Governos Lula e Dilma, caráter, programa e candidatura Haddad 2018

Os 13 anos de Lula e Dilma no comando do Brasil já começam a ficar nas lembranças. Neste momento o candidato presidencial do PT, Fernando Haddad, desponta como um dos postulantes ao segundo turno presidencial deste ano. Há aqueles que clamam por um voto útil, e por um agrupamento acrítico em torno dessa candidatura contra um mal maior. Seu programa, no entanto, chama-se “Plano Lula de Governo 2018”, sendo que seu maior cabo eleitoral é o próprio ex-presidente, que mesmo preso busca transmitir sua intenção de votos para seu substituto. Nesta situação, clarificar o caráter dos governos de Lula e Dilma e do programa que aplicaram proporciona um maior rigor teórico sobre essas duas questões e permite definir, de um ponto de vista dos trabalhadores, as formas corretas de intervir hoje na embrenhada crise política brasileira.

Essas caracterizações precisam ser feitas a partir do desenvolvimento político que o próprio Partido dos Trabalhadores viveu, assim como das atitudes concretas que Lula e Dilma desempenharam à frente do Governo Federal e do tipo de programa que aplicaram. Como marxistas precisamos analisar essas duas questões mirando o que está por trás de toda a propaganda promovida pelo aparato governamental e dos aparatos partidários e sindicais do PT, contando com o método do materialismo histórico como guia.

Uma precisão teórica

É comum entre petistas e antipetistas caracterizar os governos do PT, Lula e Dilma como reformistas ou frente populistas. Porém, vamos analisar a questão de uma perspectiva teórica e histórica mais ampla. O reformismo, ou revisionismo, foi definido pelos marxistas com uma das variações do oportunismo, política que sustenta a conciliação de classes e a cooperação do proletariado com a burguesia. Combatido enquanto ideologia burguesa destinada a obstruir o socialismo, o reformismo foi caracterizado como uma agência da burguesia na classe operária para liquidar o socialismo. Vladimir Lenin em 1916 explicou extensamente que os oportunistas eram estranhos ao proletariado, como classe, que eram servidores, agentes, portadores da influência da burguesia, e que o movimento operário, sem se libertar deles, permanece um movimento operário burguês, que defende a escravização dos operários pela burguesia imperialista através dos seus melhores agentes no movimento operário.[1]

Nas palavras de Rosa Luxemburgo, reformas sociais consistem na melhoria da condição do povo trabalhador dentro da ordem social existente, em favor de instituições democráticas. Porém, elas nada têm a ver com a normatização ou normalização do ordenamento da exploração capitalista sobre as massas. Em sua polêmica com Eduard Bernstein na virada do final do século 19, a revolucionária alemã assinalava primeiro o fundamento filosófico idealista da corrente teórica que nascia, e depois clarificava seu significado prático.

“De acordo com a concepção revisionista, diante da impossibilidade e da falta de sentido da conquista do poder, elas [as lutas políticas e econômicas] devem ser realizadas apenas com vistas a resultados imediatos, isto é, a melhoria da situação material dos trabalhadores e a limitação gradual da exploração capitalista e da expansão do controle social. Se deixarmos de lado a finalidade da melhoria imediata da situação dos trabalhadores, comum a ambas as concepções, tanto aquela até hoje usual no partido quanto a do revisionista, então toda a diferença resume a isto: de acordo com a concepção corrente, o significado socialista da luta sindical e política consiste na preparação do proletariado, isto é, do fator subjetivo da transformação socialista para a realização desta. De acordo com Bernstein, a luta sindical e política, por si própria, é capaz de gradualmente limitar a exploração capitalista, de remover cada vez mais o caráter capitalista da sociedade capitalista e impor-lhe um sentido objetivo.”[2]

O reformismo clássico do início século 20, de acordo com Rosa, não tem sua diferença com o que se almeja, mas em como se alcançar. Para essa revolucionária, verdadeiras reformas sociais são incompatíveis com as leis de desenvolvimento do regime capitalista, e a luta política e sindical realizada pelos revolucionários cumpre o papel de convencer o proletariado da impossibilidade de melhorar sua situação fundamental por meio dessa luta, e da inevitabilidade de uma conquista definitiva do poder por meio de uma revolução. Já na teoria reformista parte-se da impossibilidade da conquista do poder político, o que se torna um pressuposto para instaurar a ordem socialista apenas por meio da luta por reformas econômicas e políticas.

