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Fechado desde 2010, o Hospital Central Sorocabana, localizado no bairro paulistano da Lapa, simboliza vários dos impasses na saúde pública – e não apenas nesta área, como também revela alguns dos limites de movimentos populares e sindicatos corporativistas. O texto tentará abordar, de maneira sucinta, essas questões no intuito de que haja um debate sobre o atendimento à saúde (especialmente em um contexto grave da pandemia de coronavírus) e as formas de ação na sociedade que busquem superar os limites mencionados acima.
O Hospital Central Sorocabana foi fundado em 1955, pela Sociedade Beneficente de Socorros Mútuos dos Ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS). A cada mês, os ferroviários tinham descontado em seus holerites o valor correspondente a um dia de trabalho1, para gerar fundos destinados à construção de algumas obras para estes trabalhadores (como escola, clube esportivo, vilas operárias e o próprio hospital). Essa medida, segundo um dos autores consultados, servia tanto para suprir necessidades de serviços aos funcionários quanto para cooptá-los, para evitar maior envolvimento político e radicalização2. Posteriormente, a gestão do hospital passou para a Associação Beneficente dos Hospitais Sorocabana (ABHS) e, devido à crise financeira e denúncias de desvio de recursos pelos seus dirigentes, o hospital fechou as portas.
Até o momento em que o hospital teve seu funcionamento encerrado, contava com a oferta de cerca de 200 leitos de UTI para o Sistema Único de Saúde (SUS), serviço inexistente em outros hospitais e centros de atendimento da região. Os dados apontam que havia cerca de 20 mil atendimentos mensais, o que demonstra a importância do Hospital Central Sorocabana não apenas para os ferroviários e os moradores da Lapa, mas também da região Noroeste de São Paulo e de cidades adjacentes, já que o local é próximo a estação de trem e terminal de ônibus, o que facilita o acesso pelo transporte público.
Desde o fechamento, o que se tem notícia é que movimentos populares e alguns parlamentares concentraram esforços na questão jurídica do hospital para viabilizar sua reabertura, e é possível questionar se este método é o mais adequado para a situação. Em resumo, este impasse jurídico se dá entre a prefeitura e o governo estadual. Como o terreno havia sido cedido pelo governo do estado à época da construção do Hospital Sorocabana, uma das condições é que o imóvel deveria ser devolvido ao patrimônio estadual, caso o hospital viesse a encerrar suas atividades. O prédio foi leiloado em 2018, mas a administração estadual retomou o prédio na Justiça e o cedeu à prefeitura de São Paulo.
No período entre 2006 e 2012, houve a instalação de uma Assistência Médica Ambulatorial (AMA) 24 horas e uma AMA Especialidades no local. Em 2016, foi também inaugurado um Centro Especializado de Reabilitação (CER). O resultado é um hospital que, apesar de sua estrutura capaz de atender a uma alta demanda (cerca de 15 mil atendimentos por mês), se encontra subutilizado e com serviços de baixa complexidade. Dos sete andares disponíveis, apenas dois estão ocupados pelos serviços municipais. O prédio possui espaço e condições para uma reabertura de emergência, posto que, aparentemente, não há problemas na infraestrutura e seriam necessárias apenas algumas reformas no sistema elétrico, hidráulico e de ventilação, por exemplo3. A questão é que nem a prefeitura nem o estado tiveram interesse em fazer investimentos importantes no Hospital. A prefeitura alega que o imóvel voltaria ao Estado em algum momento (por ser um imóvel cedido), e que não compensaria aplicar verba municipal nestas condições. O estado, por sua vez, poderia reaver o imóvel, mas não o faz4.
Mesmo com manifestações em frente ao hospital, aparentemente o foco da luta pela reabertura do Hospital Central Sorocabana se dava no âmbito parlamentar, como já mencionado. Uma publicação recente de uma deputada traz a pauta defendida por esses movimentos – que “(…) a reabertura definitiva do Sorocabana deve ser encarada como parte dos investimentos necessários para fortalecimento do SUS a médio e longo prazo, recuperando toda a estrutura hospitalar de um Hospital Sorocabana gerido 100% pelo SUS e com administração direta“5. No cenário da pandemia de coronavírus, essa pauta antiga da reabertura do Hospital ganhou ainda mais urgência, dado seu potencial de assistência e espaço disponível para os leitos de UTI em uma das regiões mais afetadas pela Covid-19 no mundo.
