FTX e o colapso das criptomoedas: a bolha estoura, mas a roleta continua a girar

Nota da redação: O fundador da corretora de criptomoedas FTX, Sam Bankman-Fried, foi preso na segunda-feira (12/12), nas Bahamas. Esse foi mais um episódio da mais recente explosão de uma bolha especulativa do mercado financeiro. Este artigo publicados antes da prisão ajuda a entender esse desdobramento de um ponto de vista do marxismo.


Os investidores pedem um “time out” para as criptomoedas após a queda da FTX e por arrasto do seu fundador Sam Bankman-Fried. Mas este episódio é apenas o último de uma longa série de bolhas especulativas – um sintoma da insanidade capitalista.

O súbito e infame colapso da FTX, uma das maiores plataformas mundiais de troca de criptomoedas, provocou ondas de choque significativas através do altamente especulativo e volátil mundo dos autoproclamados bens digitais.

O Bitcoin despencou abaixo dos 17 mil dólares por moeda, desde o máximo alcançado acima dos 70 mil dólares. E outras infames criptomoedas têm experimentado quedas similares. Muitos investidores ficaram nas lonas com o colapso da FXT, com o fundador desta empresa estimando que seriam necessários 8 bilhões para ressarcir todos os clientes.

Uma série de alarmes estão agora disparando com a hipótese deste colapso poder contaminar o resto da economia global. Há até quem proclame que este colapso possa marcar o princípio do fim das criptomoedas.

Sinais de aviso

Tanto investidores como economistas ficaram abalados e em choque com este espetacular fim do “estado de graça” das criptomoedas, da FTX e do seu “rapaz-maravilha” Bankman-Fried. Mas, na verdade, os sinais estavam à vista de todos desde há algum tempo. Contudo, tal como diz o ditado, não há pior cego que aquele que não quer ver.

Desde o princípio que os marxistas têm repetidamente alertado que as criptomoedas fundamentalmente não são diferentes de outras bolhas especulativas vistas ao longo da História: desde a queda dos investimentos sustentados pelas hipotecas imobiliárias que lançou a crise de 2007-08, passando pela empresas “dot-com” que estiveram no centro do crash de 2001, recuando até a famosa Mania das Tulipas holandesas no séc. XVII.

A incrível implosão das criptos – combinada com a atual crise que enfrenta o setor high-tech e as suas ações sobrevalorizadas – revela a podridão subjacente ao capitalismo dos nossos dias.

A vasta maioria destes investimentos são, na verdade, fraude e lixo. Não obstante, confrontados com a incerteza e caos da economia real, os capitalistas crescentemente estão a dirigir-se para essas roletas financeiras no lugar de sujarem as mãos na real produção de bens e serviços.

Tais orgias especulativas são, portanto, sintoma do impasse capitalista à escala mundial, um sinal da desgeneração e fragilidade senil do sistema capitalista, que é incapaz de desenvolver as forças produtivas como o fez no passado.

Fraude e Jogo

Quando houve o seu colapso, a FTX (sediada nas Bahamas) era a segunda maior plataforma de trocas de criptomoedas do mundo. A par da sua rival Binance, era responsável pelo processamento das trocas de criptomoedas em todo o mundo, recebendo uma comissão em cada transação.

A queda da FTX foi precipitada por um artigo da CoinDesk alertando para a disseminada fraude e trapaça. De acordo com jornalistas, o braço financeiro da FTX, uma firma chamada Alameda (também propriedade de Bankman-Fried), encontrava-se na posse de bilhões de dólares das próprias criptomoedas da FTX. Pior do que isso, vários relatórios sugeriram que esses ativos eram usados como garantias para os empréstimos solicitados.

Todos esses empréstimos na casa dos bilhões de dólares gerados pela plataforma de troca da FTX eram, por sua vez, usados pela Alameda para especular em cima de outras criptomoedas.

À medida que os mercados de criptomoedas começaram a cair no princípio deste ano, os prejuízos se alastraram por todo o sistema. E por cada peça do dominó que caia, bilhões em “ativos” eram obliterados. No fim desta reação em cadeia estava a Alameda, cujas perdas significativas ameaçavam o reembolso dos empréstimos contraídos. Escandalosamente, Bankman-Fried decidiu usar o fundo de clientes da FTX para tapar os buracos da Alameda. A certa altura a Alameda devia 10 bilhões à FTX. Um castelo de cartas, portanto.

A somar a tudo isto, bilhões foram apostados pela FTX e Alameda no altamente volátil mercado de capitais de risco e cripto investimentos. Por exemplo, 5,4 bilhões foram investidos pela FTX em quase 500 cripto empresas e fundos de risco, incluindo 1,15 bilhões injetados pela Alameda na empresa de mineração digital Genesis Digital Assets.

Quase todas estas companhias de criptomoedas foram duramente atingidas com o aumento das taxas de juro e o fim do acesso ao crédito barato, o que motivou os investidores a procurarem refúgios seguros para o seu dinheiro.

À medida que a maré baixava, firmas duvidosas como a FTX revelavam-se. Fugas de informação sobre a sua contabilidade mostraram que o negócio de Bankman-Fried era gerido como um esquema em pirâmide, baseado inteiramente na especulação em criptomoeda. As contas claramente não batiam, com um gigantesco buraco onde os fundos dos clientes deveriam estar.

Descobriu-se que os lucros parasitas da FTX foram canalizados para a Alameda que, por sua vez, pedia dinheiro emprestado apresentando como garantias as criptomoedas criadas pelo próprio Bankman-Fried!

