Javier Milei: o falso e oportunista profeta do grande capital

O resultado de Javier Milei nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso)1 de 13 de agosto de 2023, obtendo 29,86% dos votos, surpreendeu o conjunto do establishment parlamentar político da Argentina. Mesmo que nas eleições provinciais os candidatos apoiados por Milei somente obtiveram resultados parcos e modestos, alcançando os terceiros ou quartos lugares, o candidato a presidente superou todos os demais presidenciáveis, tanto do peronismo como da direita.

Entretanto, fica claro o caráter provisório da corrente política que Milei representa, pois não de trata de um verdadeiro movimento político nem se propõe a construir um. É uma corrente construída somente por meio de sua imagem e discurso. Javier Milei é a expressão da crise do capitalismo argentino, é o líder messiânico da “nova” política de direita, que entusiasma camadas populares da sociedade por seu aparente discurso antissistema e toma elementos da política que aparenta chutar o tabuleiro do jogo. Navega pelo mal-estar, a raiva e a enorme frustação dos de baixo, acumulada durante anos perante a política dos partidos majoritários: o peronismo em suas diferentes vertentes e Juntos por el Cambio2. Soma-se a isso a crise da esquerda que não consegue se conectar com as massas e suas demandas por meio de sua política parlamentar.

A degradação da vida e do trabalho a níveis inimagináveis há apenas uma década, a decadência de um sistema que golpeia sistematicamente a assistência aos trabalhadores é o cenário em que o profeta “anticasta” navega.

Voto em Milei: o voto de protesto

O voto em Javier Milei surpreendeu a muitos, mas, na realidade, os resultados são a expressão de um processo antigo. A crise mundial da bolha imobiliária de 2008 representou um ponto de inflexão para o capitalismo mundial. Uma crise que, certamente, os capitalistas e seus governos ainda não conseguiram se recuperar.

Essa mesma crise foi a que impactou as terras argentinas em 2009 e 2010. Desde então, o país viveu cinco recessões e, a partir de 2011, a tendência de estagnação e degradação das condições de vida começou uma tendência irreversível. Expressa-se nos inéditos números de pobreza e miséria que buscam a assistência aos trabalhadores.

A mencionada década corrida virou história da Carochinha e o “vamos a mais uma década” ficou somente nas gavetas da Casa Rosada e do Instituto Pátria. Não há governos piores que aqueles que primeiro se mostram progressistas e, logo, produto da crise capitalista mundial, lançam-se contra as conquistas do passado. Isso deixa escancarado os limites de classe desses governos que olham a burguesia como a condutora natural da sociedade e, com sua retórica, encobrem o fato de que não questionam a existência do capitalismo, mas o defendem e, portanto, se vêm obrigados a operar baseados em suas leis. As conclusões já começam a ser evidentes para milhares: com esse tipo de liderança haverá uma derrota atrás da outra.

Os jovens da década passada já não são tão novos e as novas gerações são os filhos da miséria e do futuro magro. As razões para que Milei tenha capitalizado 30% das indicações de voto são muitas. Uma, muito sentida e presente, que muitos candidatos só assumem oportunisticamente como tema para suas campanhas é a crise de moradia que milhões de famílias trabalhadoras padecem.

A crise balança 4 milhões de lares. Considerando as famílias típicas de quatro pessoas, estamos falando de 16 milhões de mulheres, homens, crianças e idosos que não possuem um teto (estatística de 2023). Além disso, uma moradia adequada, como direito fundamental, necessita de acesso aos serviços básicos, à infraestrutura, às instalações, material de qualidade, piso, teto, paredes, espaço suficiente e segurança de posse. “E essa não é a realidade para mais de 4 milhões de domicílios”3.

Em relação aos aluguéis, de acordo com dados particulares, mais de 40% da população argentina com até 35 anos aluga por não poder comprar uma propriedade. “Atualmente existem, na Argentina, 3 milhões de domicílios alugados, 34% a mais que em 2016. Dos menores de 35 anos, 40% alugam pela impossibilidade de adquirir uma moradia”4. Tais dados revelam um dos enormes problemas que os diferentes partidos do regime não conseguiram solucionar nos 40 anos de democracia. Pelo contrário, este problema se aprofundou.

Ao se escrever este texto, a Lei de Aluguel, que conta com meia sanção, está em debate no Senado. Uma lei que beneficia somente aos proprietários de imóveis. Claramente fica em evidência que a maior crise e maior pobreza é a dificuldade de conseguir uma moradia decente, assim como a uma saúde e educação de qualidade, sem falar de se ter um trabalho com salário digno. Não devemos esquecer que no segundo semestre do ano a pobreza alcançou a 45% da população, com uma economia informal de 53% no país.

O fenômeno Milei perpassa idades e diferentes segmentos sociais, mas devemos nos fazer uma pergunta: é uma particularidade argentina? Acreditamos que não. Já mencionamos acima que Milei é a expressão da crise capitalista mundial. Podemos buscar certos homólogos na história recente: Donald Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil, ou Boris Johnson no Reino Unido. Há razões comuns para colocá-los em um âmbito político similar a nível mundial. Logicamente, há particularidades nacionais que os fazem diferentes, mas todos compartilham algo em comum, que é o aparente “discurso antissistema”. Atacam o sistema imperante, mas defendem abertamente a propriedade privada dos meios de produção e ao deus do mercado.