A história do Hospital Sorocabana é inseparável da história dos trabalhadores ferroviários da EFS. Porém, na pesquisa feita para a escrita deste texto, não foi possível determinar se o sindicato atual da categoria participa dos esforços para a reabertura do hospital. No site da entidade6 não há qualquer menção ao hospital, embora o sindicato se reconheça herdeiro das associações prévias da categoria (entidades essas que mudaram de nome e de organização à medida em que a empresa passava por alterações). Mesmo que o hospital tenha sido construído (e mantido) a partir do valor descontado do salário dos trabalhadores da ferrovia, a burocracia sindical não se pronuncia sobre a importância social do Hospital Sorocabana para a saúde pública. Não o faz nem mesmo em meio a uma pandemia grave. Além do descaso permanente para com a saúde e as condições de trabalho da própria categoria, as sucessivas diretorias do sindicato se omitem perante a necessidade da reabertura do hospital que os próprios ferroviários construíram.
No entanto, não se trata de nenhuma surpresa, já que a política de alinhamento destes burocratas é notadamente patronal e de controle dos trabalhadores, como já se pôde verificar em várias oportunidades e a partir de vários relatos de colegas da ferrovia. A (não) atuação desta cúpula sindical, ainda que com a ressalva de seu caráter de controle dos trabalhadores, traz à tona um outro debate importante sobre o sindicalismo brasileiro e o quanto a maioria dessas entidades seguem essa mesma linha patronal, ou (no melhor dos casos) seguem uma política conciliatória (que, no fundo, apresenta os mesmos resultados e limites que os patronais).
Um sindicato realmente atuante não defenderia apenas os direitos da categoria que repre- senta, mas também articularia suas ações e pautas de forma a abranger o conjunto da sociedade e criticar profundamente seu modo de funcionamento exploratório. Além do engajamento pela reabertura do Hospital Sorocabana, por exemplo, um sindicalismo classista poderia trazer o questiona- mento do porquê a empresa ter assinado convênio de saúde a seus funcionários (com desconto na folha de pagamento quando há consultas médicas) se há um Hospital de qualidade e de referência construído e mantido pela própria base. Poderia denunciar que o patrimônio desses trabalhadores está inutilizado e que parte dos recursos da empresa e de seus salários são drenados para a saúde privada, através do repasse ao convênio médico compulsório. Faria, portanto, uma correlação das lutas dentro da própria categoria com as pautas de toda a sociedade, como a questão da saúde pública, neste caso.
Em uma entrevista coletiva recente, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), anunciou que a prefeitura vai reinaugurar três hospitais na cidade no mês de junho7. São eles o Guarapiranga (zona sul), Brigadeiro (na região central) e o Sorocabana. Porém, esta reinauguração não faz jus ao termo, pois no caso do hospital Sorocabana, este contará com apenas 60 leitos de enfermaria. O hospital, que tem cinco andares disponíveis (inclusive para abrigar leitos de UTI e outros serviços de maior complexidade), só terá essa quantidade pequena de leitos de enfermaria, nos dois primeiros andares disponibilizados à prefeitura. Como se trata de um período de calamidade pública, há recursos jurídicos que poderiam ser acionados para a reabertura integral e imediata do hospital8. Em contrapartida, além de essa medida não ter sido tomada, os governos gastaram milhões de reais na construção de hospitais de campanha no município – que se ao mesmo tempo são necessários para o enfrentamento à Covid-19, por outro lado revelam o problema crônico da saúde pública brasileira e o quanto que os governos preferiram investir nesses hospitais temporários ao invés de ampliarem os hospitais já existentes, que teriam uma permanência posterior à pandemia9.
E se este é, à primeira vista, um problema de “má gestão dos recursos públicos”, sabe-se que esta análise desconsidera o papel do Estado em uma sociedade de classes. E, portanto, também coloca em questão se a mobilização popular, que vê o problema apenas como um impasse jurídico e se confina a uma luta parlamentar é efetiva, ou se deixa essa pauta à mercê dos interesses coligados do Estado com os empresários da saúde, que recebem verbas públicas através das chamadas “organizações sociais” e dos planos de saúde, que basicamente dependem da deterioração do SUS para se manterem lucrativos.