A definição de “reformismo” tinha na verdade um sentido irônico, pois destacava que a teoria e a prática dessa corrente faziam com que o proletariado perdesse qualquer referência no socialismo, e fosse desviado do objetivo da tomada do poder. Ao colocar a reforma social como um fim em si mesma, conduzia-se a um abandono do ponto de vista das classes, a uma política compensatória e a uma postura conciliadora. E isso colocava o reformismo diante da contradição de reduzir-se a um simples associativismo e a um reformismo social que não se apoiava em nenhuma superação das contradições das relações capitalistas. O reformismo clássico “desemboca, em última instância, na atenuação das contradições capitalistas e no remendo das feridas capitalistas, isto é, em outras palavras, em um processo reacionário em vez de revolucionário e, com isso, em uma utopia”[3]. Eram, portanto, os revolucionários – que compreendiam a luta por reformas como alavancas para a tomada do poder –, e não os reformistas, que compunham a corrente que genuinamente lutava por reformas sociais.

Como veremos neste artigo, os governos de Lula e Dilma e os programas que aplicaram podem ser caracterizados como oportunistas, no sentido teórico e histórico do termo cunhados tanto por Lenin quanto por Rosa. No entanto, nem os programas do PT, nem o legado deixado pelos governos liderados por esse partido foram reformistas em um sentido preciso, científico. E mais adiante esclareceremos a questão também das frentes populares em relação ao PT e aos governos que liderou.

A política do PT e de Lula antes de 2002

O PT nasce em 1980 como uma expressão de um ascenso proletário massivo que se desenvolvia em toda a sociedade brasileira no período anterior, e que era impulsionado pela desestabilização econômica e política vivida no mundo nessa época. No Brasil as massas passam a se mobilizar por suas reivindicações e pelo fim da Ditadura Militar que se instalara desde o golpe de 1964, o que coloca em questão o regime ditatorial e a forma de dominação burguesa estabelecida. Apoiados nas maiores manifestações de massa que o Brasil já havia conhecido, os principais dirigentes metalúrgicos do ABC paulista, com Lula à frente, convocaram a constituição do Partido dos Trabalhadores. Esse momento, suas raízes e desdobramentos é aprofundado por Serge Goulart no artigo “Sobre a origem e o desenvolvimento do PT”.

O programa político formulado por esse partido que surgia desse processo era confuso, mas apontava um combate independente da burguesia para organizar o proletariado por suas reivindicações e tomar o poder. Em sua Carta de Princípios, aprovada em 1º de maio de 1979, declarava seu compromisso em separar o proletariado da burguesia e de seus agentes:

“Numa sociedade como a nossa, baseada na exploração e na desigualdade entre as classes, os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se manterem organizados à parte, para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes.”

Esse mesmo documento assinalava uma compreensão das relações entre as classes e o caráter da burguesia e das elites dominantes do país, como se vê em trechos como este:

“O MDB, pela sua origem, pela sua ineficácia histórica, pelo caráter de sua direção, por seu programa pró-capitalista, mas sobretudo pela sua composição social essencialmente contraditória, onde se congregam industriais e operários, fazendeiros e peões, comerciantes e comerciários, enfim, classes sociais cujos interesses são incompatíveis e onde, logicamente, prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões, jamais poderá ser reformado. A proposta que levantam algumas lideranças populares de ‘tomar de assalto’ o MDB é muito mais que insensata: é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de setores de nossas classes dominantes.” (Grifo nosso)

