Gaza: começa a ofensiva terrestre – mas e depois?

O exército israelense, depois de muitas evasivas, finalmente iniciou operações terrestres em Gaza no fim de semana (28/10). Mas não foi uma invasão em grande escala. Os líderes militares israelenses estão plenamente conscientes do grande risco para os seus próprios soldados se iniciarem combates rua a rua com tropas no terreno. Também têm receio de dar ao Hezbollah a desculpa que necessita para ampliar o conflito, abrindo uma segunda frente na fronteira norte com o Líbano. Então, para o que estão Netanyahu e os seus generais se preparando?

De acordo com o Financial Times, Amir Avivi, ex-vice-comandante da Divisão de Gaza das FDI, disse: “Não vamos correr nenhum risco. Quando os nossos soldados manobram, fazemos isso com artilharia maciça, com 50 aviões sobrevoando tudo o que se move.”

Na verdade, o bombardeamento intensificou-se na sexta-feira e atingiu a intensidade mais elevada até agora, com cerca de 600 alvos atingidos. Isto elevou agora o número de mortes palestinas para mais de 8.300, um número que está tragicamente destinado a continuar crescendo.

Linguagem belicosa

As declarações de Netanyahu, do seu ministro da Defesa e de muitas figuras políticas e comentaristas importantes dentro de Israel são extremamente belicosas, enfatizando o fato de que estão em guerra e que agora não é o momento para se falar de “pausas humanitárias” ou de cessar-fogo. Estão determinados a esmagar e destruir o Hamas, independentemente das consequências para a população civil de Gaza.

Netanyahu fez um discurso no dia 29 de Outubro anunciando a “segunda fase da guerra”, no qual disse: “Tens de te lembrar do que Amaloque te fez, diz a nossa Bíblia Sagrada”. E o que Deus deveria ter dito, naquele bom livro, aos antigos israelitas? Em 1 Samuel 15:3, lemos o seguinte: “Agora vai e fere Amaleque, e destrói totalmente tudo o que eles têm, e não os poupes; mas matem tanto homem como mulher, criança e criança de peito, boi e ovelha, camelo e jumento.” Em Deuteronômio 25:19 encontramos isto: “…apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu…”

A linguagem do Antigo Testamento é verdadeiramente genocida. Estas palavras significam nada menos do que a aniquilação total de um povo. Os amalequitas eram um povo antigo que habitava o deserto de Neguev, considerados inimigos ferrenhos dos israelitas. E o bom Deus dos antigos judeus – o mesmo Deus que tanto os cristãos como os muçulmanos hoje consideram como seu – não era do tipo “dá a outra face” e “ama o teu próximo”. Não, ele era como todos os deuses do mundo antigo: um Deus vingativo e irado, que apoiaria os seus adoradores em qualquer guerra que travassem contra os seus inimigos. E é isso que Netanyahu invoca hoje!

As declarações de Netanyahu, de seu ministro da Defesa e de muitas figuras políticas e comentaristas importantes dentro de Israel são extremamente belicosas / Imagem: Instituto Hudson, Wikimedia Commons

Esta linguagem sanguinária também pode ser explicada pela sua própria e frágil posição na política israelense. Ele é o primeiro-ministro, mas é do conhecimento geral que, se tivessem havido eleições antes dos ataques de 7 de Outubro, ele provavelmente teria sido eliminado. Mesmo depois do ataque, as sondagens revelam que Netanyahu é profundamente impopular e considerado responsável pela enorme falha dos serviços de informação que permitiu ao Hamas apanhar de surpresa as forças de segurança israelenses. Uma grande maioria quer que Netanyahu renuncie assim que a guerra termine.

Em uma tentativa de rechaçar as críticas, ele tentou descarregar a culpa pelo total despreparo do governo e das forças de segurança sobre outros. No domingo, ele tuitou que os chefes dos serviços de segurança lhe garantiram que tudo estava sob controle no que diz respeito ao Hamas. A reação contra ele foi tamanha que, em poucas horas, ele teve que deletar o tweet e pedir desculpas.

