, as gravações de vídeo e áudio e, principalmente, a palavra da vítima não foram suficientes para condenar alguém que já estava salvo pela sua conta bancária. Toda a acusação desmoronou por um suposto laudo que não concluiu pelo “discernimento reduzido” durante a violação. Ou seja, a vontade da mulher foi o que menos importou em um julgamento de estupro.
Se de um lado todas as instituições envolvidas (de acusação, defesa e de julgamento) fecharam os olhos alegando, de forma profundamente cínica, que não havia dispositivos penais específicos para incriminá-lo, por outro lado todas as (hipócritas) normas de ética, de proteção à vítima, toda a obrigação do juiz e do promotor de intervirem na tortura psicológica e impor represálias ao advogado de defesa, que atuou praticamente como um promotor contra Mariana, foram negligenciadas e ainda ratificadas pela sentença que contou com o aval de todos os homens na audiência, independente de suas posições.
A sociedade capitalista, que caminha para a barbárie, permite que vejamos casos como de Robinho, que mesmo condenado em primeira instância por estupro foi contratado por um grande clube de futebol (que só cancelou o contrato devido à repercussão de repúdio nas redes sociais); ou Bruno, jogador condenado pelo homicídio de Eliza Samudio recebendo aplausos de torcedores; e até mesmo casos como da garota de 11 anos, engravidada pelo tio abusador, que foi perseguida por fanáticos religiosos que condenaram muito mais o aborto do que a estupro em si. Todos esses casos só confirmam o caráter desse sistema em que se preserva a posição inferiorizada da mulher, reforçando o machismo e a misoginia. Em conjunto, um aparelhamento legal burguês que aperta as mãos sujas de sangue de estupradores endinheirados.
Entender que o problema é sistêmico significa entender que isso tudo não acontece por um descuido, por falta de fiscalização ou pela falta de “representatividade” feminina no judiciário, mas como herança histórica da sociedade de classes que coloca a mulher em posição de subjugação institucionalizada pelo capitalismo.
Por exemplo, durante muito tempo o direito hebraico voltou o julgamento de casos de estupro à figura da mulher. Primeiramente, o crime não era necessariamente contra a liberdade sexual da mulher, mas contra o patrimônio de seu marido, já que a mulher era nada mais do que sua propriedade. Nessa ocasião, a mulher estuprada deveria gritar para afastar a presunção de que estava gostando, o que resultaria em condenação à morte por apedrejamento pelo crime de adultério. Se o crime fosse cometido em local remoto, caberia a ela provar que gritou, mas não foi ouvida.
Esse passado surreal não ficou apenas nas piores páginas do passado, o caso de Mariana guarda suas semelhanças. O vídeo da audiência deixa claro que o processo voltou-se à probatória sobre se Mariana estava ou não gostando da conjunção e suas fotos do Instagram foram a argumentação que o advogado de defesa usou sem qualquer represália do juiz e do promotor. Na análise científica desse episódio abjeto, cumpre entender que isso não é um raio em céu azul. Entender o passado e o que se preserva no presente significa entender que não há alternativas possíveis para a emancipação real da mulher na sociedade de classes, que hoje se expressa no modo de produção capitalista e seu Estado burguês.
Essa justiça tem como função assegurar o funcionamento da ordem burguesa, o que inclui a distinção em função da cor da pele e do gênero, buscando sempre reafirmar a burguesia enquanto classe dominante para condenar ou não uma pessoa. Mariana, mesmo com toda suas forças e garra mostrou para todo o país que o judiciário não tem a menor estrutura para garantir a voz ou minimamente a dignidade da mulher. Pelo contrário, está submetida a todo tipo de constrangimento público e violência psicológica desde o cometimento do crime até depois da sentença. A justiça burguesa protege e vai continuar protegendo de acordo com o peso da carteira, criando termos e leis que geram efeitos em sentenças cujos danos são irrecorríveis na vida da vítima.
