Luta de classes e a Revolução Americana

Dia 4 de julho é celebrada a independência dos Estados Unidos da América, data repercutida pela indústria do entretenimento e pelas festas com fogos de artifício. Contudo, John Peterson revela as raízes de classe deste evento que abalou o mundo.

Ultimamente, o chamado movimento Tea Party vem reivindicando o legado da Revolução Americana. Com seus tricórnios [chapéus de três bicos – NDT] e apelos abstratos ao patriotismo e à liberdade, se apoderaram das manchetes dos jornais, auxiliados pela cobertura generosa da mídia corporativa. Isto levou a uma enorme confusão quando se chega às reais raízes de classe deste evento que abala o mundo. Infelizmente, para muitos americanos a Revolução foi reduzida a um churrasco de Verão no dia 4 de julho, ao agito de bandeiras, fogos de artifício e retratos de George Washington cruzando heroicamente o Rio Delaware.

Na escola aprendemos sobre o Massacre de Boston, o Tea Party, a Lei do Selo, a corrida de Paul Revere, as escaramuças em Lexington e Concord, a Batalha de Bunker Hill, a Declaração da Independência, o duro inverno em Valley Forge, a capitulação de Cornwallis em Yorktown, a Constituição, a Lei dos Direitos e sobre as invenções e aventuras de Ben Franklin com as damas em Londres e Paris. Tudo isso é bom, mas é uma compreensão superficial do que aconteceu e perde a verdadeira essência da questão.

Infelizmente, a maioria dos historiadores, e até mesmo alguns supostos Marxistas, apresenta uma versão caricata da Revolução Americana. Alguns inclusive negam que ela foi uma revolução “real”, em absoluto. Ela é frequentemente apresentada como um pouco mais que uma luta pelo poder entre dois grupos de proprietários brancos, com a vitória final dos arrivistas coloniais, os quais, então, meramente tomaram as rédeas do poder político e econômico, e com este ou aquele ajuste cosmético, se estabeleceram como a nova classe dominante. Há um elemento de verdade nisto – mas somente na superfície. Nossa tarefa como materialistas históricos é mergulhar abaixo da superfície para desvendar e compreender as contradições internas, as forças fundamentais, os processos e as lutas de classe que motivaram e dirigiram a revolução.

Na realidade, a Revolução Americana foi um movimento social e uma transformação muito mais dialeticamente complexa, de longo alcance e fundamental do que a maioria acredita. Não foi uma mera rebelião colonial. Foi uma profunda revolução política e social, que erradicou a maioria dos vestígios que restavam do governo monárquico e do feudalismo herdados da só parcialmente completa revolução burguesa inglesa. Os americanos realizaram a revolução democrática burguesa em uma escala nunca antes vista na história.

Como Marxistas, não somos deterministas econômicos; mas entendemos que, em última análise, o modo de produção é a base, a infraestrutura, sobre a qual repousa a superestrutura da sociedade: a ideologia, religião, filosofia, vida intelectual, partidos políticos e correntes, estatutos legais, normas sociais e culturais, estética etc. Todos interagem e se condicionam mutuamente e, nos pontos nodais da história, a quantidade se transforma em qualidade, e vice-versa.

Como Marx esboçou em seu Contribuição à Crítica da Economia Política:

“Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações se convertem em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. (…) Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais o seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade”.

Este deve ser o nosso ponto de partida na análise da dinâmica da revolução americana – ou de qualquer outra revolução – incluindo as que estamos vivendo e que estão se preparando atualmente.

Feudalismo vs capitalismo

A Revolução Americana foi o prelúdio da Grande Revolução Francesa, antecipando o que estava por vir logo a seguir na Europa. No centro da revolução estava o antagonismo entre os resquícios do feudalismo, plantados artificialmente às margens das Américas, e a incipiente sociedade burguesa. De certo modo, pode-se dizer que o feudalismo se rompeu em um de seus elos mais fracos, em um lugar onde as relações capitalistas tinham se desenvolvido ao ponto em que podiam desafiar os débeis restos da velha sociedade e realmente suplantá-la. Porque, embora o feudalismo não tenha se desenvolvido de forma orgânica nas Américas, e embora não tenha havido séculos de domínio dos Lords e Reis e o poder estabelecido da igreja para esmagar, havia muitos aspectos daquele sistema que estavam bem vivos nas colônias americanas da Grã-Bretanha.