Todos estão cientes do fato de que a promoção do Hamas como contrapeso à Autoridade Palestiniana foi obra de Netanyahu. Na verdade, um editorial do jornal mais antigo de Israel, Haaretz, denunciou recentemente Netanyahu por ter permitido que milhares de milhões de dólares fossem transferidos para o Hamas através do Qatar. Foi avisado de que se tratava de uma estratégia perigosa, mas prosseguiu mesmo assim, encarando-a como um meio de manter os palestinos divididos entre Gaza e a Cisjordânia. Ele acreditava que esta política de manter os palestinos fracos e divididos tornaria completamente impraticável a ideia de uma solução de dois Estados e permitiria a continuação da anexação de terras palestinas.

Agora, esta política voltou a tocá-lo e ele está manobrando desesperadamente para manter a sua posição como primeiro-ministro. Isto explica toda a sua arrogância e postura como líder de guerra, com todas as citações do Antigo Testamento, e a necessidade de destruir o povo inimigo.

Agora, pode não estar nas mãos de Netanyahu aniquilar um povo inteiro, mas ele está no processo de realizar a maior carnificina de palestinos que alguma vez vimos. Aqui, vale a pena observar o que algumas importantes figuras israelenses têm dito. Duas pessoas proeminentes vêm à mente: Giora Eiland, pesquisador associado sênior do Instituto de Estudos de Segurança Nacional e ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel; e Naftali Bennet, o 13º primeiro-ministro de Israel de junho de 2021 a junho de 2022, e líder do partido Nova Direita de 2018 a 2022.

Eis como Eiland abriu sua declaração em 12 de outubro:

“…Israel não pode ficar satisfeito com nenhum outro objetivo que não seja a eliminação do Hamas em Gaza como órgão militar e governamental. Qualquer coisa menos seria um fracasso israelense. […] Uma opção é uma operação terrestre massiva e complexa, sem levar em conta a duração e o custo, enquanto a segunda opção é criar condições onde a vida em Gaza se torne insustentável. […] Israel precisa criar uma crise humanitária em Gaza, obrigando dezenas de milhares ou mesmo centenas de milhares a procurar refúgio no Egito ou no Golfo” (ênfase minha).

Se você pensar que a visão de Eiland é marginal dentro da elite dominante sionista, seria suficiente olhar para a crise humanitária que os militares israelenses já infligiram ao povo palestino em Gaza. Suas palavras foram traduzidas em realidade no terreno. As atuais ações das FDI foram antecipadas por Eiland: “Do nosso ponto de vista, todos os edifícios em Gaza conhecidos por abrigarem quartéis-generais do Hamas, incluindo escolas e hospitais, são considerados um alvo militar. Cada veículo em Gaza é considerado um veículo militar que transporta combatentes…”

Ele vai ainda mais longe quando afirma: “[O ataque de 7 de Outubro] é comparável ao ataque japonês a Pearl Harbor, que levou ao lançamento de uma bomba atômica no Japão. Como resultado, Gaza tornar-se-á um lugar onde nenhum ser humano poderá existir […] não há outra opção para garantir a segurança do Estado de Israel. Estamos travando uma guerra existencial.” (ênfase minha).

Mais uma vez, é exatamente isto o que está acontecendo agora em Gaza.

Se talvez esperasse este tipo de linguagem de um antigo chefe da segurança nacional, basta olhar para o que o “político” Naftali Bennett (ele próprio um colono na Cisjordânia) tem a dizer. Ele propõe “um cerco completo” à parte norte de Gaza e recomenda que as FDI “usem continuamente o poder de fogo contra o Hamas em toda a Faixa”. E depois: “Para criar uma nova faixa de segurança com 2 km de profundidade no território da faixa ao longo de toda a nossa fronteira, uma faixa permanente. Isto ocorreria através do uso de enorme poder de fogo, de forças terrestres e engenharia. Imaginem escavadeiras simplesmente nivelando a área.”

