Manifestação reúne milhares em Porto Príncipe em 7 de fevereiro de 2019. Foto: Dieu Nalio Chery/AP

Haiti à beira de nova rebelião, após fim da vergonhosa ocupação liderada pelo Brasil

Protestos violentos, inflação, corrupção, ingerência americana e insatisfação generalizada da população. Não estamos falando da Venezuela. Esse é o Haiti! Desde o dia 7 de fevereiro uma onda insurrecional varre o Haiti, há apenas dezesseis meses após o fim da “missão de paz da ONU”. A data que simboliza dois anos de Jovenel Moïse como presidente do país foi a última gota d’água para transbordar novamente a revolta popular diante das condições de vida que não param de deteriorar.

A instabilidade é marca da situação política no país caribenho. A nova onda de manifestações é a terceira e mais forte série em menos de um ano e mergulha o país na incerteza do que pode vir pela frente. Em de julho de 2018, o aumento dos preços dos combustíveis foi o estopim dos protestos e em novembro desse mesmo ano as manifestações eclodiram  em meio às comemorações do 215º aniversário da Batalha de Vertières contra as tropas francesas, que levou à independência do país.

As enormes manifestações brotaram espontaneamente e tomaram conta das principais cidades, particularmente da capital Porto Príncipe. A principal voz ecoada é a exigência da renúncia do presidente Jovenel Moïse, mergulhado em acusações de corrupção e desvio de dinheiro público.

Isso ocorre após os 13 anos de ocupação militar organizada pela ONU e vergonhosamente comandada pelo exército brasileiro nos governos petistas. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) mergulhou a nação mais pobre das américas na barbárie. Segundo o Banco Mundial, atualmente 59% da população do Haiti vive abaixo da linha nacional de pobreza com US$2,41 ao dia (6 milhões de pessoas) e 24% vive abaixo da linha nacional de pobreza extrema com US$1,23 ao dia (2,5 milhões de pessoas). Se não bastasse o desastre econômico e político organizado pelas elites e demais serviçais do imperialismo americano, o país ainda é vulnerável a desastres naturais, como o terremoto de 2010 e o furacão Matthew em 2016.

A combinação de catástrofes naturais e uma política de pilhagem de toda a riqueza produzida no país levou à situação em que 74% da população urbana vive em favelas, 50% das crianças não frequentam a escola, taxas de alfabetização baixíssimas (64% para os homens 57% para as mulheres) e somente 24% dos haitianos têm acesso a banheiros. A maioria faz uso de latrinas improvisadas. Falta água potável, falta energia e a forte desvalorização do gourde, a moeda oficial do Haiti, gera uma inflação incontrolável sob bases capitalistas, criando crise de desabastecimento e mais miséria.

Desta vez as manifestações retomaram um caráter de rebelião, mesmo motivo que levou à intervenção militar da ONU em 2014. Grupos armados montaram barricadas e controlavam importantes avenidas e bairros inteiros da capital. Os confrontos entre manifestantes e a polícia deixaram dezenas de mortos e centenas de feridos que foram encaminhados aos hospitais. Não se sabe exatamente o número de vítimas, mas a imprensa internacional fala que houve ao menos 10 mortos nesse episódio.

Os escândalos de corrupção e desvios de dinheiro público contrastam com a falta de recursos para políticas públicas básicas como água, esgoto, energia, escolas e saúde. O capitalismo joga o fardo mais pesado da crise nas costas dos mais fracos.

Os manifestantes culpam a deterioração das condições de vida aos escândalos de desvios de dinheiro público do Petrocaribe, projeto capitaneado por Hugo Chávez que vende petróleo para o Haiti a preços subsidiados. Uma investigação conduzida pelo Senado haitiano concluiu que ex-funcionários do governo e empresários desviaram cerca de US$ 2 bilhões (R$ 7,4 bilhões) de fundos ligados ao Petrocaribe, vindos de ajuda de Caracas.

Os protestos que exigem a renúncia do presidente acabaram reunindo líderes oposicionistas, estudantes, sindicatos e movimentos sociais, mas com cada seguimento agindo isoladamente. Grupos armados se formaram desafiando a força de repressão do governo.