Por exemplo, havia o sistema do vínculo e da progenitura, projetado para manter a propriedade dentro de uma única linhagem familiar. Também havia latifúndios enormes, muitos deles em escala que superava as grandes propriedades feudais na Europa, com alguns tão grandes quanto 6 milhões de acres, ou cerca de um quinto do atual estado da Virgínia. Em áreas como Hudson Valley de Nova Iorque, existiam grandes propriedades senhoriais, com aqueles que trabalhavam a terra sendo meros fazendeiros arrendatários, e não detentores de propriedades individuais. Enormes extensões de terra no Oeste foram reservadas exclusivamente à Coroa, com as árvores mais altas e retas reservadas para o Rei e sua Marinha. E, em alguns casos, taxas de arrendamento e outros direitos feudais eram impostos e recolhidos dos que trabalhavam a terra.

Além disso, havia uma igreja estabelecida e financiada pelo estado em nove das treze colônias. Os grandes proprietários de terra e os grandes comerciantes da costa aspiravam viver como uma espécie de pseudo-nobreza, com os ares e costumes dos aristocratas das cortes reais da Europa. Era em grande medida uma sociedade baseada nas obrigações sociais e em uma estratificação social e uma hierarquia claramente definidas.

E falar de desenvolvimento desigual e combinado! Tinhas a escravidão e a servidão em escala massiva, uma combinação de relações pré-feudais, semifeudais e semi-capitalistas, todas se deixando cair em um vasto e não lavrado continente cheio de recursos naturais, habitado por milhões de comunistas primitivos falando milhares de línguas diferentes.

Uma nova sociedade se desenvolve

No final do século XVII, os ingleses haviam estabelecido um aperto relativamente firme na América do Norte, tendo superado os holandeses, suecos, finlandeses, alemães e outros que tentaram ganhar uma posição nesta parte do Novo Mundo. Até a Revolução, os americanos geralmente se consideravam súditos leais da Coroa Britânica. Eles podem ter tido este ou aquele desacordo com a pátria-mãe ao longo dos anos, mas se viam acima de tudo como ingleses, particularmente em relação aos franceses, que ainda ocupavam significativas porções do continente.

Não obstante, embora de maioria inglesa, a parte do continente que viria se tornar os Estados Unidos era, desde o início, um crisol étnico e cultural – para não mencionar de classe: com holandeses, franceses, ingleses, escoceses, alemães, espanhóis, nativos americanos, africanos e outros. Pessoas de todas as classes e de todas as origens chegaram para fazer uma vida nova: soldados, artesãos, fazendeiros, moleiros, padeiros, maquinistas, criminosos, advogados, artesãos especializados e não especializados, traficantes, peleteiros, comerciantes, banqueiros, pregadores, pescadores, contrabandistas, ricos, pobres, religiosos marginalizados e assim por diante, 35% dos quais eram servos ou escravos.

Tudo isto enxertado em um ambiente muito diferente e até então não regulamentado, selvagem e muitas vezes hostil, com diversos clima, flora, fauna e geografia, para não mencionar os milhões de nativos americanos. Isto inevitavelmente levou desde o início à criação de instituições sociais, culturais, políticas, religiosas e legais únicas, que, com o tempo, se separaram cada vez mais das instituições da metrópole. Ademais de ser ingleses, os futuros americanos se identificavam crescentemente como sendo homens de Massachusetts ou Virginianos.

Com o tempo, as instituições peculiares desenvolvidas para se adaptar a este novo mundo colocaram seu selo no caráter do país e de seu povo. O “robusto individualismo” e o “espírito de fronteira” típicos de muitos americanos têm suas raízes neste período. Como havia tanta terra disponível, se tornou crescentemente difícil manter trabalhadores livres enquanto eles pudessem se mover mais a Oeste e se estabelecer em sua própria propriedade, apesar das dificuldades decorrentes. Isto levou à dependência crescente do trabalho de escravos e de servos contratados como aprendizes, e mesmo a maiores tensões entre as classes.

Incidentes como a Rebelião do Bacon de 1676, em que servos contratados como aprendizes, negros e brancos, lutaram contra seus exploradores comuns, e que até mesmo incendiaram a capital do estado de Virgínia, Jamestown, também produziram um impacto no curso do desenvolvimento do país. Ante o temor desta unidade de classe atravessando as linhas raciais, e como os negros podiam ser mais facilmente identificados do que os brancos, foram aplicados distintos padrões para punir os rebeldes, e a preferência pela importação de escravos africanos cresceu.

Mas, através de tudo isto, havia uma crescente identidade nacional, uma história comum, uma atitude divergente e, com o tempo e de forma inexorável, a necessidade de uma maior independência política e econômica. Durante um período de séculos e décadas, quase imperceptível para os que viveram nele, uma nova sociedade “amadureceu dentro do ventre da velha”. E uma vez que as condições materiais objetivas amadureceram suficientemente, o fator subjetivo – a consciência revolucionária e o radicalismo da nascente burguesia dos EUA, e acima de tudo, a vontade da classe trabalhadora de lutar para mudar a sociedade – aceleraram dramaticamente.

