Frederick Douglass, um revolucionário de seu tempo

“Sem luta não há progresso. […] O poder não concede nada sem demanda.  Nunca concedeu e nunca concederá.” (Frederick Douglass, 1848)

Uma ação consequente e revolucionária se faz assertiva quando podemos nutrir essa prática com a devida formação política e histórica. Assim, é crucial conhecermos os processos e os dirigentes das lutas realizadas pelos trabalhadores, nos apropriando desses acontecimentos, principalmente aqueles ocultados pelos historiadores da classe dominante. Um destes exemplos de necessária apreensão é da trajetória de Frederick Douglass (1817-1895), ex-escravizado que, ao fugir do trabalho compulsório, tornou-se um histórico militante revolucionário dos Estados Unidos da América, no século XIX.

Os EUA foram a primeira colônia europeia a efetivar uma revolução anticolonial vitoriosa contra a maior potência do mundo no período, a Inglaterra, em 1776. No século seguinte, a segunda revolução americana (1861-1865) desenvolveu as forças produtivas e superou a escravidão no Sul do país a partir da atuação revolucionária de pessoas como Frederick Douglass. 

Nascido Frederick Bailey, em Talbot County, em Maryland, filho de uma escravizada e um pai branco que nunca conheceu, este revolucionário foi encaminhado a Baltimore para trabalhar como “negro da casa” de uma família escravocrata, aos 8 anos de idade. Por estar em uma cidade relativamente grande, teve algumas oportunidades de estudo e socialização incomuns para os negros, mas foram chances que duraram pouco tempo devido a proibição de seu senhor. Seguiu estudando às escondidas, em especial a política da escravidão e das opressões do homem pelo homem. Aos 16 anos, relatou ter realizado com sucesso a primeira reação contra um brutal capataz e aos 21 anos, em 1838, conseguiu escapar da condição de escravo, rumando para Nova Iorque. Em seguida, casou-se com Anna Murray, também uma negra ex-escravizada, radicando-se com ela no estado de Massachusetts.

Em 1845, participou de uma convenção abolicionista, em Nantucket, apresentando suas experiências no tempo como escravizado. No mesmo ano, publicou sua autobiografia intitulada “Narrativa da vida de Frederick Douglass, escravo americano”. Lançou mais duas obras desse caráter, sendo a segunda Minha Escravidão e Minha Liberdade”, de 1855, e a terceira A Vida e os Tempos de Frederick Douglass“, de 1881. Como dirigente político também fundou o jornal The North Star, em Rochester, auxiliando profundamente na libertação de escravizados que rumavam ao Canadá e a outras regiões norte-americanas, além de exigir o fim do tráfico negreiro e da colonização da África.

Entre 1845 e 1847, Douglass refinou suas posições revolucionárias compreendendo o internacionalismo, quando viajou para a Irlanda e a Inglaterra. Nesse período, identificou com maior precisão a luta entre as classes, não somente na dicotomia entre negros e brancos. Em relação a isso a questão étnico-racial, afirmou que: Sem insultos a encontrar – sem preconceitos, tudo é tranquilo. Eu sou tratado como um homem e irmão igual”.

Mas, comumente, o destacado papel de Douglass é propagado em relação à Guerra Civil Americana (1861-1865), um dos processos mais dramáticos da luta de classes na história e que deve ser visto com a continuidade do processo revolucionário norte-americano. Para além da aparência, esta foi uma guerra entre o capitalismo do Norte, progressista e ilustrado, contra o atrasado sistema de plantações e a força de trabalho escrava do Sul. 

Neste contexto, é fundamental relembrarmos o posicionamento de Marx, Engels e da Primeira Internacional quanto à Guerra Civil e à figura de Abraham Lincoln, que, apesar de ter o encontrado presencialmente apenas duas vezes, possuía como conselheiro político o próprio Frederick Douglass. Os comunistas foram partidários e entusiastas do processo pelo rompimento da escravidão e em favor do Norte, descrevendo a república norte-americana como um farol de liberdade para toda a humanidade“.

Na guerra, a composição dos que estavam nos campos de batalha era de trabalhadores comuns. No norte, locais inteiros de trabalho fecharam durante a guerra pela defesa do exército da União contra a escravidão. Até mesmo alguns revolucionários europeus se uniram ao norte e em seu exército.

Lincoln foi pressionado por Douglass e pela ação das massas para a sua radicalização, deixando de lado apenas a defesa legalista e o sufocamento da rebelião do sul para uma guerra revolucionária com o progressista intuito de destruir e expropriar os escravocratas.

Politicamente, os discursos, artigos e ações de Douglass, como representante direto dos explorados na direção da segunda revolução americana, condicionaram a transformação da consciência em defesa da luta revolucionária de Lincoln, algo como uma guinada à esquerda do republicano. No início do conflito, ele afirmava não querer desencadear uma luta violenta, nem realizar expropriações radicais, mas tudo isso mudou com a força das massas, colocando-o como dirigente revolucionário da guerra civil. 

