Lições do Equador e Chile aos trabalhadores brasileiros

A América Latina e o mundo vivem um ano de intensa mobilização da classe trabalhadora. Os protestos no Equador, Chile, Haiti, Bolívia, Paraguai, Peru, Venezuela, Argentina mostram que a suposta onda conservadora passa longe dessa região, pois o que vemos é uma onda revolucionária atingindo-a. Aqui, no Brasil, Bolsonaro anuncia que o Exército está preparado para possíveis manifestações, o que demonstra o medo da burguesia na mobilização da classe trabalhadora brasileira.

Faremos, a seguir, um breve histórico dos principais acontecimentos da onda de protestos que passa pela América Latina, detendo especificamente os casos no Equador, Chile e Brasil. Haveria uma unidade dos movimentos nesses três países? E nas palavras de ordem assumidas pela classe trabalhadora? No Equador, houve o “Fora Lenín”, no Chile, “Fora Piñera” e aqui no Brasil, onde a onda ainda não chegou, mas a polarização política e a agitação se aprofunda, estaria correta desde agora levantar o “Fora Bolsonaro”?

Passemos ao relato da situação desses três países.

Equador

Foto: CONAIE

A onda de protestos que varreu o Equador teve seu início após o presidente Lenín Moreno anunciar, em 1º/10, um pacote de contrarreformas econômicas em troca de um empréstimo de US$ 10 bilhões, negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em troca da redução da dívida pública e da duplicação da reserva de divisas.

As medidas do pacote incluíam o fim dos subsídios ao combustível, corte nos gastos públicos e uma série de retirada de direitos de trabalhadores servidores públicos – como terem as férias remuneradas reduzidas de 30 para 15 dias por ano, renovação de contratos temporários com redução salarial em 20%, plano de demissão em massa de servidores. Tais medidas têm um caráter seletivo: prejudicariam os mais pobres e beneficiariam os mais ricos, por conterem a redução das tarifas de bens de capital e de consumo e a abolição do pagamento antecipado de impostos sobre a renda e sobre a exportação de divisas, e, de acordo com o próprio FMI, tais medidas, se aplicadas, levaria o país a uma recessão.

Parte dessas medidas precisaria passar pelo Congresso, porém o fim do subsídio ao combustível poderia ser feito por ato do Executivo. E assim foi. Os valores atingiram proporções estratosféricas: o diesel passou de US$ 1,03 para US$ 2,27 e a gasolina, de US$ 1,85 para US$ 2,30. As consequências foram imediatas: amplas manifestações contra o pacote se iniciaram. Uniram-se motoristas de ônibus, táxis e caminhão com organizações sindicais chamando greve e manifestações que ocorreram na capital e em diversas províncias.

A repressão foi forte, houve mortes, prisões e muitos feridos. O governo decretou estado de emergência, porém nem mesmo a repressão arrefeceu os ânimos: o toque de recolher foi ignorado. O povo equatoriano tem tradição revolucionária: derrubou governos em 1997, 2000 e 2005 e, em 2010, foi às ruas para derrotar a tentativa de golpe ao governo de Rafael Correa.

Como resultado da força das massas, Lenín Moreno anunciou a revogação, no dia 14/10, do decreto nº 883, que acabava com os subsídios ao combustível. Isso foi feito após um grande diálogo e um acordo com a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). Esse acordo foi uma traição, pois significou a recusa da CONAIE de tomar o poder e na prática fez o movimento refluir, o resultado foi que Lenín Moreno continuou governando depois disso.

A CONAIE assumiu a liderança da luta e declarou seu próprio “Estado de Emergência”. E o grupo Revolução Cidadã, de Correa, apoiou. Os protestos no Equador se transformaram em insurreição revolucionária. Prédios do governo foram assaltados. Com a chegada das colunas indígenas à capital Quito, o governo fugiu, abandonando o palácio presidencial e transferindo o governo para Guayaquil. A repressão se intensificou. E uma greve geral paralisou o país. A palavra de ordem de “Assembleia do Povo” reapareceu. Manifestantes organizaram sua própria autodefesa, a Guarda Indígena, e começaram a desarmar e prender soldados. As forças de repressão começou a se dividir. O governo recuou. Mas a CONAIE hesitou e se recusou a lutar para derrubar o governo e tomar o poder. Mas o povo equatoriano mostrou sua força: souberam utilizar métodos de mobilização para parar o país e nada está resolvido.