A “segunda fase” da guerra

Contudo, conseguir tudo isto em toda a Faixa de Gaza não é tão fácil. Para começar, os palestinos recusar-se-ão a aceitar tudo isto sem fazer nada. Eles estão resistindo de todas as maneiras que podem e contam com a enorme simpatia dos trabalhadores e dos jovens de todo o mundo.

Então, o que está realmente acontecendo no terreno, do ponto de vista militar? A IDF não irá tornar públicos os seus planos, é claro. Portanto, temos de nos basear no que eles estão fazendo agora e também tentar compreender a situação a partir do que dizem os comentaristas sérios.

O ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmou que os militares israelenses entraram agora “em uma nova fase na guerra”. Esta não é uma invasão terrestre completa e total. Envolve um aumento maciço de bombardeamentos aéreos, combinado com a entrada de um número limitado de tanques e de tropas terrestres. Isto é lógico se considerarmos quão sangrentos seriam os combates de rua em rua, de casa em casa, com um enorme risco para os soldados israelenses. O exército seria desacelerado em meio à miríade de ruas, muitas delas reduzidas a escombros, criando uma situação em que os combatentes do Hamas poderiam realizar ataques surpresa, emboscadas, etc., incluindo a utilização de foguetes antitanque, o que já fizeram nas primeiras escaramuças.

O ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmou que os militares israelenses entraram agora em “uma nova fase da guerra” / Imagem: domínio público

Os chefes do exército israelense estão em contacto estreito com os altos escalões das forças armadas dos EUA, que também prestam conselhos com base em experiências passadas de tomada de áreas densamente povoadas, como Mosul (ver o nosso artigo anterior) ou Fallujah no passado. E como avisou o antigo chefe do Comando Central dos EUA, General Joseph Votel: “serão combates sangrentos e brutais”. O próprio Gallant afirmou que a guerra poderia durar meses. Bennet, citado anteriormente, chegou ao ponto de afirmar que a guerra poderia durar “entre 6 meses e 5 anos”. Por mais que dure, não será uma operação rápida de algumas semanas, como nas invasões passadas de Gaza.

Os militares israelitas tinham duas opções: 1) uma invasão terrestre total, ou 2) uma campanha mais prolongada, na verdade uma espécie de cerco a Gaza.

Eles desejam evitar a primeira opção, porque entendem que ela poderia desencadear muito rapidamente um conflito mais amplo, uma vez que poderia atrair o Hezbollah para os combates na fronteira norte de Israel. Por enquanto, parece que o Hezbollah está limitando o seu envolvimento a escaramuças de baixa intensidade, sem entrar em uma guerra total.

O Hezbollah não é uma milícia maltrapilha. Possui tropas endurecidas pela sua intervenção na guerra civil síria e tem capacidade de mobilizar entre 30 mil e 50 mil combatentes, contando com um arsenal de mais de 100 mil foguetes. Em 2006, as FDI tiveram de se retirar depois de encenar uma invasão apressada do Sul do Líbano. A mera ameaça do Norte já fez com que cerca de 100 mil soldados israelenses fossem mobilizados para a fronteira libanesa. Os militares israelenses prefeririam que as coisas permanecessem neste nível, sem terem de entrar em guerra em duas frentes.

A ameaça de um envolvimento mais amplo, não apenas do Hezbollah, mas de outros representantes iranianos na região, é real. Já houve ataques a bases dos EUA no Iraque e na Síria, aos quais os EUA foram forçados a responder com o bombardeamento do que são consideradas bases de milícias apoiadas pelo Irã em ambos os países. O Hamas, de fato, lançou um apelo à realização de ataques contra os interesses dos EUA e de Israel na região, incluindo bases militares dos EUA e qualquer coisa ligada aos dois países.

