Novembro se encerrou deixando um rastro de pólvora para o último mês de 2020 na França. Com amplas manifestações em todo o país, o Projeto de Lei de “Segurança Global”, promovido pelo partido do presidente Emmanuel Macron, La Republique en Marche (LREM), foi fortemente combatido, sobretudo após divulgações de imagens de abuso e de violência policiais contra trabalhadores.
O projeto, aprovado na Assembleia Nacional em 24 de novembro, já tinha acendido protestos em diversas cidades uma semana antes, quando começou ser debatido na casa. O texto, que a princípio diz buscar a integração de esforços das diversas forças de segurança e proteção de seus agentes, na realidade, abre mais brechas para uma atuação brutal e racista — característica da atuação da polícia francesa — ao ampliar as formas de vigilância, expandir os poderes dos agentes e inibir o registro de imagem destes no exercício de suas funções.
Chamada de “liberticida”, a lei implementa mecanismos de controle e vigilância da população, o que constitui mais um obstáculo à liberdade de manifestação frente a vulnerabilidade à truculência policial. Os protestos têm defendido a liberdade da imprensa, a liberdade à informação e as “liberdades públicas fundamentais” do país. Neste sentido, alguns artigos ganharam destaque das críticas. O artigo 24 da lei prevê pena de prisão e multa a quem fizer registro e divulgação de imagem dos agentes com a intenção de “minar [sua] integridade física ou mental“. A despeito desta especificidade, a definição de intenção de prejuízo ao agente não está clara e investe o policial com o poder de perseguição e restrição ao registro das ações policiais. Algo que acontece mesmo sem legitimação. Os artigos 21 e 22 tratam, respectivamente, da regulamentação de uso de câmeras individuais por agentes e o uso de “meios aéreos” (drones) para captação, registro e arquivamento de imagens, ambos conectados a um posto de controle que poderá, inclusive, monitorar e trocar informações com operações em andamento.
Em 17 de novembro, a concentração de cerca de mil pessoas em frente ao edifício da Assembleia Nacional, contra as restrições à informação da proposta de lei, terminou em confrontos com a polícia, bombas de gás lacrimogêneo, canhões de água, além de pessoas feridas e prisões. Outras manifestações foram reportadas em Rennes, Lyon, Toulouse, Bordeaux e Grenoble. A polícia que sistematicamente demonstra sua truculência não haveria de economizar demonstrações neste momento.
Senão por falta de combustível, as manifestações francesas ganharam mais aderência a partir de acontecimentos que marcaram dias anteriores à votação. No mesmo dia em que foi convocada outra manifestação em Paris — na Place du Trocadèro — e em diversas cidades francesas (Brest, Dunkirk, Le Havre, Lille, Lyon, Marseille, Montpellier, Rouen, Saint-etienne), Michel Zecler, um produtor musical negro, foi espancado dentro do seu estúdio na capital por três policiais enquanto proferiam insultos racistas. A despeito dos agentes afimarem que Michel os atraiu para dentro do edifício e tentou pegar suas armas, as câmeras de segurança do local registraram a ocorrência, provando a farsa deste argumento. É fácil constatar que, caso não tivesse sido gravada, esta agressão teria sido facilmente deturpada. Dois dias depois, na noite de 23 de novembro, policiais desmontaram violentamente um acampamento improvisado de migrantes no centro de Paris que exigiam alojamentos emergenciais. Na ação, arrancaram à força as pessoas de suas barracas, perseguiram e intimidaram jornalistas que registraram a ação em câmeras e smartphones.
O presidente Emmanuel Macron qualificou a agressão ao produtor como “vergonhosa” e “inaceitável”. Gerald Darmanin, ministro do Interior, por sua vez, categorizou a ação de evacuação do acampamento como “violência policial”, exigindo um relatório da prefeitura. No entanto, ambos seguem na defesa da proposta de lei e, enquanto o primeiro afirma querer restaurar a confiança da população na polícia, o segundo afirma que a defesa à liberdade de expressão e a proteção aos agentes de segurança são ações complementares. O que, do ponto de vista marxista, se trata de um disparate, já que a polícia atua na defesa dos interesses e ideias da burguesia.