A direção da CONAIE agiu a todo momento por trás do movimento, negando-se a levantar a palavra de ordem de “Fora Lenín Moreno” quando era a palavra de ordem do movimento, e, nos momentos cruciais, se sentou para negociar e desmobilizou as massas em troca de uma só concessão, em um momento em que se poderia derrubar o governo.

Chile

Foto: Colectivo 2+/Carlos Vera M.

O estopim para as manifestações vistas no Chile foi o anúncio do aumento da tarifa do metrô. Inicialmente, os protestos ocorreram nas estações do centro de Santiago – com protagonismo de estudantes do Ensino Médio – que se evadiam do pagamento da passagem, pulando a catraca e incentivando outros a fazerem. Do ponto de vista da legalidade burguesa, isso não é um crime, apenas uma falta administrativa, o que não justifica a entrada de militares na estação para reprimir o movimento.

O aumento da passagem foi a gota d´água no balde de insatisfação da população chilena contra governo e o modelo econômico atual, mesmo que não tenham consciência do seu desejo pelo socialismo, num país onde 79% das aposentadorias são menores que um salário mínimo e 44% inferiores à linha da pobreza, com praticamente todos os serviços públicos privatizados.

Com a extensão dos atos de pular catraca, as estações de metrô foram fechadas e as massas tiveram que caminhar pelas ruas. Houve panelaço contra o aumento da passagem mais cara da América Latina. O movimento se ampliava e alcançava setores periféricos. Houve saques e incêndios em locais simbólicos (de setores que conspiraram contra a classe trabalhadora), tais como supermercados, farmácias, bancos, shoppings, rodovias, muitas estações de metrô destruídas e incêndio ao edifício da Enel, a companhia elétrica do Chile. O povo chileno mostra seu ódio de classe contra a privatização de serviços públicos.

A repressão foi violenta. Mortos, feridos e prisões. Piñera decreta Estado de Emergência em 18/10 e, no sábado 19,  as ruas estão ocupadas por militares, o que não se via desde a ditadura militar. Piñera anunciou também, junto com o toque de recolher, o fim do aumento da tarifa, manobrando para dividir o povo e enfraquecer as mobilizações, mas não surtiu efeito.

Piñera chegou a colocar os cargos de todos os ministros à disposição. Enquanto o movimento evoluiu da reivindicação pelo aumento da tarifa de metrô para demandas por saúde, educação, fim do Estado de Emergência e a renúncia de Piñera. Os manifestantes também fizeram muitas greves, como a Greve Geral de 48 horas convocada por Unidad Social e pelo Sindicato dos Portuários, que paralisou todas as atividades ainda em outubro.

A luta nas ruas e nas greves se transformou numa verdadeira insurreição. O que diferenciou o Chile do Equador foi apenas a fuga de Lenín Moreno, e o fechamento do Parlamento em Quito. Mas colocou em xeque o governo de Piñera, desatando uma verdadeira insurreição que, longe de ser apaziguada ante a presença e a repressão do exército e dos carabineiros nas ruas, incrementou crescentemente a luta dos trabalhadores e da juventude. E a palavra de ordem “Fora Piñera” é dominante nas massas mobilizadas.

A juventude desempenhou um papel primordial na mudança de qualidade da luta de classes. Só o Sindicato dos Portuários de Valparaíso se mostrou rapidamente em sintonia com a situação de luta e, diante da violência incomum exercita pelas forças repressivas, convocou uma greve geral de 24 horas. Em seguida, Unidad Social convocou uma parada geral para os dias 23 e 24/10, com um programa limitado: a renúncia de Piñera, greve parlamentar, contra a repressão e pela suspensão do toque de recolher.

Mas enquanto isso, as massas buscam o que não encontram nas organizações políticas tradicionais de esquerda, como é o caso do Partido Socialista, que se encontra historicamente comprometido com a Concertación, ou do sectarismo dos partidos de esquerda; por isso, as massas vão materializando tendencialmente a formação de Assembleias Populares ou Cabildos Abiertos, em várias regiões do Chile.