Há grupos no Iraque, na Síria e na Jordânia que estariam preparados até para se juntarem à luta contra Israel em Gaza. O regime jordaniano está sentindo uma imensa pressão interna nesta situação e tornou-se extremamente instável. Corre até o risco de ser derrubado por convulsões em massa no país. Isto desestabilizaria ainda mais a região, com o surgimento de um regime hostil do outro lado do rio Jordão, em oposição ao atual, que preferiria esperar o fim do conflito e voltar às relações normais o mais rapidamente possível.

Os EUA, em particular, estão exercendo pressão para evitar qualquer coisa que possa agravar a guerra. Os EUA estão utilizando a questão dos reféns israelenses para pressionar Netanyahu e o seu governo a agirem com cautela. Isto também está causando divisões internas na sociedade israelense.

Imediatamente após o ataque de 7 de Outubro, o clima era fortemente favorável a uma resposta ao Hamas, mas desde então as opiniões mudaram um pouco. Um estudo realizado pela Universidade Hebraica de Jerusalém revela que as preocupações com os reféns mudaram a opinião das pessoas a favor de mais tempo para negociar a sua libertação. Dos 65% de apoio a uma invasão terrestre imediatamente após o ataque de 7 de Outubro, o nível de apoio caiu agora para 46%.

O Hamas anunciou que seria a favor de uma permuta de todos os reféns que mantém, em troca de todos os palestinos mantidos em prisões israelenses. Mas é evidente que Netanyahu tem pouca preocupação com os reféns. Ele diz que Israel irá resgatá-los através de uma invasão terrestre. Isto é uma indicação de que as vidas dos reféns são a última coisa que passa pela cabeça de Netanyahu. Sob pressão, foi forçado a encontrar-se com as famílias dos reféns, mas isso foi apenas uma tática para afastar as críticas deste lado.

A extrema direita dentro de Israel chegou ao ponto de retratar as famílias dos reféns como traidoras por ousarem pedir um cessar-fogo que permitisse o prosseguimento das negociações. Para estas pessoas, quaisquer concessões nesta frente são consideradas como uma derrota que fortaleceria a mão do Hamas.

Tudo isto explica a razão por que os militares israelenses preferiram uma campanha de cerco prolongada em vez de uma invasão terrestre total.

O plano parece envolver incursões rápidas para atingir alvos do Hamas, incitando os seus combatentes a sair para a luta e assim revelar a localização das suas bases, de seus lançadores de foguetes e outras posições estabelecidas, e depois bombardear fortemente essas posições. O problema, claro, é que os combatentes do Hamas estão plenamente conscientes disso e, na medida do possível, irão operar de forma a reduzir a exposição de todas as suas posições. Este processo será, de fato, sangrento, brutal e prolongado. Isso significaria que a Cidade de Gaza seria catastroficamente destruída e o número de mortos subiria para a casa das dezenas de milhares.

Que futuro aguarda Gaza?

Este é o cenário no curto prazo, mas que planos tem o governo israelense para Gaza quando esta carnificina terminar? A resposta simples é que não há plano. Até mesmo as autoridades dos EUA expressaram total surpresa por não ter sido dada qualquer atenção a isto. Gaza ainda terá de ser administrada e governada por alguém. Quem será?

Os israelenses afirmam abertamente que não pode ser o Hamas. Eles prefeririam que a Autoridade Palestina (AP) assumisse o controle. Mas Abbas, presidente da AP, já declarou que não entrará em Gaza montado em um tanque israelense. Ele já está por um fio, pois a AP está totalmente desacreditada entre todos os palestinos, inclusive na Cisjordânia. Não pode ser visto administrando Gaza para os israelenses.

Abbas, presidente da AP, afirmou que não entrará em Gaza nas costas de um tanque israelense / Imagem: Michel Temer, Wikimedia Commons

O ministro da defesa israelense, Gallant, afirmou que há quatro fases nesta guerra. A primeira foi a campanha inicial de bombardeio aéreo pesado de três semanas. A segunda é o que está acontecendo agora, envolvendo a busca de todas as bases do Hamas, de todos os combatentes, de todos os lançadores de foguetes, e destruí-los completamente. Como explicamos, isso levará muito tempo – e poderá nunca ser totalmente alcançado. Mas, então, o que acontecerá?