A confusão da redação desse documento, que mesclava orientações revolucionárias com orientações reformistas, expressava a batalha entre as correntes políticas em seu interior. Essas correntes e a batalha entre seus programas e suas perspectivas representavam, por sua vez, a luta de diferentes forças sociais que por dentro desse novo partido se manifestavam e buscavam fazer prevalecer seus interesses. O caráter confuso dos primeiros documentos do PT expressa esse conflito político no interior desse novo partido. Em um primeiro momento, na esteira da poderosa entrada na cena política das massas trabalhadoras e exploradas, os elementos mais radicais do partido conseguiam fazer prevalecer uma orientação mais à esquerda, apoiados sobre as massas organizadas que haviam despertado para a luta política e a luta de classes e que atuavam e enxergavam no PT seu instrumento de combate:

“O Partido dos Trabalhadores entende que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores, que sabem que a democracia é participação organizada e consciente e que, como classe explorada, jamais deverá esperar da atuação das elites privilegiadas a solução de seus problemas.
(…)
[…] o PT proclama que sua participação em eleições e suas atividades parlamentares se subordinarão a seu objetivo maior, que é o de estimular e aprofundar a organização das massas exploradas.
(…)
Afirma, outrossim, que buscará apoderar-se do poder político e implantar o governo dos trabalhadores, baseado nos órgãos de representação criados pelas próprias massas trabalhadoras com vistas a uma primordial democracia direta.
(…)
O PT não pretende criar um organismo político qualquer. O Partido dos Trabalhadores define-se, programaticamente, como um partido que tem como objetivo acabar com a relação de exploração do homem pelo homem.
(…)
O PT afirma seu compromisso com a democracia plena, exercida diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia e nem democracia sem socialismo.”[4]

O Manifesto de Fundação do PT, aprovado em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, representa o mesmo embate de orientações expresso na Carta de Princípios:

“O Partido dos Trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política. Nasce, portanto, da vontade de emancipação das massas populares.
(…)
Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto no plano econômico quanto no plano social. O PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados e nem exploradores. O PT manifesta sua solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo.”[5]

Essa foi a época em que se derrotou a concepção de “PT, partido de toda sociedade” e em que foi vitoriosa a concepção de “PT, partido sem patrão”. Depois disso uma longa luta continuou se desenvolvendo no interior do partido, luta incessante entre as diferentes forças sociais que atuavam dentro dele, que se modificavam e que buscavam fazer prevalecer os interesses e os programas que as representavam. Após a campanha das “Diretas Já” (1983-1984), que transformou o PT num partido de massas, os cinco deputados que traíram o partido e foram ao Colégio Eleitoral da Ditadura Militar foram expulsos, contra a vontade de Lula e seus aliados, e a CUT foi fundada em 1983 como central sindical socialista e democrática.

Essa orientação política, contudo, altera-se em seu 5º Encontro Nacional, realizado em 1987, quando foi adotado, sob o comando de Lula e José Dirceu, o “Programa Democrático-Popular”. Isso iniciou uma mudança de qualidade no PT, o convertendo de partido operário independente em um partido operário burguês. O núcleo político do documento frisava:

“A realização de eleições diretas gerais em 1988, qualificadas por um programa democrático e popular de mudanças e reformas econômico-sociais com garantia de liberdades políticas e sindical, para a construção de um amplo movimento sindical e socialista de trabalhadores, é nossa resposta aos problemas sociais no momento atual da luta de classes. A crise da transição conservadora é a crise específica de uma certa forma de dominação burguesa, e não a crise geral do Estado ou do regime, uma crise de tipo revolucionária. O que está em questão é a possibilidade de conquista de um governo democrático e popular, com tarefas eminentemente antimonopolistas, antiimperialistas, antilatifundiárias, de democratização radical do espaço e da sociedade – tarefas estas que se articulam com a negação da ordem capitalista e com a construção do socialismo.”