Porém, tal como todas as demais criptomoedas, as criptomoedas da FTX não têm um valor intrínseco. E o seu valor de mercado parece ter sido assegurado simplesmente pela promessas de compra da própria FTX .

Mas sem nada mais que promessas vazias e arrogantes certezas a suportar toda esta cabra-cega financeira, assim que o quadro real da situação se revelou aparente, o castelo de cartas Bankman-Fried rapidamente ruiu.

Capital Fictício

Karl Marx abordou estes jogos de espelhos em O Capital. Ele designou estas operações como “capital fictício”: dinheiro que circulava na economia como capital – dinheiro investido para produzir mais dinheiro – mas sem correspondente real de valor.

O capital fictício assume diversas formas sob o capitalismo: desde títulos emitidos pelos governos até ações de bolsa e quotas de sociedades. O que todos estes pedaços de papel têm em comum é a possibilidade de serem comercializados como se eles próprios contivessem valor real, intrínseco. Mas na verdade eles são meras reivindicações em futuros ganhos (sejam receitas de impostos ou lucros corporativos) que ainda não existem – e podem nunca vir a existir!

O mesmo processo acontece quando os bancos criam moeda através de empréstimos. Habitualmente dá-se o caso que bens reais, com verdadeiro e genuíno valor são usados como garantias desses empréstimos, como propriedades ou outras mercadorias, proporcionando-lhes uma âncora material. Contudo, no caso da FTX e Alameda, o dinheiro pedido emprestado estava a ser assegurado por um capital ainda mais fictício, sob a forma de criptomoedas que eram consideradas valiosas, simplesmente porque os seus criadores (aqueles que pediam os empréstimos) afirmaram que elas eram valiosas baseados na procura especulativa de criptomoedas.

De Bestial a Besta

De acordo com o Financial Times, um dia antes da bancarrota da FTX , a companhia tinha apenas 900 milhões de ativos transacionáveis, contra uns astronômicos 9 bilhões de obrigações em dívida. De fato, no princípio do mês, o maior (suposto) ativo da FTX eram 2,2 bilhões de uma criptomoeda chamada “Serum” – essencialmente uma unidade de valor inventada pelo próprio Bankman-Fried.

Os investidores rapidamente se assustaram quando a viabilidade da empresa começou a ser questionada. Uma leva de saques tomou lugar (incluindo 5 bilhões apenas num único dia, em 6 de Novembro) e o valor da companhia colapsou de um dia para outro, forçando a sua bancarrota. Em poucos dias a fortuna pessoal de Bankman-Fried – considerado até aí um herói do mundo das criptomoedas – caiu de estimados 16 bilhões para um redondo zero.

Espiões e Vigaristas

Rasgando o véu da sofisticada aparência dos ativos digitais, o que temos por detrás é simplesmente outro esquema em pirâmide, típico do capitalismo, como tantos outros no passado. A ruína de Sam Bankman-Fried é uma das mais rápidas e humilhantes da história recente. A dada altura a FTX tinha o apoio de reputados investidores como a Blackrock, bem como de celebridades como Katy Perry.

O rei das cripto também era um dos principais doadores do Partido Democrata nos Estados Unidos, e era um dos proeminentes defensores do culto do “altruísmo eficaz” das elites filantrópicas. No fim, Bankman-Fried expôs-se a si próprio como pouco mais que um charlatão vendedor de banha da cobra, um corrupto financeiro ganancioso, tal como todos os outros.

E não podemos esperar nada mais do que isto de um sistema que encoraja e facilita a trapaça, o jogo especulativo e o parasitismo do lucro fácil. E nenhuma quantidade de regulação irá alguma vez pôr um fim neste tipo de fraudes e canalhices.

Cassino Capitalista

A moda em torno das criptomoedas pode estar chegando ao fim. Mas estes ativos digitais são apenas um exemplo de uma longa história de bolhas especulativas. Tais calamidades são uma característica intrínseca do sistema capitalista, que é orientado para o lucro acima de tudo. A desenfreada especulação a que assistimos hoje – e em prévios episódios similares – reflete a completa anarquia do capitalismo e do mercado.

Instabilidade e crise são o resultado irracional de um processo que é completamente racional para cada capitalista individual, enquanto investidores que põem o dinheiro onde quer que consigam obter o maior, mais rápido e mais fácil lucro. A especulação não é algo somente confinado a coisas inúteis como a Bitcoin, ou que apenas toma lugar na bolsa de valores. A especulação permeia toda a economia sob o capitalismo, incluindo necessidades vitais como habitação ou comida, alimentando a espiral de inflação.

Nada desta especulação providencia qualquer coisa de útil para a sociedade, ou enriquece alguém senão os super-ricos: é apenas um meio para míopes e egoístas capitalistas realizarem lucro fácil às custas de todos os demais.

O colapso da FTX pode marcar o fim das criptomoedas. Mas caso isto suceda ou não, é relativamente indiferente. Se não forem as criptomoedas, enquanto a insanidade capitalista permanecer, outra coisa qualquer eventualmente virá tomar o seu lugar como campo de especulação; o ciclo caótico repetir-se-á com a regularidade de um relógio; e de todas as vezes, serão sempre as pessoas comuns que sofrerão as consequências.

A única forma de pôr um fim a esta loucura é acabar com o capitalismo e lutar pelo socialismo – um estado superior de sociedade baseada na consciente, racional e democrática planificação da economia. Só então nos libertaremos das anárquicas e cegas forças do mercado, fechando a porta, de uma vez por todas, ao cassino capitalista.


Tradução de Rui Faustino.