Segundo o The Times of Israel (29 de outubro):

“[…] os militares estão se preparando para uma terceira fase intermédia de combates, durante a qual começarão a procurar uma nova liderança para o enclave devastado, ao mesmo tempo que erradicam ‘bolsas de resistência’.

“Só depois deste conflito de menor intensidade, que também se estima que dure vários meses, disse Gallant, Israel fará a transição para a sua fase final: a desconexão da Faixa de Gaza. […]” (grifo meu)

O que envolve essa “desconexão”, segundo o governo israelense? Aqui, nem Gallant sabe. Como aponta o mesmo artigo:

“Além de dizer que nem Israel nem o Hamas controlarão Gaza no rescaldo da guerra, o ministro da Defesa não detalhou o que essa desconexão acabaria por implicar. […] ‘O que quer que aconteça a seguir será melhor, seja o que for’, disse Gallant.”

Bem, se Gallant não tem ideia do que fazer quando esta guerra terminar, voltaremos a Naftali Bennet – que, não esqueçamos, foi muito recentemente o primeiro-ministro de Israel – e ver se ele nos consegue dar uma ideia do que estão pensando.

No curto prazo, ele diz que os residentes de Gaza deveriam ou mudar-se todos para o sul – embora também estejam sendo bombardeados lá – ou realmente sair completamente da Faixa de Gaza e tornarem-se refugiados, o que constituiria uma preocupação para outros países. Isto equivale a uma ameaça de limpeza étnica real em grande escala, evocando memórias da Nakba de 1948 e do deslocamento de 750 mil palestinos expulsos das suas casas e aldeias.

Bennet está ciente deste problema e, portanto, sugere que a mudança seria temporária! E assim que a destruição total da Cidade de Gaza tiver lugar, os palestinos serão autorizados a regressar às suas casas inexistentes. Então Israel lavaria as mãos com relação aos palestinos de Gaza, deixando de fornecer água e eletricidade, cessando o comércio com o enclave e cercando-o completamente.

Essa seria a quarta e última fase desta guerra, que veria, segundo Gallant, “a eliminação da responsabilidade de Israel pela vida na Faixa de Gaza e o estabelecimento de uma nova realidade de segurança para os cidadãos de Israel”. Isto – como vimos – seria garantido por uma faixa de dois quilômetros, uma espécie de terra de ninguém dentro da Faixa de Gaza, ao longo da fronteira com Israel.

Uma guerra que prepara mais guerras

Assim, o que estamos vendo é uma guerra longa e prolongada, com destruição maciça das infraestruturas de Gaza, com um grande número de vítimas civis, e então Israel lavaria as mãos de qualquer responsabilidade futura por Gaza, deixando os palestinos entregues à sua própria sorte. Se as pessoas que governam Israel hoje acreditam que esta é uma solução, devem estar vivendo em outro planeta!

Analistas sérios afirmam que o Hamas não pode ser destruído. Sim, você pode matar muitos de seus combatentes, pode destruir muitas de suas bases e pode tentar matar sua liderança. O problema é que parte da liderança e da sua base de apoio não está em Gaza, mas sim no exterior. A destruição da Cidade de Gaza também significa que uma seção do Hamas e dos seus combatentes terão bases preparadas na parte sul da Faixa, o que significa que o exército israelense também teria de continuar a guerra bombardeando fortemente o sul.

Acreditar que, nestas condições, o povo de Gaza aceitaria uma administração imposta do exterior sob o comando de Israel é realmente viver em um mundo de fantasia. Há uma coisa que certamente a invasão israelense alcançará: toda uma nova geração de palestinos que terá acumulado um imenso ressentimento. Por cada combatente do Hamas morto, dez jovens estarão dispostos a pegar em armas como resultado deste conflito. O terreno estará preparado para mais e mais sangrentos conflitos entre palestinos e israelenses.