E mais à frente afirma a estratégia que o partido passaria a adotar para chegar ao socialismo:

“Na luta pelo socialismo, é preciso distinguir dois momentos estratégicos que, apesar de sua estreita relação de continuidade, são de natureza diferente. O primeiro diz respeito à tomada do poder político. O segundo refere-se à construção da sociedade socialista sobre as condições materiais, políticas etc. deixadas pelo capitalismo.” [6]

Em outro trecho, o documento elenca um conjunto de “pontos básicos” que o programa propunha, entre os quais:

  • Revogação da Lei de Segurança Nacional, da Lei de Greve e da Lei de Imprensa;
  • Pelo rompimento com o FMI; pela realização de auditoria interna e contra o pagamento da dívida externa;
  • Exclusividade do Fundo Nacional de Desenvolvimento e dos fundos sociais para investimento nas áreas sociais, com proibição de repasse desses recursos para empreendimentos privados;
  • Direito ao ensino público e gratuito em todos os níveis para todos, com a proibição de o Estado destinar verbas para escolas privadas;
  • Criação de um sistema único de saúde estatal, público, gratuito, de boa qualidade, com participação, em nível de decisão, da população, por meio de suas entidades representativas; estatização da indústria farmacêutica;
  • Estatização dos serviços de transportes coletivos;
  • Estatização do sistema financeiro, garantindo crédito ao pequeno e médio produtor agrícola e industrial;
  • Reforma agrária sob controle dos trabalhadores, com fixação de módulo máximo da propriedade rural regional e definição de planos agrícolas com a participação dos trabalhadores;
  • Reajuste mensal automático de salários e remunerações, pensões e proventos dos aposentados de acordo com os cálculos do DIEESE;
  • Aposentadoria aos 30 anos de serviço para homens e 25 anos para mulheres, sem limite de idade e sem prejuízo para as aposentadorias especiais por algumas categorias de trabalhadores;
  • Jornada semanal máxima de 40 horas, sem redução de salários;
  • Estabilidade no emprego;

A lista de bandeiras com as quais o “Programa Democrático-Popular” se comprometia é maior e vale a pena ser conferida. A aparência desses “pontos básicos” impressionava pelo caráter positivo que resultaria na condição de vida, de trabalho e de luta política das massas trabalhadoras, reformas que se chorariam com a ordem capitalista. E esses “pontos básicos” levaram muita gente a encarar a orientação política do documento como reformista, o que ainda hoje serve como camuflagem de esquerda para as correntes do PT que rivalizam com a de Lula. Elas argumentam que o problema foi o abandono do “Programa Democrático-Popular” por Lula e pelo PT ao chegar ao poder.

Um programa stalinista no PT

Apesar de em uma análise superficial parecer um programa reformista, o centro teórico e político do “Programa Democrático-Popular” derivava não do reformismo, mas da teoria stalinista formulada em 1935 por Jorge Dimitrov no documento “A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo”[7]. Foram os elementos formulados por Stalin e Dimitrov que fundamentam uma política que ficou conhecida na história como “Frente Popular”.

Aqui vale a pena fazer uma breve retomada histórica, porque se relaciona com a história e o desenvolvimento do proletariado brasileiro. A política das “Frentes Populares” surge diante do desastre da política do “Terceiro Período”, que vinha sendo aplicada pela burocracia stalinista em nível mundial desde o 6º Congresso da Internacional Comunista (Comintern), realizado em 1928. O velho bolchevique Nikolai Bukharin definiu o “Terceiro Período” como um momento de colapso econômico do capitalismo e de radicalização das massas oprimidas. Já Leon Trotsky consagrou o termo ao usá-lo para caracterizar o “terceiro período de erros da Internacional Comunista”[8]. O resultado da tática aplicada a partir de 1928 foi uma política sectária, divisionista e mortal para o proletariado em escala mundial. Sua formulação mais célebre foi a do “social-fascismo” na Alemanha. No plano partidário, essa política servia aos interesses de consolidação do poder da burocracia soviética dentro da União Soviética e ao estabelecimento de um controle absoluto sobre os partidos comunistas ligados à Comintern. Seus resultados foram uma campanha de expurgos de críticos e um recrudescimento burocrático do aparato.