O historiador Charles Andrews explicou suscintamente que (citado em Aptheker):

“Por um lado, estava o sistema imutável e estereotipado da metrópole, com base nos precedentes e na tradição, e projetado para manter as coisas tão confortáveis quanto estavam; por outro, um organismo vital e dinâmico, contendo a semente de uma grande nação, cujas forças ainda não se tinham postas à prova. É inconcebível que uma conexão deste tipo pudesse continuar por mais tempo entre dois colegas, um estático, o outro dinâmico, separados por um oceano e unidos somente pelos laços de uma relação jurídica”.

Assim havia uma burguesia jovem e fresca sentada sobre enorme potencial econômico apenas esperando para se lançar. Mas para realizar este potencial – em benefício e enriquecimento dos capitalistas americanos e não dos britânicos – eles exigiam limites mais eficientes e estáveis para seu próprio estado-nação. Por sua parte, os britânicos – ainda encabeçados por uma monarquia apesar de já ter tido sua própria revolução burguesa – queriam manter as tradições, a estabilidade e a rentabilidade de seu robusto e crescente império. Eles asseguraram isto exercendo um controle estrito sobre seus satélites coloniais quando acessaram os mercados, o crédito, a indústria, a construção de barcos, o comércio etc.

Contudo, não era este o único antagonismo em fermentação. Em adição à crescente tensão entre as colônias e seu dono, a luta entre as classes produtora e exploradora era bem viva desde os dias iniciais da história americana.

Muitos dos primeiros colonos eram exilados políticos ou religiosos, com fortes tradições democráticas e revolucionárias. Eles estabeleceram instituições como reuniões da Câmara Municipal da comunidade, milícias populares armadas e um relativo grau de tolerância religiosa. Mas, também existia, desde o início, uma classe dominante controlando despoticamente a maioria, e periodicamente irrompiam conflitos. Rebeliões de escravos e outros levantamentos dos oprimidos, como a Rebelião do Bacon, irrompiam periodicamente. Na luta entre as classes dentro das próprias colônias, os britânicos sempre estavam do lado da reação, defendendo os interesses dos proprietários e o status quo.

A Revolução frente à reação

Em suma, o Império Britânico era um poder historicamente regressivo, enquanto as emergentes colônias americanas eram uma força historicamente progressista, lutando por autodeterminação nacional, maior democracia política e um alcance mais amplo para suas atividades econômicas. Crescentemente, eles se viam como uma nação nova e separada, um sentimento que ultrapassava as linhas de classe e as fronteiras dos estados coloniais. Os esperançosos capitalistas americanos estavam lançando as bases para a eventual e sem precedentes explosão das forças produtivas que se seguiram. Do ponto de vista Marxista, este foi um desenvolvimento progressista histórico, uma vez que lançou as bases econômicas sobre as quais podemos agora construir o socialismo.

Sem dúvida, os britânicos continuariam a dominar o planeta por outros 100 anos ou mais. Mas as sementes de sua eventual queda em todo o mundo estavam contidas na separação de suas colônias americanas. Estas se converteram em nova potência rival, eclipsando, com o tempo, seus antigos amos.

Em meados do século XVIII, a América já não era mais um remanso periférico. Em 1776, um de cada 4 ingleses viviam nas colônias americanas, que tinham uma população de 2,5 milhões de habitantes. Era um importante componente econômico do vasto Império Britânico, particularmente quando se tratava de comércio e navegação. Os americanos desfrutaram por muito tempo de privilégios e proteções por fazer parte do Império. Mas, em certa etapa, eles cresceram e queriam andar sobre seus próprios pés. O colossal potencial para se converter em uma potência comercial e marítima – como os britânicos – foi cada vez mais cercado pelas restrições impostas pela metrópole.

As colônias eram forçadas a comprar e vender somente com mercadores britânicos, em vez de comerciar livremente com quem oferecesse melhores oportunidades. Eram forçadas a importar mercadorias britânicas caras, em vez de produzi-las em casa, onde abundavam recursos naturais e a capacidade de produzir bens de qualidade estava crescendo. Eram forçadas a contrair empréstimos dos bancos britânicos e muitas delas estavam profundamente endividadas sem nenhuma possibilidade de escapar. As muitas tarifas, taxas e obrigações levaram a um auge cada vez maior do contrabando, e muitas novas fortunas foram feitas contornando as leis. Mas, eventualmente, mesmo isto não foi suficiente. As taxas impostas a 3.000 milhas de distância por um Parlamento no qual os colonos não tinham nenhuma voz se tornaram intoleráveis.