Os imperialistas ocidentais estão plenamente conscientes de tudo isto, mas estão em uma posição muito débil. O que é mais evidente é o quanto os Estados Unidos se tornaram mais débeis nesta situação. Aqui temos a nação imperialista mais poderosa que o mundo alguma vez viu, com uma enorme força militar e mais de 700 bases militares em cerca de 80 países em todo o mundo, e ainda assim está se revelando incapaz de manter o controle sobre a situação. Limita-se a “aconselhar” Netanyahu sobre o que fazer, a alertá-lo para não ir longe demais, a pensar cuidadosamente antes de adotar qualquer medida arriscada.

Analistas sérios afirmam que o Hamas não pode ser destruído / Imagem: IDF, Flickr

A fraqueza do imperialismo norte-americano também é revelada pelo que tem acontecido nas Nações Unidas. As resoluções são apresentadas ao Conselho de Segurança pelos russos, pelos brasileiros, pelos EUA, e são todas vetadas, mostrando ao mundo a verdadeira natureza daquele órgão.

Mas a recente aprovação de uma resolução não vinculativa na Assembleia Geral, apelando a uma trégua humanitária em Gaza, redigida pelos Estados árabes, aprovada por 120 votos a favor e 14 contra, com 45 abstenções, embora não tenha tido consequências práticas imediatas, revelou o quanto mais isolados ficaram os EUA e os seus aliados. Refletiu uma mudança no equilíbrio de forças entre as grandes potências. A heterogênea “coligação dos dispostos” de 12 países que apoia os EUA e Israel, inscreveu entre seus membros potências como a Áustria, a Hungria, as Ilhas Marshall e Tonga.

Isto também explica por que razão Biden é forçado a continuar repetindo o mantra da “ajuda humanitária” a Gaza, ao mesmo tempo em que continua a apoiar fundamentalmente o regime israelense. Ele até repetiu a posição de que, uma vez terminada esta guerra, será necessário procurar uma resposta política (em vez de militar) e que terá de ser considerada uma solução de dois Estados.

Isto é pura conversa fiada, porque a base material para uma solução de dois Estados foi destruída por décadas de colonização da Cisjordânia. Isto é algo que a mídia ocidental prefere não destacar muito. Antes do ataque do Hamas no sul de Israel, as FDI concentravam as suas operações militares na Cisjordânia, e com que finalidade? Apoiar a contínua invasão dos colonos judeus nas terras palestinas.

Até este Verão, cerca de 200 palestinos foram mortos por militares e colonos israelenses, a maioria deles na Cisjordânia. Isto fez parte de um esforço sistemático para estabelecer cada vez mais colonatos, o que levou a uma situação em que os palestinos na Cisjordânia temem pelas suas vidas enquanto tentam trabalhar as suas terras. Até a colheita da azeitona nos seus próprios campos tornou-se perigosa.

Em Junho, o governo de Netanyahu acelerou a aprovação de milhares de novas unidades habitacionais para colonos na Cisjordânia (ver: Israel acelerando a expansão dos colonatos na Cisjordânia ocupada). Isto tudo foi antes do ataque do Hamas em Outubro. Desde então, aproveitando a situação, os colonos armados têm intensificado as suas operações, totalmente apoiados pelas FDI. Isto levou à morte de mais de 100 palestinos na Cisjordânia. O programa de colonatos ilegais, em vez de ser abrandado, está sendo enormemente acelerado. É um fato que, já hoje, não existe um único território palestino unificado digno de menção. Assim, a solução política a que Biden se refere não existe.