As contradições do Estado burguês e da sociedade capitalista não ficam apenas nas cadeiras do magistério. Como exemplo, as próprias delegacias da mulher que, como aparatos desse sistema, não prestam um serviço adequado às mulheres, submetendo-as ao julgamento prévio dos delegados; a Polícia Militar e Guarda Civil Municipal que ridicularizam denúncias de agressão, as leis penais que só servem como desculpa para prender mais pobres sem qualquer compromisso com o acolhimento, amparo ou qualquer direito básico da mulher trabalhadora.
Portanto, a revolta nas redes sociais e todas as campanhas em defesa de Mariana devem romper completamente as ilusões no sistema penal burguês e apontar um fim definitivo para esse arcabouço repressivo que na prática só existe para punir a classe trabalhadora e proteger a burguesia, para que cometam seus crimes livremente. A opressão contra as mulheres, o racismo e a homofobia são alguns dos pilares do capitalismo, e por isso é completamente falsa e ilusória a ideia de que, nesta sociedade, é possível promover a justiça e garantir os direitos das mulheres, negros, índios e LGBT’s.
Longe de ser uma exceção, este é um dos milhares de casos que passam diariamente sem se noticiar na mídia. As mulheres convivem diariamente com a violência doméstica, assédio no trabalho, ameaças, abuso sexual e assassinatos. Sarcasticamente, como regra, são outros abusadores que estão nas cadeiras da promotoria, magistério e inclusive ocupando cadeiras no legislativo e nos cargos de governo.
Todas essas contradições do capitalismo se observam de maneira resumida no governo Bolsonaro, quando defendeu menores salários às mulheres porque engravidam, que declarou que só não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela “não merecia” por ser “feia demais”, que não só desdenha das vítimas como presta homenagens aos torturadores que introduziram ratos em vaginas durante a Ditadura Militar.
A preferência de Bolsonaro em não se solidarizar ao caso de Mariana Ferrer, mas prestar homenagens ao abusador MC Reaça, que espancou a namorada grávida e se suicidou em seguida, é mais uma prova de que esse sistema apodrecido e os governos que o representam são diametralmente contrários aos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras. Assim, o caso de Mariana Ferrer, como tantos outros casos de violência, reforça a urgência da palavra de ordem FORA BOLSONARO!, como um caminho para abrir uma saída revolucionária contra essas aberrações sociais na humanidade.
Chega de conferir aos representantes da burguesia a legitimidade de julgar casos de uma opressão que está impregnada em suas posições históricas na sociedade de classes. Lutamos por uma revolução socialista, na qual as mulheres possam ser ouvidas com plena emancipação e justiça, sem mais sangue e sofrimento marcando as cédulas que determinam as sentenças penais.
- Toda a nossa solidariedade a Mariana Ferrer!
- Abaixo a violência contra a mulher!
- Cadeia para estupradores! Reverter a decisão nas ruas!
- Abaixo o Estado capitalista e sua justiça! Nossas vidas importam!
- Socialismo ou barbárie! Somente a derrubada do capitalismo garantirá a todas as pessoas seus direitos!
- Fora Bolsonaro! Por um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais!
Participe dos blocos do movimento Mulheres pelo Socialismo nas manifestações:
- Florianópolis-SC: 07/11 (sábado) às 15h, na Avenida Beira-mar Norte. Concentração Mulheres Pelo Socialismo à esquerda do Koxixo.
- Curitiba-PR: 07/11 (sábado), às 14h, na Praça Santos Andrade. Ponto de encontro do Mulheres Pelo Socialismo: esquina do INSS.
- Vitória-ES: 07/11 (sábado), às 15h, em frente ao Jardim Araceli, no fim da orla de Camburi.
- São Paulo-SP: 08/11 (domingo), no MASP. Concentração a partir das 13h.
- Rio de Janeiro-RJ: 08/11(domingo), às 14h, na Cinelândia.