No Brasil, a aplicação da política do “Terceiro Período” teve sua expressão mais aguda na recusa do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em participar da frente operária batizada de Frente Única Antifascista (FUA), formada em 1934 no Brasil, que se propunha a derrotar o perigo fascista representado pela Ação Integralista Brasileira (AIB), os integralistas em camisas verdes de Plínio Salgado.[9] Foi a iniciativa adotada pelos trotskystas que desdobrou-se na conhecida “Revoada dos Galinhas Verdes”, em que um confronto entre as duas forças na Praça da Sé, em São Paulo, resultou na derrota e no consequente desaparecimento dos integralistas. Além de recusar-se a participar, o PCB perseguiu e expulsou os elementos que compuseram essa frente única.[10] Na Alemanha essa política aplicada pelo Partido Comunista da Alemanha (KPD, na sigla em alemão) e pela Comintern permitiu as condições para a ascensão de Hitler em 1933 e o subsequente esmagamento do proletariado alemão.

Frente a essa situação catastrófica, a nova orientação de “Frentes Populares” foi um giro de 180º do aparato stalinista, iniciado em 1934, diante do desastre de sua política ultraesquerdista anterior. A partir de 1935, como resposta ao seu fracasso e à ascensão de regimes fascistas e do uso do recuso do fascismo pela burguesia em vários países, a Comintern propunha aos partidos comunistas a formação de “uma vasta frente popular antifascista sobre a base da frente única proletária”, que deveria envolver setores burgueses e seus partidos. Como um desdobramento da política stalinista de “socialismo em um só país” e de coexistência pacífica, tratava-se de uma tentativa da burocracia soviética de manter o regime capitalista com governos controlados pelos partidos comunistas, mesmo que sem participação de setores burgueses.

Era uma derivação criminosa e contrarrevolucionária da oportunista teoria menchevique da revolução por etapas. Partia-se da possibilidade de estabelecimento de um regime intermediário entre o estado burguês capitalista, em que governa a burguesia, e o estado operário, em que governa a classe operária. Essa política forneceu, na década de 1930, as justificativas teóricas e políticas para apoiar os governos de Leon Blum na França e de Francisco Largo Caballero na Espanha. Sua aplicação por Stalin desde o fim da 2ª Guerra Mundial nos países do Leste Europeu também serviu como forma de bloquear revoluções e tentar impedir a expropriação do capital. Sob essa orientação, tentou-se constituir regimes burgueses sob a roupagem de “Democracias Populares”.

No Brasil, o resultado da nova política da Comintern foi a realização de um levante militar preparado com a filiação de Luís Carlos Prestes ao PCB em 1934. Esse episódio, descrito pela imprensa burguesa como “Intentona Comunista”, partia da análise de que os comunistas deveriam continuar o trabalho iniciado por seus aliados, os tenentes, representantes da pequena-burguesia democrática.[11] Em maio de 1935, Prestes retornou da URSS ao Brasil convertido ao stalinismo e foi eleito para a direção da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Em novembro desse ano realizou-se a tentativa de levantes iniciados por setores militares dirigidos pelo PCB, com Prestes à frente. O resultado foi uma derrota desastrosa, usada pelo governo de Getúlio Vargas para recrudescer sua ditadura e estabelecer um período de repressões ainda mais intensas a todo o movimento dos trabalhadores.

Foi dessa política stalinista que beberam José Dirceu e outros para introduzir no PT a política das “Frentes Populares” por meio do “Programa Democrático-Popular”. Essa política aprovada em 1987 pelo 5º Encontro Nacional representava um bloqueio para a luta pelo socialismo por parte do partido operário que se formara. A adoção do “Programa Democrático-Popular” foi a busca para dar coerência e bases teóricas à antiga política oportunista de colaboração de classes dos setores burocráticos e pequeno-burgueses que influíam dentro do PT, dos aparatos dos mandatos parlamentares e governamentais obtidos pelo partido no período anterior e das estruturas obtidas no movimento sindical e popular que passavam a lidar com a consolidação de uma camada burocrática e a pressão social capitalista dentro e fora das entidades.