Como já foi mencionado, durante a maior parte de sua existência, as colônias relativamente fracas e indefesas tinham invocado a proteção da Coroa britânica, tanto por terra quanto por mar, especialmente contra os franceses e os Nativos Americanos. Mas no final da guerra franco-indígena de 1763 (também conhecida como a Guerra dos “Sete Anos”), esta ameaça foi mais ou menos removida. Precisamente neste mesmo tempo, a economia das colônias americanas estava começando a se equilibrar. E também precisamente neste tempo, o Parlamento Britânico decidiu que os americanos podiam pagar mais pela proteção que lhes era oferecida, e para voltar a encher os cofres drenados por sua guerra com os franceses.

É interessante observar o bem calculado papel desempenhado pela França durante a Revolução Americana. Nada tinha a ver com “liberdade” e “democracia”, e tudo a ver com fortalecer a monarquia e enfraquecer sua nêmesis britânica. Viram na revolta colonial uma oportunidade para dar um golpe em seu rival do outro lado do canal. Também desejavam fortalecer sua própria posição nas Américas, e não se incomodavam nem um pouco em tornar os americanos subordinados a eles. No entanto, em uma das viradas dialéticas maravilhosas da história, os custos incorridos em apoiar os americanos aceleraram a bancarrota e eventual desaparecimento da monarquia francesa por sua própria revolução em apenas poucos anos mais tarde.

Interesses diversos convergem

Na década de 1760, amplas camadas da sociedade colonial estavam gradualmente se unindo contra os britânicos – mas por distintas razões de classe. Embora os americanos pagassem apenas 1/25 das taxas pagas pelos súditos da Coroa que viviam na Inglaterra, os ricos comerciantes e os proprietários de plantações endividados se eriçavam por cada violação de sua capacidade de lucrar sem restrições. Por que deviam assumir todos os riscos e enfrentar a ruína econômica apenas para enriquecer as elites que viviam com segurança e de forma cômoda em Londres? Naturalmente, muitos dos Conservadores ricos permaneceram leais à Coroa, particularmente na Nova Inglaterra e nos estados do Atlântico médio. Afinal de contas, eles estavam se dando muito bem como representantes do Império, bem recompensados com terras e poderes para governar as colônias em seu nome.

Mas a maioria dos que viviam nas 13 colônias estava claramente a favor de mudanças. Contudo, a questão era: que tipo de mudança e no interesse de quem? Os ricos, sentindo-se claustrofóbicos dentro da camisa de força do Império, queriam liberdade para realizar ainda maiores lucros em seus próprios termos. As massas trabalhadoras, descontentes com sua sorte na vida, encontraram um inimigo que era crescentemente visto como ocupação externa de seu país. Então, temporariamente, os interesses dos ricos e dos pobres coincidiram, e a raiva foi dirigida ao inimigo externo. Foi este o caso durante o movimento contra a Lei do Selo em 1765.

Mas como os interesses fundamentais destes dois grupos não eram em absoluto os mesmos, as divisões eram inevitáveis, e esta unidade temporária foi finalmente destroçada pela crescente polarização de classe na sociedade. Foi um exemplo clássico do reformismo contra a revolução, de mudanças cosméticas contra uma transformação social profunda em curso, de Jacobinos contra Girondinos, Bolcheviques contra Mencheviques.

Além disso, as formas como as diferentes camadas da sociedade expressavam suas frustrações eram de fato muito diferentes. Enquanto os ricos queriam meramente negociar melhores termos para eles vis a vis os britânicos, as massas de trabalhadores urbanos e produtores rurais tomavam as coisas cada vez mais em suas próprias mãos. Enquanto os ricos a princípio queriam incitar as massas para utilizá-las cinicamente como alavanca contra a Coroa, os protestos adquiriam vida própria, e frequentemente se tornavam violentas. Como Arthur M. Schlesinger Sênior colocou (citado em Braverman): “Tornou-se evidente que sua agitação por compensação comercial foi desatando as forças sociais mais destrutivas aos interesses comerciais do que os atos equivocados do Parlamento”.