É preciso muita atenção nesse momento porque o acordo entre o governo e a oposição sobre a elaboração de uma nova constituição é, na verdade, uma grande armadilha constitucional. Pois a Convenção Mista para sua elaboração seria composta parcialmente por parlamentares atuais; a eleição à Convenção será pelo mesmo sistema das atuais eleições burguesas (o que dá vantagem aos partidos existentes); A Convenção não será soberana, não poderá afetar os demais órgãos do Estado e não poderá decidir sequer sobre seu próprio regulamento; As decisões serão por quórum de 2/3 – ou seja, se a direita conseguir 1/3, terá direito de veto; O atual congresso totalmente apodrecido, desacreditado e sem legitimidade terá também que ratificar a nova constituição; Qualquer disputa sobre o acordo será dirimida por uma comissão paritária governista/oposicionista, ou seja, o governo de Piñera tem a última palavra; Do que estamos falando, então, é de uma Convenção blindada pelo atual regime, com toda uma série de mecanismos que asseguram que o levantamento popular do último mês não tenha voz decisória na mesma.

Foto: Colectivo 2+/Carlos Vera M.

Essa proposta de constituinte serve, no fundo, para tirar das ruas o levantamento contra o regime e metê-lo em um curral constitucional controlado. Os partidos de esquerda que entrarem nesse jogo trairão a luta com discurso da “unidade nacional” e de uma “saída institucional”, aparecendo na foto conjunta para as manchetes dos jornais. A posição do PC Chileno de não assinar é digna, mas muitos de seus porta-vozes continuam apresentando o acordo como um “enorme triunfo” (como Carmen Hertz).

A insurreição popular deve rejeitar essa farsa. Trabalhadores e jovens devem permanecer mobilizados nas ruas, fortalecer as assembleias e cabildos (conselhos) autoconvocados  e organizar comitês de segurança e proteção e cabildos regionais. O próximo passo do movimento deve ser preparar uma greve geral total para derrubar o assassino Piñera. Com base nisso, uma Assembleia Nacional da Classe Trabalhadora e do Povo pode ser convocada para decidir sobre todas as coisas.

A derrubada do sistema no Chile hoje passa por manter firme a palavra de ordem Fora Piñera e seu regime, assim como construir uma greve geral indefinida e assembleias populares como poder do povo nas ruas e nos locais de trabalho.

Brasil

Um retrato das condições de vida da população brasileira mostra uma imagem sombria: 12% da população está desempregada, 24,6% são subutilizados, trabalham menos do que poderiam, 6,8% é analfabeto, 35,7% estão restritos ao acesso a saneamento básico e 12,8% à moradia. Segundo pesquisa do IBGE de 2018, 1 milhão de brasileiros passou a viver abaixo da linha da extrema pobreza, que atingiu o índice de 6,5% da população, ou seja, 13,5 milhões de pessoas (muito mais do que toda a população de Portugal). Essas pessoas sobrevivem com menos de US$ 1,90 diário per capita, cerca de R$ 7,76 por dia, R$ 232,80 por mês. Repetimos: são 13,5 milhões de miseráveis num país rico como o Brasil.

A juventude também é vítima desse sistema, pois de acordo com o Instituto, em 2018, 11,8% dos jovens com baixos rendimentos evadem da escola sem terminar a educação básica. O capitalismo lhes nega o direito à educação.

Uma ofensiva capitalista avança contra a classe trabalhadora no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro já sinalizava, desde a campanha eleitoral, que a população deveria escolher ter direitos ou ter trabalho. A reforma da previdência significa para muitos o fim do direito à aposentadoria ou apenas aproveitar por poucos anos antes de morrer, de acordo com a expectativa de vida no país.

Aplica-se no Brasil a mesma política de austeridade executada no Chile, que está levando idosos ao suicídio pelas pioras das condições de vida e pelas aposentadorias serem menores que o salário mínimo, somada à perda do poder aquisitivo, ao aumento da pobreza e da extrema pobreza, dentre outras questões que assolam os chilenos. É essa perspectiva que se terá no Brasil. É preciso a derruba do governo Bolsonaro pela classe trabalhadora e não pelas vias da burguesia.

Bolsonaro se diz preocupado com o “efeito Chile” no Brasil. O Chile foi onde jovens e trabalhadores saíram às ruas em manifestações massivas e greves poderosas pela derrubada do presidente e do sistema, mas tanto no Chile, como no Equador, como aqui no Brasil, as principais organizações que dizem que falam em nome da esquerda, rejeitam a palavra de “Fora Governos”. Por quê? Precisamos discutir.

