Setores da burguesia brasileira decidiram expor ao mundo a filmagem de uma reunião de cúpula do governo Bolsonaro a portas fechadas. E isso por si só é mais significativo do que o conteúdo do famigerado vídeo da reunião.
E quando falamos de “setores da burguesia” não estamos falando deste ou daquele político burguês. Estamos falando de importantes setores da classe dominante brasileira. E não apenas aqueles representados por Celso de Mello ou alguns outros ministros do STF. A família Marinho também. Em outras palavras, não se trata apenas de um conflito entre os três poderes da república, mas antes disso, um conflito entre setores da classe dominante que se expressam através dos vários grupos que controlam ou que influenciam partes de cada um dos poderes da república.
O acirramento da polarização social e a crise de representatividade das instituições burguesas fazem com que esses conflitos na cúpula da sociedade de classes sejam refletidos de maneiras contraditórias nos flexíveis espelhos da base da sociedade. Por isso vemos militantes de esquerda horrorizados com o desprezo de Bolsonaro e seus ministros pela democracia burguesa ao mesmo tempo em que ativistas do bolsonarismo vibram com as falas contrárias a (certas) instituições burguesas.
A “esquerda”, ainda tomada pela ideologia reformista e de conciliação de classes, se coloca como defensora das instituições burguesas em nome de uma falsa democracia enquanto deixa a bandeira da luta contra essas instituições podres nas mãos do ativismo bolsonarista de extrema-direita.
Enquanto isso o povo trabalhador fica no meio, sem confiar um milímetro nas “instituições democráticas” – que legislam para retirar direitos, julgam para criminalizar os que resistem e governam para garantir a exploração dos que trabalham – e sem encontrar na “esquerda”, dentre os seus representantes tradicionais, nenhuma figura ou organização com influência de massas que se coloque contra essas instituições. O único que aparece como alguém que está contra “tudo isso o que está aí” é Bolsonaro. Mas essa é uma aparência frágil. A oposição de Bolsonaro ao “sistema” é hipócrita e o próprio vídeo da reunião com os ministros revela isso para quem quiser ver. Por isso a aprovação a Bolsonaro oscila entre 25% e 30%, mas não passa disso.
Uma reunião de gângsteres
Em um contexto em que milhares de pessoas estão morrendo por Covid-19 no Brasil, em que milhões estão perdendo o emprego, outros milhões tendo seus salários reduzidos e outros milhões praticamente ficaram sem renda, o presidente reúne seus ministros por horas e eles só mencionam a pandemia para reclamar que autoridades locais estão algemando pessoas que não cumprem as medidas de isolamento. Ou então para propor que se aproveite o momento em que a atenção de todos está voltada para a epidemia para passar todas as desregulamentações ambientais e demais maldades em todos os ministérios – “passar a boiada”, como disse o ministro do Meio Ambiente pró-pecuarista, Ricardo Salles.
Bolsonaro se comporta como o chefe de uma gangue repreendendo os seus asseclas que não estão sendo durões o suficiente contra as gangues rivais. Ele diz que o comportamento a ser seguido é o do ministro da Educação, Weintraub, que havia dito que deveria prender todo mundo em Brasília, a começar pelos ministros do STF.
É um dilema para a burguesia. Porque ao mesmo tempo em que o vídeo da reunião atesta o caráter nada republicano do governo Bolsonaro, e aumenta as ganas da burguesia de retirar o fanático do seu posto, a linha política ditada por Paulo Guedes na reunião é o sonho dos capitalistas. Paulo Guedes é quem de fato centraliza o governo. Ele corrigiu os deslizes keynesianos do plano “Pró-Brasil”, apresentado na reunião pelo General Braga Netto, e reenquadrou toda a reunião de acordo com os interesses do capital financeiro internacional. Privatizar, privatizar, privatizar; usar dinheiro público para salvar as grandes empresas privadas; privatizar, privatizar, privatizar. Isso somado à dica de Salles para “passar a boiada” infralegal (desregulamentação através de portarias normativas etc.) é tudo o que a burguesia mais quer.