Esse episódio representou um ponto de inflexão que começou a mudar o próprio caráter do PT, até transformá-lo em um partido operário burguês, ou seja, um partido com uma base operária que tem uma direção pró-burguesa. O PT dava assim uma guinada partidária à direita, mesmo ainda propondo o conjunto de “pontos básicos” do “Programa Democrático-Popular”, que se chocariam com a ordem capitalista se aplicados, como expresso na candidatura presidencial de Lula em 1989. Mas esse processo prossegue e, em 1991, ao apoiar a guerra imperialista que destruiu a Iugoslávia, e depois em 1992 ao propor e garantir a posse do governo burguês de Itamar Franco frente à insurreição que levou à queda de Fernando Collor, o PT incorporou-se ao regime e se transformou num partido da ordem capitalista, um partido operário burguês de fato, contrarrevolucionário.

A submissão completa à burguesia

No entanto foi a “Carta ao povo brasileiro”, de junho de 2002, que sistematizou o programa que Lula comprometia-se a aplicar em caso de vitória em outubro. Esse documento é cristalino quanto ao compromisso de Lula em defender e representar os interesses da burguesia à frente do Governo Federal, em que a concepção stalinista e a lista de reivindicações do “Programa Democrático-Popular” são substituídas por “um compromisso pela produção, pelo emprego e por justiça social”.

“O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas.
Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional.
(…)
Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias.
O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.
(…)
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais.”[12]

Embora o caminho até a carta de 2002 tenha sido pavimentado pelo documento de 1987, foi aquela que expressou pública e claramente a capitulação completa ao regime capitalista e o compromisso de gerir o Estado de acordo com as leis e os interesses capitalistas. O próprio PT vai confirmar essa orientação burguesa em 2007 quando aprovou em seu 3º Congresso:

“Temos que criar o mercado interno que, com a integração da América Latina, dê dinamismo ao capitalismo brasileiro e promova outro tipo de reforma. A partir daí poderão surgir outros temas em discussão, aparentemente proibidos hoje, como a propriedade social e o caráter da empresa privada. Cria-se uma perspectiva socialista, e não só de reformas dentro do capitalismo”.[13]

Essa política de desenvolver o capitalismo, de agir dentro de seus limites e de seguir suas leis, guiou da mesma forma o programa aplicado por Dilma de 2011, passando pelo estelionato eleitoral de 2015, até o impeachment de 2016.

Caráter dos governos Lula e Dilma

Lula e Dilma aplicaram o programa expresso na “Carta ao povo brasileiro”, e não o “Programa Democrático-Popular” ou as propostas da época de fundação e primeiros anos do PT. E os governos e o programa que aplicaram foram governos e programas burgueses, em que se utilizaram da posição de liderança entre os trabalhadores para subordinar os interesses do proletariado aos interesses burgueses. Em última instância, aos interesses imperialistas que dominam o país. Cumpriram assim o papel de agentes da burguesia em um partido operário que, embora tenha nascido como um partido operário independente, sofreu uma transformação política antes de ascender ao poder em 2003.

O programa de contrarreformas de Lula e Dilma foi o programa do capitalismo imperialista ditado de A a Z para países dominados como o Brasil, por meio de organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas (ONU). São alguns exemplos disso o sagrado pagamento das dívidas interna e externa, as privatizações e leilões, a criação do Bolsa Família e do Prouni. Todas as medidas sociais adotadas pelo Estado nesses 13 anos de governo seguiram e se limitaram às fronteiras dessas diretrizes, que zelaram para garantir os interesses do capital internacional e nacional, assim como o controle social sobre as massas exploradas. Nenhuma reforma real foi colocada em prática, nem sequer proposta, nesses 13 anos. Todas as políticas do governo eram determinadas ou delimitadas pela pressão dos organismos imperialistas, por setores da burguesia nativa e pelos partidos da chamada “base aliada” no Congresso Nacional e no Senado. Na política externa, recorreu-se à velha política de articulações burguesas do tipo blocos de países capitalistas, por meio de formações como BRICS, Mercosul e UNASUL, que ao fim e ao cabo mediavam os interesses de setores da burguesia brasileira diante dos países imperialistas. Ainda no plano diplomático internacional, referendou-se e sujeitou-se a comandar ocupações militantes criminosas e contrarrevolucionárias, como no Haiti e no Congo, que hoje servem de know how para o que o Exército realiza dentro do próprio país, como na atual intervenção federal no Rio de Janeiro.