Os boicotes levaram a distúrbios e à destruição da propriedade comercial, ao incêndio de agências governamentais de cobrança de impostos e à humilhação de Conservadores e empregados do governo por multidões. Como em todos os processos revolucionários, a consciência das massas foi rapidamente transformada. Do reformismo à revolução, as demandas se elevaram com mais clareza e os programas e representantes políticos elevados pelo movimento foram testados pelos acontecimentos, enquanto as massas continuavam a se orientar cada vez mais à esquerda. Como explica o historiador J. Franklin Jameson (citado em H.B.):

“Há que se assinalar um fato importante na história natural das revoluções, e este é que, enquanto elas avançam, tendem a cair nas mãos de homens de visão mais avançada ou extrema, cada vez menos coibidos pelo tradicional apego à velha ordem das coisas. Portanto, as consequências sociais de uma revolução não são necessariamente modeladas pelos desejos conscientes ou inconscientes dos que a iniciaram, e é mais provável que o sejam pelos desejos dos que tomam seu controle nas etapas posteriores de seu desenvolvimento”.

Camada após camada da sociedade foram arrastadas pelo movimento crescente, expressando frustrações reprimidas contra o domínio britânico e contra a sociedade em geral. Não só as massas urbanas – artesãos, mecânicos, operários assalariados e lojistas – como também os lavradores, os fazendeiros, os homens da fronteira do Oeste, que eram menos refreados pela estratificação de classe da costa Leste. Muitos proprietários de plantações no Sul, enfrentando a ruína econômica devido às suas dívidas, também lançaram seu peso na luta. Uma vez que tendiam a viver longe das despertadas massas urbanas, muitos proprietários de escravos eram surpreendentemente audazes em sua agitação contra os britânicos.

As massas começam a se organizar

Tabernas, cafés e salas de reunião municipais, particularmente na Nova Inglaterra, tornaram-se foco de agitação revolucionária. Embora somente 1.500 cidadãos de Boston tinham direito, por qualificações de propriedade, de participar e votar, os radicais tinham uma galeria instalada e milhares lotavam as reuniões para ouvir pessoas como Samuel Adams falar. Havia claros elementos de poder dual nestas reuniões e outras similares em todas as colônias, enquanto as massas se expressavam diretamente e tomavam decisões em desafio aberto aos governadores britânicos e às legislaturas instaladas. A impressão e circulação de jornais e panfletos radicais como o Senso Comum de Thomas Paine, também aumentou dramaticamente, enquanto a sede de ideias das massas crescia exponencialmente. Este é um claro exemplo da necessidade e do papel da imprensa revolucionária, para espalhar as ideias revolucionárias e unificar a luta nacionalmente.

Enfrentados a esta radicalização, que ameaçava “sair do controle”, cada vez mais grandes comerciantes que tinham coqueteado com a revolução, perdiam a cabeça e se passavam para o lado da reação, apesar do fato de que seriam eles os eventuais beneficiários da derrubada revolucionária dos antigos governantes.

Naturalmente, os principais participantes nem sempre estavam conscientes de todos os fatores subjacentes que os motivavam. Os interesses fundamentais eram expressos como uma batalha de ideias, apresentada em termos de “liberdade” e “democracia” frente à “tirania” etc. A independência não era necessariamente a intenção de muitos dos líderes ou das próprias massas, até o Verão de 1776, e mesmo depois. Mas a necessidade tende a encontrar um caminho para se expressar, e logo os eventos, como uma bola de neve, ganharam vida própria.

Acima de tudo, foi a decisiva entrada das massas no cenário da história que pôs o carimbo de revolução neste processo. Se estavam ou não inteiramente esclarecidas sobre o que estavam fazendo, as massas antes passivas e mesmo “apáticas” despertaram para a consciência política e social, tomaram seus destinos em suas próprias mãos e embarcaram em uma luta heroica contra as imposições britânicas e sua própria classe dominante nativa.

As aspirações das massas empobrecidas e dos “tipos medianos” – como era chamada a nascente pequena burguesia – se expressavam nas ideias crescentemente radicais e revolucionárias, nas palavras e ações de pessoas de origem britânica como Thomas Paine; do dono de plantação na Virgínia, Thomas Jefferson; do homem do renascimento Benjamin Franklin; e do inigualável agitador e organizador Samuel Adams, de Boston. Sua penetrante lógica, eloquência e clareza representa alguns dos melhores textos revolucionários já escritos. Eles faziam parte da ampla ofensiva ideológica mundial da classe capitalista então progressista, contra o feudalismo decadente e a Igreja. Apesar dos esforços da censura, havia mais possibilidades de expressar essas ideias na América, uma vez que os autores e as gráficas estavam a milhares de milhas de distância das autoridades estatais na Europa.