Não falta os fãs de carteirinha que consideram que o fenômeno Milei veio para ficar. Logicamente, o que se chama de “nova direita” se recicla à medida que o “progressismo” à frente do Estado insolvente só pode garantir contrarreformas. Mas se recicla, fundamentalmente, diante da crise de direção da classe trabalhadora e nisto o papel da esquerda é fundamental.

Cristina Fernández de Kirchner fala há anos da insatisfação democrática. Por acaso o que acontece atualmente não é a consequência desta insatisfação? As palavras de Raúl Alfonsín de que “com a democracia não somente se vota, mas também se come, educa-se e se cura” não satisfez às demandas históricas de enormes parcelas dos trabalhadores. Sem falar da última década, em que se produziu um ataque sem precedentes nos recursos da nação, como também uma enorme transferência de recursos dos bolsos dos trabalhadores para os baús dos capitalistas.

Entretanto, apesar do indiscutível desta realidade material e histórica, há os que encontram argumentos irreais para explicar o voto em Milei. Por exemplo, a nova formação de um sujeito moral, chamado de melhorismo, baseia-se na ideia de que o progresso pessoal é possível e que se pauta no esforço individual sem a necessidade do Estado, que pode ajudar a setores castigados pela crise capitalista. Já que percebem o Estado como um peso, a de se reduzir a sua máxima expressão.

Esta interpretação de vários analistas, mostra que este novo sujeito moral, está formado por aquelas pessoas que repudiam ao papel do Estado em seu assistencialismo, reivindicando-se como sujeitos “empreendedores em si mesmos”.

Evidentemente que existem setores que assim pensam e sentem e que se identificam com o mileismo. Sem dúvida existem. Com esta ideia do melhorismo, há os que são beneficiários do assistencialismo do Estado e por razões inflacionárias viram suas parcas rendas pulverizadas que, de acordo com estes analistas, representam os setores empobrecidos que apoiam Milei.

Não fazemos uma apologia do assistencialismo, que é a consequência de um país com um capitalismo tardio, parasitário e rentista. A onda de desemprego nas últimas quatro décadas construíram, camada sobre camada, uma grande massa de desempregados, até a existência atual de gerações que vivem do assistencialismo estatal e não do trabalho. Mesmo que em última instância isto seja responsabilidade da classe dominante e de seus partidos, hoje, inclusive, converteu-se em uma dificuldade para os próprios capitalistas ao encontrar mão-de-obra qualificada para a indústria.

No balanço das eleições dizíamos:

“Milei, um candidato que pintou a Argentina de violeta, não conta com uma estrutura em nenhuma das províncias do país, nem com um só governador. Tampouco conta com o apoio do mais lúcido da burguesia, enquanto o FMI apostava em um governo peronista liderado por Sergio Massa. Mesmo que a candidatura de Sergio Massa tenha chegado às Paso abalada pelo caos dos preços e com um desprezo crescente aos olhos das massas, o Fundo Monetário tem consciência que quem ainda possui certo “restante de autoridade” sobre a classe trabalhadora é o Peronismo.”5

Isto segue sendo correto em um sentido, mas é verdade que a instalação midiática de Milei de maneira traiçoeira apoia a ideia de condicionamento com seu discurso e seu “programa de governo”, a implementação radical de mudanças nas relações trabalhistas que definitivamente podem pôr em relação de forças diferentes a classe trabalhadora e setores populares.

O que queremos dizer com isso? A burguesia, ou parte dela, apoia Milei em todas as medidas que façam as condições de trabalho, comissões paritárias de negociação, salários, entre outras, caiam. Apoiam e oxigenam um candidato que levanta o anarcocapitalismo, sem ter em conta mais que o deus mercado, levando o Estado a sua mínima expressão, deixando somente um punhado de Ministérios.

Milei rejeita qualquer papel que possa ter o Estado como órgão de classe em seu discurso, dos capitalistas, mas, no contexto da crise mundial que balança a Argentina, colocaria em uma situação difícil a diferentes facções da burguesia que, em geral, são as que se beneficiam com enormes somas de dinheiro por meio de múltiplos mecanismos estatais. A burguesia está jogando com o fio da navalha, insuflando um candidato que não é de suas entranhas e que lhe é alheio, já que não conta com os vínculos históricos que tem com os partidos majoritários.

É evidente que perante a crise de governabilidade que poderia ser aberta como consequência do crescente descrédito do regime político, Javier Milei poderia ser usado como último recurso. Mas este jogo tem seus limites até para a própria burguesia, já que sabe que, politicamente, Milei pode ser o incentivo que desencadeia uma expansão da luta de classes que acabe sendo incontrolável.

Contudo, também é verdade que o voto em Milei não representa um voto programaticamente ligado a ele, mas representa protesto e desprezo, desespero e fome de setores cada vez maiores da população, que no passado se sentiram representados pelo peronismo ou pelo Juntos por el Cambio.