O Haiti nunca encontrou sua estabilidade, desde a revolução dos escravos de 1791 e a independência em 1804, revolução e contrarrevolução convivem dia a dia. Desde o período colonial aos tempos de dominação imperialista, a burguesia local sempre foi débil, extremamente corrupta e incapaz de realizar tarefas democráticas, restando-a o papel de uma sócia menor e ultra submissa aos interesses do capital americano, que domina toda a economia e reserva migalhas do lucro extraído para a elite serviçal haitiana. Ocupações militares para contenção de revoltas e um mecanismo de sangria financeira via uma dívida externa que só aumenta formam a história recente do país.

Em artigo publicado pela Corrente Marxista Internacional, Rob Lyon lembra que:

“a situação revolucionária que foi se desenvolvendo no país durante a segunda presidência de Aristide no início dos anos 2000 foi parcialmente bloqueada pela ocupação das Nações Unidas e pelo terremoto, quando o país foi destruído. No entanto, em 2013 a fúria das massas se espalhou pelas ruas enquanto milhares de pessoas protestavam contra a falta de progresso na recuperação dos estragos do terremoto, contra o nível da corrupção, os aumentos no custo de vida e o atraso das eleições legislativas e locais. O movimento se intensificou mais uma vez em 2015 até que as eleições fossem realizadas no final do ano. Houve uma fraude gigantesca nas eleições presidenciais daquele ano. Por exemplo: Jovenel Moïse, um exportador de bananas que ajudou a estabelecer uma zona agrícola de livre comércio no Haiti, e representante direto dos interesses imperialistas no Haiti, recebeu oficialmente 32,8% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial de 2015, no entanto as sondagens de Haiti Sentinel mostraram que recebeu apenas 6%. A fraude nas eleições provocou protestos massivos e as eleições foram mais uma vez adiadas. Uma comissão estabelecida para investigar os resultados encontrou fraudes generalizadas e recomendou que as eleições fossem refeitas. As eleições voltaram a se realizar em novembro de 2016 e Moïse ganhou oficialmente, novamente em meio a acusações de fraude e protestos massivos.”

E conclui que o povo haitiano não acredita mais nas promessas de democracia vendidas pela elite:

“desde a derrubada revolucionária do regime Duvalier na década de 1980, as tentativas da burguesia haitiana de governar “democraticamente” foram um completo fiasco. Dada a corrupção, a fraude, os múltiplos golpes e ocupações militares, não deveria surpreender que o povo haitiano tenha muito pouca confiança na “democracia” no país e menos ainda que seus votos sejam importantes.” (Leia o artigo “Rebelião no Haiti: protestos massivos e greve geral contra o aumento do preço dos combustíveis“)

A grande dificuldade para um salto de qualidade na situação é a ausência de um partido independente da classe trabalhadora, capaz de unificar os trabalhadores, camponeses e estudantes, canalizar a revolta popular para o combate anti-imperialista. Falta um partido assim para tomada o poder e aplicar um programa socialista para a superar a crise. Os 13 anos de ocupação militar da ONU/Brasil destroçaram as forças organizadas de esquerda, que agora tentam se organizar mais uma vez.

O governo americano busca abafar a situação e se pronuncia somente sobre a Venezuela, no outro lado do mar do Caribe. O Departamento de Estado tem alertado os turistas americanos a evitarem de ir ao país. A Casa Branca quer esconder que sua política de “pacificação” do Haiti fracassou e que não tem outra saída a oferecer senão a intensificação da repressão para continuar sugando as riquezas da ilha caribenha. O presidente Jovenel Moïse é aliado direto de Donald Trump e foi eleito em 2017 com apoio declarado de Washington.

Na corda bamba, Moïse anunciou pacote anticrise que deverá ter efeitos perversos. Em visita do Fundo Monetário Internacional ao país, no início de março, o presidente confirmou mais um empréstimo de US$ 229 milhões (R$ 885 milhões) do fundo internacional, prometendo investir em programas sociais e na luta contra a corrupção. Obviamente que promessas como essas já não convencem a maioria e cada empréstimo do FMI aumenta a submissão do país aos interesses imperialistas.

Numa situação de instabilidade e imprevisibilidade internacional, qualquer faísca pode se tornar uma grande explosão na situação política. Acompanhemos com atenção os próximos desdobramentos da situação no Haiti.

Bairro La Saline em Porto Príncipe ilustra as condições de vida do povo haitiano. Foto: Hector Retamal/AFP

Mesmo diante de todas as dificuldades, povo haitiano não se entrega e luta por um futuro. Foto: REUTERS – Jeanty Junior Augustin