O atual cenário de pesadelo que o povo palestino enfrenta foi preparado por Netanyahu e por toda a classe dominante sionista, com o apoio do imperialismo norte-americano e de todas as potências imperialistas ocidentais, desde a Grã-Bretanha, à França, à Alemanha, e todas as outras potências menores que alinharam-se atrás da folha de parreira do “direito de Israel de se defender”.

Quando olham para uma guerra como a atual que ocorre em Gaza, os marxistas não descem ao nível de tentar descobrir “quem a iniciou”. Não iremos ignorar os 75 anos de ocupação brutal que precederam o ataque de 7 de Outubro e juntar-nos ao coro sionista e imperialista que atribui a responsabilidade exclusiva ao Hamas. A lógica disto é culpar o povo de Gaza pelo pesadelo que atualmente sofre: o mesmo que culpar a vítima de um crime.

Este conflito é a continuação de uma política que tem raízes anteriores ao estabelecimento de Israel em 1948, quando 750 mil palestinos foram etnicamente eliminados da sua terra natal. E neste conflito histórico, é o povo palestino que foi privado de uma pátria e que contra-ataca, à medida que cada vez mais as suas terras lhes são tiradas.

Hoje, o povo palestino está sendo lembrado da Nakba como nunca antes. E a classe dominante sionista nem sequer esconde o fato de apoiar a colonização da Cisjordânia, em particular. Eles prosseguiam com esta política antes de 7 de Outubro, e agora a estão aumentando ainda mais, com mais de 700 mil colonos judeus a viver na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e nas Colinas de Golã (território sírio ocupado).

Nesta guerra, é disso que se trata: o povo palestino foi assassinado, assediado, expulso das suas terras e, em Gaza, levado ao desespero e encerrado em uma gigantesca prisão ao ar livre. E os comunistas devem explicar tudo isto; eles devem usar todas as suas forças, toda a sua energia e os meios limitados à nossa disposição para combater a barragem de propaganda da classe capitalista em todos os cantos.

Contudo, não é suficiente contrariar esta propaganda. Tal como não basta apelar a um cessar-fogo (que, em qualquer caso, os israelenses e os seus apoiantes imperialistas não têm intenção de conceder), muito menos uma “pausa humanitária”, que os traiçoeiros reformistas e uma seção dos imperialistas apelam para permitir a entrada de uma pequena quantidade de ajuda em Gaza, após o que a carnificina deverá continuar. Nós, como comunistas, não lutamos por um regresso à mesma situação que levou à atual destruição de Gaza e à morte de milhares de pessoas.

Temos de explicar que a situação do povo palestino decorre do próprio capitalismo. É este sistema em crise que produz guerras, como a guerra na Ucrânia e a guerra no Iémen. Todos elas fluem de um sistema que deveria ter sido enterrado há muito tempo. Os povos do Oriente Médio simpatizam instintivamente com o povo palestino e muitos deles estariam preparados para lutar em defesa dos seus direitos.

Mas as elites dominantes da região, do Cairo a Riad, e todas as outras, não têm interesse em lutar genuinamente por uma Palestina livre. São os opressores do seu próprio povo e temem que qualquer envolvimento no conflito do lado da Palestina possa inflamar a situação interna, colocando o seu poder e privilégios sob ameaça. A julgar pelos protestos massivos que eclodiram em todo o mundo árabe em solidariedade com a Palestina, este é um medo justificado.

Os comunistas explicam que uma solução para a atual crise só pode ser encontrada através da luta de classes em toda a região, dos trabalhadores e pobres contra os ricos e poderosos, e contra os seus próprios governos podres. Ao reunir todas estas lutas, podemos começar a ver os contornos de uma futura Federação Socialista do Oriente Médio, que daria, finalmente, um fim a décadas de guerra e destruição.

Além disso, a opressão dos palestinos tornou-se um ponto focal para a ira dos trabalhadores e da juventude em todo o mundo, incluindo nos países imperialistas, que também assistiram a enormes protestos, desafiando a repressão e a calúnia burguesa. Isto faz do conflito atual um fator na luta mundial da classe trabalhadora.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.