Com o tempo, as demandas e ações das massas se tornaram cada vez mais coerentes, e começaram a se aglutinar em torno de um programa e uma organização cada vez mais radicais. Como Harry Braverman explicou, foi Sam Adams quem organizou o Tea Party de Boston, coordenou o boicote em massa de produtos britânicos e dos comerciantes americanos que vendiam esses produtos, quem apelou pela convocação do Congresso Continental, e era quem “movia” os fios fundamentais por trás do cenário dessas reuniões. Sam Adams passou toda a sua vida como um revolucionário democrata consistente, preparando tal movimento. Ele também organizou os Filhos da Liberdade e o Comitê de Correspondência, uma rede de radicais que se espalhava a partir da Nova Inglaterra, ajudando a unificar e coordenar a rebelião nas colônias. Somente em Massachusetts, havia cerca de 300 Comitês de Correspondência, em um estado que tinha somente 450 mil habitantes naquela época.

Isto foi o mais perto de uma vanguarda ou partido revolucionário que podemos encontrar na época da revolução. Sam Adams entendia a necessidade de uma liderança audaz e perspicaz, de um programa revolucionário e da disciplina e organização. Ele também entendeu melhor que ninguém a necessidade de conectar as ideias revolucionárias com o movimento das massas, e era muito hábil nisto. Como Adams colocou: “Nosso negócio não é fazer acontecimentos, mas melhorá-los com sabedoria”.

Então, não é nenhuma surpresa que Sam Adams fosse o homem mais odiado na América Conservadora. De fato, as escaramuças em Lexington e Concord começaram porque os Redcoats [soldados britânicos – NDT] estavam a caminho de prender Adams para evitar que ele comparecesse ao Congresso Continental, o qual, eventualmente, emitiu a Declaração de Independência e organizou um exército em desafio ao domínio britânico.

Em última análise, foi o desenvolvimento das forças produtivas nas Colônias, particularmente na Nova Inglaterra e nos estados da costa do Atlântico, que tornou a revolução não somente possível como necessária. Além da base econômica em desenvolvimento, aumentaram as forças humanas que podiam se libertar do jugo colonial. Por exemplo, os boicotes em massa de produtos britânicos poderiam não ter sido possíveis sem que existisse a capacidade de produzir as necessidades da vida sem importá-las. Portanto, não foi por acidente que Boston fosse o centro nevrálgico inicial da revolução. Era uma das maiores cidades, o porto mais importante, e tinha uma composição de proto-trabalhadores e pequenos burgueses com fortes tradições revolucionárias democráticas.

As massas revolucionárias e o “povo armado”

Como já explicamos, do ponto de vista do materialismo histórico, a Revolução Americana foi muito mais do que a Guerra da Independência. Continha em seu interior ambos os elementos externo e interno: a luta nacional anticolonial contra o Império Britânico; e uma luta, dentro das colônias, entre as classes, por uma ordem mais democrática e igualitária. Foi um processo longo, demorado, com décadas de contradições acumuladas, de pequenas rebeliões, com uma guerra entre a Inglaterra e a França, disputas comerciais e tarifárias, protestos, ameaças e sabotagens, finalmente levando a uma guerra de oito anos, com as primeiras batalhas ocorrendo em 1775, antes da verdadeira Declaração de Independência em 1776. Houve muitas derrotas, mas também algumas vitórias importantes para os colonos, com a guerra finalmente terminando em 1783 com a ajuda dos franceses e a capitulação do general britânico Cornwallis, em Yorktown. Então, foram mais seis anos antes da Constituição, seguida da adoção da Declaração de Direitos. E então um novo período de consolidação através dos mandatos dos primeiros presidentes: Washington, Adams, Jefferson e Madison.

A história burguesa tende a focalizar o “grande homem” do mundo, e a Revolução Americana não é nenhuma exceção. Esses indivíduos certamente desempenharam papeis importantes e muitas vezes contraditórios, e não negamos o papel do indivíduo na história. Mas, como veremos, na Revolução Americana, como em todas as revoluções burguesas, não foram propriamente os burgueses que formavam as massas dos que lutaram e morreram pelos ideais de Vida e Liberdade, e pela Busca da Felicidade. Foram as massas de pessoas comuns que formaram a espinha dorsal, a força dirigente da revolução, embora no final não tenham recolhido todas as recompensas, como pensavam que fariam.

Embora tenham sido traídas todas as aspirações das massas por uma maior democracia política e econômica, pela primeira vez na história, uma colônia de uma potência europeia não somente se rebelou, como também ganhou sua liberdade da mais poderosa força militar e econômica do planeta. Todas as outras rebeliões deste tipo tinham sido abatidas pela força. A Revolução Americana, inspirada nas ideias do Iluminismo, por sua vez serviu de inspiração para as revoluções burguesas europeias. Estas foram guerras revolucionárias contra a dominação do feudalismo e suas derivações, sendo que o exemplo mais clássico foi a Grande Revolução Francesa, que começou em 1789. No entanto, o efeito dominó da Revolução Americana foi muito além, influenciando e inspirando as massas em sua luta contra o domínio dos espanhóis, franceses, holandeses e portugueses na América Latina e no Caribe.