Notas e Referências:
1 Conforme entrevista com ferroviário aposentado, no vídeo Hospital Sorocabana, realizado pelo Cine Galpão em 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8kDxF74rI-4>
2 “Além de linhas férreas para interligar um ponto ao outro, as ferrovias simbolizaram a realização da ideologia indus- trial do empresário da segunda metade do século XIX e inicio do XX, com suas estratégias de cooptação do traba- lhador dentro e fora das fábricas, a exemplo da construção de vilas operárias, fornecimento de mantimentos via armazém da empresa, criação de ligas esportivas, hospital próprio, escola para filhos de funcionários etc”. (LEITE, 2017, p. 33)
3 Conforme levantamento feito pela Rede Brasil Atual, em matéria de 23/maio/2020: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/05/movimento-reabertura-hospital-sorocabana/>
4 Matéria da Agência Brasil, de 12/março/2020: “Comunidade se organiza pela reabertura do Hospital Sorocabana” <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/codiv-19-comunidade-mobiliza-pela-reabertura-do-hos- pitalsorocabana>
5 Assembléia Legislativa – deputada Beth Sahão (PT/SP), 31/março/2020. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/noticia/?31/03/2020/reabertura-do-hospital-sorocabana>
6 Site do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Zona Sorocabana (STEFZS): <https://www.sorocabana.org.br/>
7 Matéria da Gazeta SP, de 28/maio/2020: “Covas anuncia a reabertura dos hospitais Sorocabana, Guarapiranga e Brigadeiro” >https://www.gazetasp.com.br/capital/2020/05/1069278-covas-anuncia-a-reabertura-dos-hospitais-sorocabana- guarapiranga-e-brigadeiro.html>
8 Matéria da Agência Brasil, de 12/março/2020: “Comunidade se organiza pela reabertura do Hospital Sorocabana” <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/codiv-19-comunidade-mobiliza-pela-reabertura-do-hos- pitalsorocabana>
9 “(…) [O Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães] teve um custo de montagem, incluindo as despesas de desmobilização, de R$ 12 milhões. Devem ser investidos R$ 10 milhões por mês para manutenção da estrutura. A administração foi repassada pelo governo estadual para a organização social Seconci, que administra outros hospi- tais públicos”. Matéria da Agência Brasil, de 01/maio/2020: “Começa funcionar terceiro hospital de campanha na cidade de São Paulo” <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/comeca-funcionar-terceiro-hospital-de-campanha-na- cidadede-sao-paulo>
Fontes (além daquelas já mencionadas nas notas de rodapé):
ARAUJO NETO, Adalberto Coutinho. Entre a Revolução e o Corporativismo: a experiência sindical dos ferroviários da Sorocabana nos Anos 30. Dissertação. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, 2006. https://www.teses.usp.br/teses/disponi- veis/8/8137/tde-10062006194606/publico/DissertAdalberto2.pdf
LEITE, Luciano Rodrigues. Usos sociais do conjunto arquitetônico da antiga Estrada de Ferro Soroca- bana na cidade de Sorocaba – SP . Dissertação. Escola de Artes, Ciências e Humanidades – Universi- dade de São Paulo, 2017. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100134/tde- 20082017103521/publico/Corrigida_Luciano_Leite.pdf
SOUZA, João Márcio Dias de. Tipologias arquitetônicas nas estações da Estrada de Ferro Sorocabana. Dissertação. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo, 2015. https://te- ses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-27042016-143528/publico/joaomarcio.pdf
Matéria da IstoÉ, de 24/agosto/2018: “Hospital Sorocabana é leiloado e cria incerteza sobre serviço médico local” https://istoe.com.br/hospital-sorocabana-e-leiloado-e-cria-incerteza-sobre-servico- medico-local/
Indicações de leitura sobre trabalhadores ferroviários:
MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Ferroviários, trabalho e poder. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Ferrovia e Ferroviários. São Paulo: Editora Autores Associados/Cor- tez, 1982.