Entretanto, o que dita as escolhas dos setores mais inteligentes da burguesia é a luta de classes. Temem a revolta das massas e buscam a todo custo evitar um choque frontal com a classe trabalhadora. Para eles, pouco importa se Bolsonaro mantém algo em torno de 30% de apoio. A questão é que os 70% que não o apoiam cada vez mais chegam à conclusão de que é preciso derrubar o governo. É o medo de que o grito rouco “FORA BOLSONARO!”, hoje reverberado nas janelas e redes sociais, amanhã tome as ruas que faz setores da burguesia se anteciparem e buscarem derrubar Bolsonaro de maneira “controlada”.
FHC aconselhou: “Renuncie, Bolsonaro. Poupe o país de um longo processo de impeachment”. Este seria o caminho mais econômico para a burguesia. Mas Bolsonaro já deixou claro que não vai largar o osso. Como um cão raivoso, pretende morder até o fim. A burguesia faz cálculos. Tudo é incerto.
Essa divisão na cúpula da sociedade dialeticamente responde à enorme pressão que vem de baixo. E esta pressão aumentará muito nas próximas semanas e meses. Bolsonaro já é recordista em número de pedidos de processo de impeachment no Congresso Nacional. Se algum desses processos irá até o fim depende da luta de classes.
O beco sem saída da burguesia e as tarefas do proletariado
Enquanto permanece o impasse, veremos cada vez mais expressões desse conflito de cúpula na sociedade. Como o inquérito que apura a acusação de Moro de que Bolsonaro interfere na Polícia Federal por um lado ou a “Operação Placebo” da PF que ataca Witzel e é aplaudida por Bolsonaro por outro.
Bolsonaro compra abertamente os deputados do chamado “centrão” para garantir mais de um terço da Câmara Federal contra o seu impeachment. Mas isso não é suficiente. O capital financeiro internacional, que é quem de fato comanda a classe dominante brasileira, exige que haja um funcionamento minimamente republicano no comitê de gerenciamento de seus negócios. É isso o que leva agora Bolsonaro a cogitar demitir um de seus ministros mais alinhados com a sua ideologia: o olavista Abraham Weintraub. Parece que a sua declaração sugerindo a prisão de ministros do STF traz muita insegurança para os negócios. Na verdade, o que traz insegurança é o presidente apoiar a fala do ministro. Demiti-lo seria uma boa tentativa de retratação.
Bolsonaro está cada vez mais isolado em Brasília. E mesmo que compre deputados, nada garante que esses cumpram o combinado quando o cerco apertar. A crise econômica e social que se desenvolve a céu aberto no país pode atingir níveis críticos em poucas semanas. Esse governo não tem condições de lidar com tamanha pressão. A burguesia busca desesperadamente estabelecer um regime bonapartista. Um pequeno setor ainda aposta que Bolsonaro possa cumprir esse papel. A fala de Paulo Guedes na reunião propondo recrutar 1 milhão de jovens para educá-los nos quarteis ressuscitando a antiga disciplina escolar Organização Social e Política do Brasil (OSPB) é uma tentativa de viabilizar isso. Setores mais sensatos, dispostos a provocar a queda controlada de Bolsonaro, aceitam que o STF assuma este papel. Os militares sem Bolsonaro não aparecem como uma opção. E a “saída parlamentarista” ainda enfrenta oposição dos grandes partidos burgueses.
Enquanto a burguesia está nesse impasse, o proletariado deveria atacar, ir à ofensiva com todas as suas forças. Infelizmente as direções tradicionais burocratizadas estão adaptadas e subordinadas à burguesia. O proletariado terá que forjar novas direções independentes no calor da batalha. O movimento “Fora Bolsonaro” é terreno fértil para isso. Construir os Comitês de Ação Fora Bolsonaro em cada local de trabalho, estudo e moradia está na ordem do dia.