Nestes dias nos EUA, a palavra “miliciano” evoca imagens da direita, com neofascistas armados, vestidos de roupas de camuflagem, patrulhando as fronteiras dos EUA em busca de imigrantes sem documentos. Mas, na Revolução Americana, os milicianos – também conhecidos como Minutemen, já que estavam prontos para entrar na luta no momento do aviso – eram um verdadeiro exemplo do “povo armado”, um exército voluntário das massas, organizado para lutar contra a opressão.

O exército britânico era a máquina de guerra mais profissional do planeta, uma força intimidante e mortal. E, no entanto, um bando de soldados irregulares, maltrapilhos, pobremente treinados fez muito mais do que apenas assediar os Redcoats com táticas de guerrilha, estilo nativo-americano; eles realmente os derrotaram em um punhado de ocasiões em verdadeiras batalhas. O que é mais importante, eles ganharam vitórias fundamentais nos momentos cruciais da guerra, que, apesar de não representarem uma ameaça estratégica para a ocupação britânica, impulsionaram fortemente o moral da causa rebelde.

Depois das primeiras escaramuças em Lexington e Concord, uns 20 mil homens armados de lugares tão longínquos quanto Vermont e New Hampshire inundaram a área de Boston e sitiaram a cidade. Estes eram trabalhadores comuns, agricultores, os pobres e pequenos artesãos. Esta foi um verdadeiro levante armado de massas, em desafio aberto ao estado, uma antecipação do início de formação dos exércitos da república francesa.

A formação do Exército Continental sob o comando de George Washington foi uma tentativa de trazer alguma ordem sistemática – e um controle hierárquico – às fileiras das forças coloniais. Mas sempre foi uma força de combate menos profissional em comparação à enviada pelos britânicos. Contudo, os colonos em revolta – as camadas mais pobres e marginalizadas daquela sociedade – estavam inspirados pelos ideais de liberdade genuína e pela promessa de uma vida melhor para todos. Eles contribuíram mais do que como soldados em campanha, aprovisionando e suprindo o exército, manufaturando mosquetes, canhões e munição, contrabandeando produtos através das linhas britânicas e comprando títulos do Congresso Continental com suas parcas poupanças para financiar o esforço de resistência.

Guerra revolucionária e guerra civil

No entanto, como todas as guerras revolucionárias, este não foi um assunto simples e linear, com os “colonos bons”, de um lado, e os “britânicos maus”, do outro. Foi uma luta de forças vivas, com muitos altos e baixos, e o resultado não foi uma conclusão inevitável. Ver o Canadá, por exemplo: eles ainda têm a rainha britânica em sua moeda! De qualquer forma, muitos eram indiferentes à luta e simplesmente queriam a paz, a tranquilidade e a estabilidade, não importando quem estivesse no comando. Estimou-se que aproximadamente um terço dos colonos eram pela independência; um terço apoiava a Coroa; e um terço vacilava entre os dois polos.

Diversos e divergentes interesses de classe estavam em jogo, então não é de admirar que a guerra não foi somente contra os britânicos; foi também uma guerra civil entre os próprios americanos. Estima-se que em torno de 400 mil americanos serviram nas forças armadas durante o curso do conflito. Mas uns 50 mil destes serviram do lado dos britânicos, suplementando os soldados regulares britânicos. Este é um número significativo, dado que as forças de Washington nunca excederam os 90 mil homens em um momento dado, e estavam abaixo frequentemente dos 12 a 15 mil homens.

As forças de Washington também foram atormentadas por doenças, deserções, liderança incompetente, corrupção e pelas brigas no Congresso Continental que os privavam de fundos e abastecimento. Os soldados também se amotinaram em muitas ocasiões, dados o trato duro e as condições que suportavam, enquanto Washington e Cia invernavam em conforto relativamente luxuoso como os reis guerreiros de antigamente. No entanto, os colonos pró-independência seguiram em frente, recebendo eventualmente o apoio de milhares de soldados franceses e da marinha francesa.