Lula e Dilma protagonizaram governos operário-liberais, em que o PT, um partido operário burguês, liderou uma coalizão entre a burguesia e os líderes operários contrarrevolucionários. No Brasil adotamos desde a posse de Lula em 2002 a caracterização de governos de colaboração de classes. Essa conceituação está fundamentada nas possibilidades de governos operários previstas pela Internacional Comunista em seu 4º Congresso. Ainda sob a direção de Lenin e Trotsky, a Comintern explicava que, embora todo governo burguês seja simultaneamente um governo capitalista, nem todo governo operário que se forma é um governo verdadeiramente proletário, ou seja, instrumento revolucionário de poder do proletariado. A “Resolução sobre tática da Internacional Comunista”[14] de 1922 colocava a questão desta forma:

“A Internacional Comunista deve considerar as seguintes possibilidades:

  • Um governo operário liberal. Já existe um governo deste tipo na Austrália e também é possível a curto prazo na Inglaterra;
  • Um governo operário socialdemocrata (Alemanha);
  • Um governo de operários e camponeses. Esta eventualidade pode dar-se no Bálcãs, na Tchecoslováquia, etc.;
  • Um governo operário com a participação dos comunistas;
  • Um verdadeiro governo operário proletário que, em sua forma mais pura, só pode ser encarnado por um partido comunista.

Os dois primeiros tipos de governos operários não são governos operários revolucionários, mas sim governos camuflados de coalizão entre a burguesia e os líderes operários contrarrevolucionários. Esses “governos operários” são tolerados nos períodos críticos de fragilização da burguesia para enganar o proletariado sobre o verdadeiro caráter de classe do Estado ou para postergar o ataque revolucionário do proletariado e ganhar tempo, com a ajuda dos líderes operários corrompidos. Os comunistas não deverão participar em semelhantes governos. Pelo contrário, desmascararão impiedosamente perante as massas o verdadeiro caráter destes falsos “governos operários”. No período de declínio do capitalismo, quando a tarefa principal consiste em ganhar para a revolução a maioria do proletariado, esses governos, objetivamente, podem contribuir a precipitar o processo de decomposição do regime burguês.” (Grifo nosso)

No caso brasileiro essa formação governamental operário liberal cumpriu o papel de camuflar uma política burguesa e que, sob a forma de um governo do PT aliado a partidos burgueses de todo tipo, a chamada “base aliada” do Congresso Nacional, subordinou durante 13 anos os interesses do proletariado e das massas brasileiras aos dos capitalistas imperialistas, dos especuladores e da burguesia nativa.

Não houve uma única luta política para a qual as massas trabalhadoras tenham sido chamadas a apoiar o governo. Pelo contrário, houve ataques após ataques às condições de trabalho e de vida da maioria da população, começando desde o primeiro ano de mandato de Lula, com a reforma da previdência de 2003. Ao mesmo tempo o Estado foi cada vez mais reforçado como instrumento de dominação burguesa, por meio do incremento de seu aparato policial e judicial. Exemplos disso são a Lei da Ficha Limpa, a Lei Antiterrorismo, a Lei de Organizações Criminosas e a Lei Antitruste, além do uso extenso do recurso constitucional da Garantia da Lei e da Ordem.

Nova eleição, mesma política

Esse breve balanço nos conduz a afirmar que Lula e Dilma nem tinham ideias reformistas, nem conduziram governos que realizaram reformas sociais. Os governos liderados por Lula e Dilma eram de caráter capitalista, em que líderes oportunistas dos trabalhadores de todo tipo sustentaram a conciliação de classes e a cooperação do proletariado com a burguesia. Foi essa política criminosa que foi interrompida por meio do impeachment de Dilma em 2016.