Um exemplo do extraordinário do papel de Frederick Douglass nesse momento foi a partir do manifesto “Men of Color, To Arms”, de 1863, onde exigia à Lincoln que o batalhões armados da revolução recebessem negros, escravizados ou não. Essa era uma questão fundamental pautada por Douglass desde os anos 1840, a autodefesa negra. Podemos sintetizar essa influência de Douglass e das massas quando Lincoln afirmou que: não digo que controlei os acontecimentos, mas confesso claramente que os acontecimentos me controlaram“. Aqui reside a beleza do salto de consciência de um dirigente revolucionário.

É inegável que esta guerra realizou avanços tecnológicos enormes e tinha o Norte como o futuro, a economia e o desenvolvimento deste lado da trincheira. Engels considerou essa como a primeira grande guerra da história contemporânea e, efetivamente, foi o período crucial da revolução democrática e nacional dos Estados Unidos. Em números, significou a libertação de 3 milhões de escravos, sendo que o Sul do país possuía 9 milhões de habitantes e destes, 4 milhões estavam presos ao passado tortuoso do trabalho compulsório e da escravidão. Inegavelmente foi uma expropriação de proporções históricas e positivas. Já para o Sul, os resultados foram devastadores. A pobreza expressou-se com a perda de 2/3 da riqueza da região, com 2/5 de seu gado e maquinário agrícola inexistindo. Entre 1860 e 1870, a riqueza do norte aumentou em 50% e a do sul caiu 60%, além da baixa de 25% da população de homens brancos em idade militar, fora o gasto com os vivos para os cuidados com a saúde.

Politicamente, os discursos, artigos e ações de Douglass, como representante direto dos explorados na direção da segunda revolução americana / Imagem: Simon Bowie, Flickr

Diferente dos republicanos burgueses, Douglass, este jornalista e profícuo orador, não ocultou os problemas do Norte e foi contundente ao dar o protagonismo para a ampla e central participação dos trabalhadores nos processos revolucionários dos EUA. Oposição significativa à ideologia burguesa norte-americana que destina os exclusivos louros às figuras liberais das classes dominantes, estas que se dividiam entre o trabalho livre urbano e o trabalho escravo rural. Sem a nevrálgica força dos explorados e oprimidos, nenhum dos indivíduos de destaque da classe dominante norte-americana, como George Washington ou Abraham Lincoln, teriam a possibilidade de dirigir a independência frente o império britânico, bem como no século XIX os burgueses não teriam conseguido derrotar os escravagistas.

Se falamos da radicalização de Lincoln, o mais importante dessa participação efetiva dos trabalhadores foi o enorme salto de consciência da classe explorada e oprimida. Mais uma vez elas se refletiram nos artigos e discursos de Douglass, pois expressavam que as conquistas das revoluções burguesas, principalmente no caso da abolição de 1865, eram importantes, mas insuficientes. Sendo um progressista em seu tempo, Frederick chegou a compreender que a constituição liberal do Estado capitalista e do trabalho livre não significariam para os trabalhadores uma verdadeira liberdade e superação da escravidão. Entretanto, permaneceu com sua ligação umbilical com os burgueses do Partido Republicano, apesar do entendimento que os trabalhadores estariam sob o jugo do assalariamento e das opressões capitalistas.

No Brasil, “Frederico Douglas”, como ficou conhecido, foi publicado em 1883 pela abolicionista Gazeta da Tarde, de José do Patrocínio. O país, junto com Cuba, eram os últimos países escravistas das Américas. A obra traduzida de Douglass teve papel importante por estas terras, sendo comparado a uma águia heroica, que tinha a capacidade de pairar nos altos pontos da sociedade. Suas considerações sobre os países sul-americanos não estavam em suas autobiografias, mas em artigos jornalísticos e alguns discursos. Atento a toda conjuntura, combatia a utilização da ciência pelos burgueses norte-americanos para justificar o racismo e apontava que outras nações escravistas, como o Brasil, poderiam dar a falaciosa impressão de que o Norte dos EUA era uma região muito mais avançada e mais progressista, uma vez que já havia decretado a abolição desde as primeiras décadas do século XIX. Na realidade, apesar da abolição e do trabalho livre, o norte passava a impor agora a prisão das concepções burguesas de liberdade.

Falecido no fim do século, em 1895, faltou-lhe maior clareza para uma luta efetivamente socialista, principalmente por estar, em seus últimos anos, dentro do Estado burguês. Contudo,  Frederick Douglass foi uma figura extraordinária de sua geração, possuindo uma vasta obra de artigos, livros e discursos que explicam as conjunturas norte-americanas – e de todo o continente – no século XIX. Trata-se de um potente revolucionário que deve ser estudado com atenção e recordado com prestígio pelos trabalhadores de nosso tempo. 

Da morte de Douglass até o fim das Leis Jim Crow setenta anos se passaram com os trabalhadores negros segregados e aviltados brutalmente. Essa demora só nos demonstra que as conquistas são realizadas pela unidade entre a classe trabalhadora, a aliança operária com todos os demais produtores e a juventude, nunca com ações que apartam os trabalhadores por etnias ou culturas. Dessa forma, compreendemos que são histórias e expressões como estas que expõem as tradições revolucionárias dos Estados Unidos, que devem seguir sendo férteis para nossa formação e atuação no presente.