Foto: Shane B

Ira insurrecional varre os EUA

O assassinato, pela polícia, de George Floyd – um homem negro, desarmado e algemado por quatro policiais, em Minneapolis, antes de ser sufocado até a morte – desencadeou uma onda de protestos em todo o país, que ficou fora de controle em várias cidades. Após os assassinatos de Ahmaud Arbery e Breonna Taylor, o mais recente episódio de uma série interminável de assassinatos policiais foi a gota que fez transbordar o copo, desencadeando um tsunami de fúria reprimida por todas as injustiças da sociedade americana. A necessidade se expressou por um acidente – embora o assassinato de Floyd não tenha sido acidental.

Em Minneapolis, a polícia usou armas antimotim (gás lacrimogêneo, granadas de concussão etc.) contra manifestantes pacíficos, o que apenas provocou uma resposta menos pacífica. A polícia finalmente teve que evacuar o terceiro distrito (onde o policial assassino estava estacionado) diante de uma multidão furiosa, que começou a incendiá-lo e destruí-lo. As cenas da polícia fugindo da delegacia, com carros de patrulha destruindo os portões do estacionamento para escapar, eram uma reminiscência da evacuação do complexo da embaixada dos EUA em Saigon. Diante das massas enfurecidas, os corpos de homens armados do capital dos EUA foram forçados a fugir por suas vidas.

Depois de cinco noites de protestos em massa em Minnesota, um toque de recolher foi declarado pelo prefeito – que foi imediatamente quebrado pelos manifestantes. Os protestos incluíram incêndios suspeitos e saques – mas há evidências claras de que grande parte disso foi orquestrada por agentes da polícia provocadores, a fim de justificar uma repressão ainda mais dura. Multidões se reuniram do lado de fora do quinto distrito policial, ameaçando incendiá-lo também. O distrito agora é defendido com barricadas e policiais armados no telhado.

A Guarda Nacional e as tropas estaduais também estão nas ruas de Minneapolis, tentando impor o toque de recolher e recuperar o controle da situação. A princípio, 500 tropas da Guarda Nacional foram convocadas pelo governador de Minnesota, Tim Waltz, mas esse número já foi aumentado para 1.700. Os serviços de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA também usaram um drone de vigilância não tripulado para coletar informações sobre o curso dos protestos.

Enquanto Minnesota continua sendo o epicentro, os protestos se espalharam para pelo menos 22 cidades. Em Detroit, houve grandes manifestações e um manifestante de 19 anos foi morto a tiros que partiram de um veículo em movimento, provavelmente perpetrado por um vigilante de direita. Na cidade de Nova York, houve confrontos com a polícia quando os manifestantes desafiaram uma proibição de manifestação devido ao bloqueio da Covid-19, e uma van da polícia foi incendiada no Brooklyn. Na Califórnia, estradas foram fechadas em Oakland, San Jose e Los Angeles, e manifestantes atacaram carros de patrulha da polícia.

Em Atlanta, carros de polícia também foram incendiados e um estado de emergência foi declarado, com a Guarda Nacional também posicionada nas ruas. Os manifestantes entraram em conflito com policiais do lado de fora do prédio da CNN, que também abriga uma delegacia.

Em Washington DC, a Casa Branca foi fechada durante um tempo e houve lutas entre manifestantes e o serviço secreto, com barricadas até as primeiras horas da manhã de sábado. E em Phoenix, os manifestantes marcharam por Dion Johnson, um negro de 28 anos que foi morto por um policial do Departamento de Segurança Pública do Arizona em uma “luta”, cujos detalhes são escassos.

Da mesma forma, em Louisville, houve grandes protestos após o assassinato de Breonna Taylor pela polícia: uma técnica médica negra de 26 anos que foi baleada em seu próprio apartamento enquanto dormia. A polícia cumpria um mandado de busca de drogas contra um homem que não morava em seu apartamento – e, como se viu depois, já havia sido preso. Quando a polícia entrou no apartamento de Taylor sem aviso prévio, seu namorado disparou uma arma em legítima defesa. Em resposta, a polícia disparou mais de 20 tiros: oito dos quais atingiram Taylor. Em resposta, multidões furiosas incendiaram o Palácio da Justiça.

“Isso não é um motim: é uma revolução!”

A reação desajeitada e perversa do Estado está apenas derramando gasolina nas chamas. Em uma demonstração particularmente infeliz do racismo inerente à polícia, uma equipe da CNN, liderada por um jornalista latino, foi presa ao vivo pela polícia enquanto filmava os protestos em Minneapolis. Enquanto isso, outra equipe de notícias, liderada por um repórter branco, foi autorizada a filmar a mesma manifestação. Em Louisville, a polícia usou gás lacrimogêneo contra a multidão e disparou balas de borracha contra uma jornalista enquanto ela estava no ar.

De forma notável, a multidão de manifestantes é negra e branca, e principalmente jovem: semelhante à do pico do movimento Black Lives Matter. O clima político, no entanto, está mais avançado do que da última vez, agravado pela catástrofe econômica que atingiu dezenas de milhões de norte-americanos. Naquela época, havia muita discussão sobre como tornar a polícia mais responsável: câmeras corporais obrigatórias, conselhos de comunidade etc. Nada disso levou a lugar algum e nada foi resolvido. De fato, a taxa de assassinatos policiais de negros desarmados só se acelerou nos últimos seis anos. Agora, os manifestantes queimaram a delegacia de polícia – um ato de insurreição de fato. Em Minneapolis, os organizadores declararam: “isto não é um motim, é uma revolução!