As ações endossaram os descontentamentos da população o que aumentou a aderência às manifestações. A Marche des libertès (Marcha das liberdades), convocada primeiramente em 28 de novembro, atingiu 70 cidades francesas. Ela ocorreu novamente neste último sábado (5/12), com a exigência de que a lei seja totalmente retirada do processo de votação.
A manifestação de 5 de dezembro contou com a aderência de sindicatos que já estavam organizados em protesto contra condições precárias de trabalho, tendo sido registrado cerca de 90 pontos de concentração. Diferentemente da semana anterior, cidades como Bordeaux, Montpellier e Caen proibiram os protestos a fim de evitar que “saíssem do controle“.
Nos dois últimos sábados, o cenário de confrontos e prisões se repetiu. A polícia e a mídia apontam que um pequeno grupo enfrentou os policiais ao atear fogo em carros, quebrar vidraças de lojas e bancos e erguer barricadas. Mesmo assim, a imprensa, partidos políticos, sindicatos, estudantes, membros dos Coletes Amarelos e trabalhadores seguem demonstrando disposição ao combate. Neste sentido, é importante observar que o clima de insatisfação e revolta atinge também os gramados. Na última terça-feira (8), a partida entre Istanbul Basaksehir e PSG, na Champions League, foi suspensa após os jogadores deixarem o campo em resposta ao racismo demonstrado pelo quarto árbitro contra o treinador adjunto do clube turco, Pierre Webo. A partida ocorreu na França, palco dos protestos que já duram quatro semanas. No próximo sábado, 12 de dezembro, deve acontecer outra manifestação.
A única concessão anunciada pelo governo até agora se limita a reelaboração do texto do artigo 24. Entretanto, isto não modifica o caráter da lei que instrumentaliza a polícia para vigilância em massa ao conferir-lhe poderes mais amplos. Tampouco, atua sobre o risco sofrido pelos policiais, como alega o Ministro do Interior. Mesmo com a tese de que esta lei protegeria os agentes de desgastes físicos e morais, a solução, obviamente, não consiste em ampliar a brutalidade por parte deles com o benefício da impunidade.
Por mais que Macron, assim como tantos outros, critiquem, vez ou outra, episódios de racismo e violência policial lançando mão da tese das “maçãs podres” e afirmando que tais ações são cometidas contra a organização da força de segurança, é claro que a situação não é bem assim. Este tipo de afirmação sugere que a polícia poderia atuar no benefício de “todos os cidadãos” e isso é uma mentira. As forças de segurança, na realidade, são o braço armado do Estado, um órgão que atua na manutenção da exploração entre classes.
Procura-se dizer que os abusos cometidos pelos agentes da ordem são “acidentes de percurso”, mas o caráter violento da polícia é inerente a ela. Os abusos e as agressões, se não são ordem expressas, são amenizados pela “vista grossa” das instâncias superiores. O mesmo mecanismo de hipocrisia se aplica à Federação Internacional de Futebol (FIFA), que ao mesmo tempo em que encabeça campanhas contra o racismo, é a entidade mais corrupta e capitalista do esporte, possibilitando que seu representante em campo se sinta confortável o suficiente para expressar o seu racismo “padrão FIFA”. Todas as entidades que se servem do capitalismo e seguem seu modelo, reproduzem também os seus valores e a sua brutalidade.
A polícia, por sua vez, é, em sua concepção, um instrumento de opressão sobre a classe trabalhadora, o que invalida toda expectativa de que uma polícia reformada, ou com sua “integridade física e moral” protegida por aparatos legais, seria capaz de atender aos interesses da população.
É importante compreender que a derrubada de um artigo ou a retirada de uma lei como esta são tensionamentos recorrentes na arena pública que apenas modulam as feições da opressão. Na realidade, a burguesia a fim de garantir para si os benefícios da exploração dos trabalhadores deve conservar a atuação do Estado e da polícia, tal como são, para manter as massas submissas e alheias do próprio ímpeto de revolta e de luta. As mudanças só ocorrerão efetivamente quando os privilégios de uma minoria, às custas da maioria, forem destruídos e com eles todo aparato de controle e violência.