Recentemente, Lula saiu da cadeia, numa derrota para a operação Lava Jato e vitória de quem luta por liberdades democráticas, contra a criminalização dos trabalhadores, mas no dia seguinte Lula já se tornou um dos maiores defensores da sustentação de Bolsonaro. Num trecho do seu discurso em São Bernardo afirmou:

“[…] Tem gente que fala que precisa derrubar o Bolsonaro. Tem gente que fala em impeachment. Veja, o cidadão foi eleito. Democraticamente, aceitamos o resultado da eleição. Esse cara tem um mandato de quatro anos. […]”

Nós pensamos diferente de Lula. Diante de tantos escândalos, associações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes com a família Bolsonaro; denúncias de obstrução de justiça e de investigação das mortes; o fato de o deputado Eduardo Bolsonaro sugerir o retorno do AI-5 caso a esquerda radicalizasse, foram organizados movimentos em algumas cidades brasileiras contra o governo Bolsonaro no dia 5/11, em que foi empunhada por uma quantidade cada vez maior de pessoas a palavra de ordem “Fora Bolsonaro”. Diante de tantos ataques a nossos direitos a aposentadoria, aos cortes na educação e universidades, e tudo o mais que ele diz que vai continuar fazendo, nós dissemos que os trabalhadores e juventude brasileira tem o direito e dever de se revoltar interromper seu mandato.

A palavra de ordem Fora Bolsonaro, que Lula quer silenciar, só cresce porque é a expressão da revolta da classe trabalhadora diante de tantos ataques e da piora de suas condições de vida, fruto da descrença nesse governo, que se mostrava antissistema antes das eleições, e os trabalhadores, confiantes, o elegeram. Aqueles que elegeram Bolsonaro não são “fascistas”, “coxinhas”, como parte da esquerda reformista prefere nomeá-los. Eles tão-somente não suportam mais o sistema capitalista e Bolsonaro apresentava-se contra “tudo isso daí”, como ele mesmo dizia. Mesmo sem ter consciência disto, o que a classe trabalhadora brasileira deseja inconscientemente é o fim do capitalismo. Estão ávidos por um sistema justo, que lhes assegure acesso aos serviços básicos, à segurança, ao direito de moradia e de alimentação. Precisamos nós explicar, que isso só poderá se conquistado através do socialismo, e os primeiros passos são, portanto, a derrubada de Bolsonaro e a construção de um governo dos trabalhadores. Se Lula não fala, a gente fala.

Esses movimentos contra o Governo Bolsonaro mostram o amadurecimento político dos trabalhadores. A classe trabalhadora brasileira não mais suportará passivamente tantos ataques. O cenário é que ela alongará seus músculos e se revoltará contra tais medidas, contra esse governo e contra o capital. O medo da burguesia pela revolta dos trabalhadores ficou claro na fala do presidente de que as Forças Armadas estariam preparadas no caso de, no Brasil, ocorrerem manifestações tais quais as do Chile. Isso mostra o potencial da classe organizada.

Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!

Essa breve análise dos acontecimentos recentes no Equador, Chile e Brasil, resguardadas suas particularidades e experiências históricas distintas, mostra que existe uma unidade nas palavras de ordem “Fora Lenín”, “Fora Piñera” e “Fora Bolsonaro”: são governos desacreditados no sistema capitalista, a burguesia em crise é incapaz de assegurar o mínimo necessário para as famílias se manterem. O que há de comum nessas três palavras de ordem, assumidas pelas massas, é um desejo profundo pela construção de um governo dos trabalhadores nesses países. E as organizações dos trabalhadores existentes em cada um deles ainda são débeis para expressar isso, ou mesmo são freios e trabalham na contramão.

A tarefa da Esquerda Marxista e da Corrente Marxista Internacional é ajuda-los a superar essa dificuldade e construir os partidos que a classe necessita para ligar cada uma dessas lutas ao combate pelo socialismo e por uma nova Internacional revolucionária.

Vemos que a onda revolucionária, que se espraia pelo mundo, está passando de país a país; e, certamente, chegará ao Brasil. Todos esses movimentos demonstram a insatisfação das massas pelo capitalismo, desejando um sistema justo, que esteja sob seu poder e, para isso, a classe trabalhadora da América Latina e do mundo se levanta e mostra que sua consciência de classe está sendo agudizada. Cabe a nós, marxistas, como vanguarda, estarmos preparados para sabermos explicar a conjuntura aos trabalhadores, fortalecendo a luta pela derrubada do sistema capitalista. Juntem-se a nós!