Fundação Palmares: defenestrando os “inimigos” da temática negra

No último dia 11 de junho a Fundação Palmares, na figura de seu presidente Sérgio Camargo, ganhou, mais uma vez, as manchetes dos veículos de comunicação. Nesse episódio, a Fundação torna público um relatório intitulado “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista”. Segundo consta no relatório entre os 5.300 livros encontram-se “obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha“. A fundação ainda justifica argumentando que essas obras não correspondem à ideologia do órgão, são marxistas, estão velhas e em desacordo ortográfico.

Entre os autores das obras “mal faladas”, pode-se encontrar autores como Marx, Engels e Lenin, além de Max Weber, H. G. Wells, Celso Furtado entre outros. O conjunto de obras “desviantes” ainda contam com Câmara Cascudo e Machado de Assis. Em relação ao último, o relatório faz a seguinte observação:

Hoje, quem desejar ler na Palmares, por exemplo, ‘Papéis Avulsos’, de Machado de Assis, encontrará uma edição de 1938, a qual prestará um desserviço ao estudante brasileiro, pois ele aprenderá a escrever ‘chronica’ em vez de ‘crônica’; ‘Hespanha’ em vez de ‘Espanha’; e ‘annos’ em vez de ‘anos’. É um exemplar que só pode ser utilizado por linguistas ou estudiosos machadianos, mas não pelo público em geral”.

As obras foram classificadas em grupos como: “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos'”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lenin e Stalin” e “material obsoleto”.

Dentre o festival de absurdos o documento ainda destaca que o acervo da fundação conta com 9.565 títulos, dos quais 46% são de temática negra, enquanto 54% são de temática alheia à negra. A situação nos pareceria mais insólita, não fosse o fato de Sérgio Camargo ter sido nomeado por Bolsonaro. Lembremos que foi o mesmo Sérgio Camargo que chamou o movimento negro de escória maldita, cortou os investimentos em ações de fomento à cultura negra e na defesa de quilombolas e terreiros.

Em que pesem as diferenças que temos em relação a algumas políticas e movimentos raciais no Brasil, esse episódio reforça uma vez mais que, quanto mais o racismo, a desigualdade, a repressão, o encarceramento, o desemprego, a fome e a miséria não forem tratados sob a perspectiva de classe, a divisão entre os membros da classe trabalhadora jogará a favor dos interesses da burguesia.

Partindo dessa cartilha, Sérgio Camargo foi o representante negro escolhido por Bolsonaro para aplicar corretamente a política desse governo negacionista e declaradamente anticientífico, daí que negar que não haja relação entre a temática negra e a luta de classes, ou com a produção atemporal de um dos expoentes da literatura brasileira, está de acordo com os interesses que ele representa.

Queimar livros e documentos, defenestrá-los ou expurgá-los é uma prática que acompanha a humanidade há séculos. O medo do registro material do conhecimento é real e há sérias razões para temê-lo. Desde a biblioteca de Alexandria, passando pela queima de papiros, dos códices pré-hispânicos, não foi à toa que a Igreja também tenha se encarregado fortemente dessa prática, assim como diversos regimes totalitários mundo a fora. Se desfazer de livros é uma velha forma de censura e opressão, embora nenhum esforço nesse sentido tenha garantido o desaparecimento de qualquer ideia. Historicamente esses episódios são retratados na literatura, no teatro e no cinema, o que sempre nos leva a refletir que a humanidade tem seguido seu curso a despeito dessas investidas desesperadas.

Fazendo uma analogia com o filme de François Trouffaut de 1966, Fahrenheit 451, o governo Bolsonaro se cercou de bombeiros que tem o papel de manter os incêndios acesos. Evidentemente que, como no filme, sempre haverá um limite para esse tipo de ação, porque o número de jovens dispostos a ler e aprender a história da humanidade cresce exponencialmente pelo mundo, e esse desejo incontrolável de entender e devorar o conhecimento não deixa a menor chance de vitória para os apologistas da mediocridade. Haja vista a quantidade de vezes que isso aconteceu na história e que nenhuma revolução política, artística ou científica deixou de seguir seu curso, podemos inferir a partir de uma análise materialista dialética que um mundo novo sempre nasce de um mundo velho, obsoleto e cheio de contradições sociais.

Nesse sentido, creio não ser necessária aqui uma defesa exaustiva da importância das obras de Marx, Engels e Lenin para a compreensão do sistema econômico a partir do qual organizamos nossas vidas e vivemos sob o julgo da exploração de uma classe sobre a outra. Por outro lado, esse tipo de episódio envolvendo a gestão de Sérgio Camargo na Fundação Palmares reforça a necessidade de nos organizarmos em classe para conquistarmos o direito de vivermos em mundo onde nossas crianças e nossos jovens não sejam privados nem criminalizados por consumirem história, política, arte, literatura e ciência, livremente.