Embora essa discussão remeta ao passado, seu conteúdo político está inteiramente atual. Dia 15 de agosto o PT registrou sua candidatura à presidência e também entregou ao Tribunal Eleitoral o programa que defenderá, o documento “Plano Lula de Governo 2018”. Esse programa sustenta agora a candidatura de Fernando Haddad. Nenhuma palavra sobre luta de classes, socialismo ou revolução. Assim como a política da “Carta ao povo brasileiro”, o documento deste ano não é capaz de superar as desigualdades e os problemas da sociedade brasileira. Isso porque baseia-se em uma idealização, em uma análise falsa, da sociedade capitalista, de seu funcionamento e de seu atual estágio histórico. Assim como o documento de 2002, o programa eleitoral deste ano não tem caráter reformista ou de frente popular. Propõem-se abertamente a gerenciar o capitalismo, aceitando suas regras e suas consequências.

Clarificar essas questões é importante também porque a confusão e a falta de rigor teórico sobre o caráter dos governos Lula e Dilma, sobre o programa que aplicaram, assim como sobre suas consequências, têm levado a conclusões equivocadas e orientações que atrasam o desenvolvimento da consciência entre os trabalhadores e a juventude na conjuntura atual. Partindo dessa confusão teórica temos assistido ao renascimento das mesmas tendências políticas que basearam a trajetória do PT.

Enquanto alguns assustados ou perdidos se agrupam sem perspectiva em torno da candidatura de Lula e agora seu substituto, outros setores da vanguarda que se dizem críticos ao PT e que se opõem a ele eleitoralmente têm se mostrado incapazes de compreender o fundo das questões aqui tratadas e acabam por adaptar sua política e se torna muito difícil diferenciá-los no fundamental da política expressa pelo PT. O marxismo, por meio do materialismo histórico, nos permite conhecer, analisar e interferir na realidade para transformá-la. Esperamos com esta retrospectiva contribuir para armar política e teoricamente os trabalhadores e jovens mais dispostos e combativos, não apenas para conhecer e interpretar corretamente o que aconteceu e o que se desenvolve nestas eleições, mas também ajudar para que melhor se prepararem para intervir no terreno eleitoral e revolucionar nossa realidade.

[1] LENIN. O Imperialismo e a Cisão do Socialismo. Arquivo Marxista na Internet (MIA).

[2] LUXEMBURGO, Rosa. Reforma Social ou Revolução? Textos escolhidos: volume I. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P.38

[3] Idem. P.43.

[4] PARTIDO DOS TRABALHADORES. 1979. Carta de Princípios. Fundação Perseu Abramo: http://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/02-cartadeprincipios_0.pdf

[5] PARTIDO DOS TRABALHADORES. 1980. Manifesto do PT. Fundação Perseu Abramo: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/01-manifestodelancamento_0.pdf

[6] PARTIDO DOS TRABALHADORES. 1987. V Encontro Nacional do PT. Resoluções Politicas. Fundação Perseu Abramo: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf

[7]   DIMITROV, Jorge. A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo. Relatório apresentado no VII Congresso Mundial da Internacional Comunista, em 2 de agosto de 1935. In: Obras escolhidas. Lisboa: Estampa, 1976, v. 3, p. 9-90. In: ZACARIAS, Carlos. Frente única, frente popular e frente nacional: anotações históricas sobre um debate presente. Acervo Unicamp. | Disponível em inglês no Arquivo Marxista na Internet (MIA).

[8] TROTSKY, Leon. O “Terceiro Período” de Erros da Internacional Comunista. 1930. Arquivo Marxista na Internet (MIA).

[9] ABRAMO, Fúlvio. A revoada dos galinhas verdes. São Paulo, Veneta, 2014.

[10] BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista (1919-1943). Sundermann, 2007.

[11] IDEM.

[12] Carta disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml

[13] PARTIDO DOS TRABALHADORES. III Congresso Nacional do PT. O Brasil Que Queremos. P.12. Fundação Perseu Abramo: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2018/05/3-Congresso-Nacional_-Brasil-que-Queremos.pdf

[14] FOURTH CONGRESS OF THE COMMUNIST INTERNATIONAL. Theses on Comintern Tactics. 1922. Arquivo Marxista na Internet (MIA). Disponível em: https://www.marxists.org/history/international/comintern/4th-congress/tactics.htm