Existe um aspecto no resultado das primárias que devemos ressaltar. A mídia deixou de falar sobre os 12.876.541 votos em branco, nulos e abstenções, que podemos enquadrar como voto contrário. A política negacionista deste resultado por parte da mídia burguesa tem como explicação mostrar Milei como a única alternativa, mesmo que isso carregue os perigos que implicam as medidas pregadas pelo profeta do mercado.

Os analistas do fenômeno Milei inclusive falam de “um novo povo” que o segue. Na realidade, são os pequeno-burgueses desacreditados de alternativas que podem, sim, ao menos potencialmente e em certo contexto histórico, ser uma referência para o movimento de massas. Uma referência que ainda se encontra em germinação, mas que cada vez que se move, faz tremer o tabuleiro capitalista.

A classe trabalhadora ainda não entra em cena. Poderiam nos perguntar: quantos trabalhadores, trabalhadoras e setores humildes, castigados pela fome e pelo desespero tomaram a variante mileista? Evidentemente podem ser muitos.

Cedo ou tarde, quando a experiência amarga de um possível governo Milei impacte sobre os nervos e os músculos de nossa classe, quando, com as políticas do profeta do horror gerarem novas frustrações, a classe trabalhadora começará a se mover e derrubará as falsas ideias de que com Milei surge “um novo povo”, ou “que os pobres votando em Milei ou Bullrich é um suicídio coletivo”, ou “que os de baixo votam em seus próprios algozes”.

Estes esquerdistas progressistas só podem ver a falha alheia e não a própria, somente podem ver a suposta responsabilidade dos de baixo por derrubar os partidos majoritários e não a responsabilidade que têm como direção, de jogar com a política de arroxo e de pavimentar o caminho para a direita. Esquerdistas e a Frente de Todos / Unión por la Patria são os marechais da derrota e choram sobre os fatos consumados para assim lamberem as feridas como cachorros. Esta gente não para de nos falar da derrota cultural que nos levou até o presente desolador.

Deixam de lado as políticas que levaram adiante desde que assumiram em 2019, que foram as que, por outros meios, não só se subordinaram ao FMI, mas descarregaram artilharia pesada sobre os setores populares para que, definitivamente, a crise seja paga pelos de baixo. Justificam-se dizendo que fazem o que podem, pela herança da fabulosa dívida macrista, a partir do empréstimo que Macri pegou do Fundo Monetário Internacional.

Ou os setores mais radicais da Frente de Todos / Unión por la Patria, que permanecem ancorados na impotência de não gerar uma ruptura de classes, ficando sujeitos ao que seus dirigentes dizem. O mal menor é o que prevalece. São “vítimas” de seu programa, que é o de aceitar governar dentro do marco capitalista, aceitar suas leis e tentar controlar o que não se pode controlar: o capitalismo.

Ao contrário, as massas buscam e tomam as ferramentas que encontram à mão para atacar ou castigar pelos anos de miséria e degradação levadas adiante por uns e outros.

O que devemos entender é que ganhe quem ganhe, a crise se acentuará agudamente e empurrará à radicalização da luta de classes. Cedo ou tarde, as massas tomarão as ruas. É necessário preparar a etapa que vem e nisto a intervenção da classe trabalhadora com seus métodos e tradições de luta é fundamental.

O fenômeno Milei está longe de ser um fenômeno que veio para ficar. É mais que provável que seja um fenômeno transitório, e se ficar mais tempo do que deveria, a esquerda que se adapta ao parlamentarismo terá uma grande responsabilidade sobre isso, por não apresentar uma alternativa válida, forjada pelo método e pelo Programa Revolucionário.

Por isso devemos avançar de maneira decisiva na construção de uma esquerda revolucionária que indique ao capitalismo o que é: um horror sem fim.

Junte-se aos Comunistas da Corriente Socialista Militante!

Socialismo ou barbárie!

TRADUÇÃO DE NATHAN BELCAVELLO DE OLIVEIRA

1 Primárias eleitorais que definem os candidatos de cada partido para as eleições nacionais na Argentina (Nota do Tradutor – N.T.).

2 “Juntos pela Mudança”, coalizão partidária formada para as eleições de 2019, ampliação da coalizão Cambiemos que levou Macri à presidência da Argentina em 2015 (N.T.).

3 Durante apresentação do estudo Desafíos de la planificación territorial, el acceso al hábitat y a la vivienda (Desafios do planejamento territorial, do acesso ao habitat e à moradia), realizado pelo Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (Cippec), pela Asociación Civil por la Igualdad y la Justicia (Acij) e pela Techo em: FIGUEROA, Gabriela. Crisis habitacional: en la Argentina, uno de cada tres hogares no cuenta con una vivienda adecuada. Tiempo Argentino, 3 ago. 2023. (N.T.).

4 CIERI, José Luis. Estiman que hay 3 millones de hogares inquilinos en la Argentina, un 34% más que en 2016. Infobae, 5 jul. 2023.

5 CORRIENTE SOCIALISTA MILITANTE. Elecciones PASO 2023: Ni reír ni llorar ¡comprender! Revolución, 16 ago. 2023 (N.T.).