O significado desse movimento e os riscos implícitos nele não se perderam para a classe dominante. Como escreveu o Washington Post:

“o tumulto, situado no contexto mais amplo das emergências gêmeas da saúde e da economia, poderia marcar uma ruptura tão dramática quanto pontos de virada marcantes na história do país, desde o deslocamento econômico da Grande Depressão até as convulsões sociais. de 1968”.

Essas cenas certamente não são normais nos EUA. Se você assistisse aos vídeos sem saber do contexto, seria perdoado por pensar que isso estava acontecendo, não no poder imperialista mais importante do mundo, mas no Chile, Líbano ou Argélia. O que estamos vendo é uma faísca que desencadeia uma explosão de raiva que se acumula há muito tempo, intensificada pela crise mais recente provocada pela pandemia de coronavírus. Há comparações a serem feitas aqui com a autoimolação de Mohamed Bouazizi, na Tunísia, um único evento que desencadeou a Primavera Árabe, que levantou a tampa da raiva fervente por mil e uma injustiças que haviam se acumulado no Oriente Médio e Norte África.

Esse movimento expressa a ira acumulada na sociedade americana Foto: Fibonacci Blue, Flickr

A imprensa burguesa está realizando uma cobertura contínua da destruição e dos saques de propriedades, na tentativa de transformar a opinião pública contra os manifestantes. O prefeito Jacob Frey, em Minneapolis, fez um discurso hipócrita e ofensivo hoje, censurando os manifestantes ao dizer: “Não é honroso queimar sua cidade. Não é honroso saquear”.

Mas a classe trabalhadora organizada está mostrando solidariedade com essa expressão de raiva popular. Por exemplo, motoristas de ônibus sindicalizados em Minneapolis se recusaram a colaborar com a polícia, que queria usar seus veículos para prisões em massa dos manifestantes. O mesmo aconteceu em Nova York, onde um motorista de ônibus abandonou o veículo depois que a polícia lhe ordenou a transportar aqueles que haviam sido presos.

Material combustível

Como era de se esperar, Trump está inflamando a situação ainda mais. Em uma tentativa transparente de aumentar sua base reacionária de apoio antes da eleição, ele apoiou as forças da lei e da ordem. Ele tuitou que os manifestantes são “bandidos” que “desonram a memória de George Floyd“. Ele acrescentou que “quando a pilhagem começa, começam os disparos“, citando o famigerado racista chefe de polícia de Miami, Walter Headley, que proferiu essas palavras em 1967.

Esta não é uma ameaça vazia. Mesmo antes de o coronavírus revirar tudo, a classe dominante dos EUA estava se preparando para a escalada da agitação civil à medida que a crise do capitalismo se aprofunda. Usará todos os meios necessários – oficiais  e extrajudiciais – para manter o seu poder. Além da brutalidade policial, já houve casos de violência de vigilantes de direita contra os manifestantes, por exemplo, um tiroteio em Detroit.

Seguindo uma ordem fora do comum do Pentágono, a polícia militar e tropas regulares entraram em estado de alerta em várias bases. Os soldados de Fort Bragg, na Carolina do Norte, e Fort Drum, em Nova York, receberam ordens de estar prontos para serem enviados dentro de quatro horas, se necessário. Essas forças seriam usadas sob a Lei da Insurreição de 1807, que dá ao presidente o poder de enviar tropas federais a qualquer estado, para suprimir “qualquer insurreição, violência doméstica, combinação ilegal ou conspiração”. A última vez que essa lei foi invocada foi em 1992, a fim de conter a revolta em Los Angeles, provocada pela absolvição do policial que espancou Rodney King.

Mas longe de derrotar as massas, o chicote da contrarrevolução geralmente as leva adiante, como vimos nos numerosos protestos que varreram o mundo no ano passado no Chile, Colômbia, Líbano etc.

Vale lembrar que, em 2008, durante a Convenção Nacional Republicana na pequena cidade de St. Paul, MN, eles tiveram que levar 50 mil policiais de todo o país para conter os manifestantes, e mesmo assim não conseguiram controlá-los completamente. A classe dominante não tem policiais suficientes – ou tropas – para  deter o país inteiro.

O fato de Derek Chauvin (o policial que assassinou George Floyd) ter sido demitido e acusado de assassinato e homicídio culposo em terceiro grau não fez exatamente nada para acalmar os protestos. As massas já conhecem esses expedientes. O problema não é uma ou duas “maçãs podres”, mas todo o sistema podre.

Não basta que os assassinos de George Floyd tenham sido demitidos e que um deles tenha sido acusado. Para alcançar justiça genuína para todos os explorados e martirizados por esse sistema, é preciso expropriar a propriedade dos meios de produção. O movimento dos trabalhadores deve se conectar com os manifestantes e, juntos, expandir esse movimento e colocá-lo em uma base organizada. O que é necessário é um programa e um plano de ação para lutar pela transformação radical da sociedade. Somente a revolução socialista – nos EUA e no mundo – finalmente acabará com o ciclo vicioso de exploração e opressão.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM MARXIST.COM