É verdade que as forças dos EUA foram superadas em grande medida contra os regulares britânicos, pelos americanos treinados que lutavam pelos britânicos, e pelos mercenários de Hesse trazidos pela Coroa Britânica. Os colonos perderam a maioria de suas batalhas e geralmente eram obrigados a “lutar como índios” – uma guerra de guerrilha. George Washington era um bastardo vaidoso e pomposo e, certamente, não era nenhum Napoleão. Mas entendeu a necessidade de apelar à opinião pública e ao papel do moral na guerra. Por seu lado, os generais britânicos eram excepcionalmente incompetentes, frequentemente mais preocupados com os preparativos da próxima festa de debutantes sociais na Philadelphia ou em Nova Iorque do que na próxima batalha com os rebeldes.

Vitórias importantes do Exército Continental, como na Batalha de Trenton, tiveram tremendo valor moral, e mostraram que o exército regular britânico e as forças mercenárias podiam ser derrotados. Muitos acreditam que os milhares de soldados Hessianos envolvidos nesta batalha no dia depois do Natal ou estavam bêbados ou de ressaca, mas há evidências do contrário. De qualquer forma, apenas uma semana antes da aposta de Washington de cruzar o Delaware e atacar a guarnição em Trenton, o Exército Continental parecia à beira do colapso e a causa rebelde extinta. Mas a vitória ré-energizou a resistência colonial, e o resto, como se diz, é história.

Também se deve notar que especialmente perto do final da guerra, houve muitos combates nas colônias do Sul, alguns deles muito brutais, embora as batalhas mais famosas tenham ocorrido em Massachusetts, Nova Jérsei, Pensilvânia, Nova Iorque e no Canadá.

Em última análise, o lado da justiça e da história estava do lado dos Americanos. Os colonos rebeldes estavam lutando por um ideal revolucionário e melhorias materiais em suas vidas, enquanto os conscritos britânicos e mercenários estavam lutando para preservar a riqueza e os privilégios dos americanos conservadores e da Coroa. Com a Inglaterra engajada em guerras na Europa e preocupada em proteger o restante de seu império, ela finalmente se desgastou, particularmente depois que os franceses deram seu apoio à causa rebelde e forçaram a capitulação de uma pequena parte do exército britânico em Yorktown.

Digam o que quiserem sobre o pretensioso e aristocrático Washington e sobre o restante dos supostos Pais Fundadores, mas não representavam minimamente a coragem calculada dos rebeldes na escala de aspirar uma separação total, enfrentando a ameaça de execução por traição se o esforço fracassasse.

Mas, muito mais importante foi o papel desempenhado pelas massas comuns, ou, como Sam Adams as descreve: “as duas ordens veneráveis de homens designados como lavradores e agricultores [fazendeiros], a força de cada comunidade”. Afinal, um general sem um exército é improvável que vença muitas batalhas.

A revolução prevalece

As transformações sociais que resultaram da guerra revolucionária e suas consequências foram significativas. Neste sentido, foi uma verdadeira revolução social e não meramente uma revolução política. De fato, com relação ao tamanho da economia e da população, a Revolução Americana resultou em uma das maiores expropriações de propriedade privada na história mundial.

A herança e a primogenitura terminaram dentro de poucos anos. No estado de Nova Iorque, todas as terras e rendas da Coroa e mais de 2,5 milhões de acres de propriedades senhoriais foram expropriados, incluindo a casa Van Rennsalaer, que tinha dois terços do tamanho de todo o estado de Rhode Island, e a fazenda Phillipse, que se estendia por mais de 300 milhas quadradas. Na Carolina do Norte, a fazenda de Lord Granville, compreendendo 1/3 de toda a colônia, foi também expropriada. A situação era similar em estados como Pensilvânia e Virgínia, onde a fazenda Fairfax de 6 milhões de acres foi ocupada, embora Lord Fairfax não fosse um Conservador leal.

Estas terras foram então divididas em milhares de pequenas parcelas, uma reforma agrária de longo alcance, um dos pilares da revolução nacional-democrática. Isto resultou no surgimento de uma grande classe de fazendeiros pequenos e independentes. Milhões de dólares de outras formas de propriedade também foram expropriados – sem compensação. Muitos daqueles que tiveram suas propriedades confiscadas e que não fugiram do país, foram lançados de volta para o monte de pessoas “normais” que tinham de trabalhar para viver.

Além disso, os requisitos de propriedade para o sufrágio foram afrouxados, com a propriedade da terra não mais servindo para habilitar o voto. As igrejas oficiais que existiam em algumas das colônias também foram separadas dos fundos do estado uma vez que a separação da igreja do estado finalmente se tornou lei em todas as colônias. E embora a escravidão tivesse um novo sopro de vida depois da invenção do descaroçador de algodão no início do século seguinte, ela foi abolida imediatamente em seis das colônias, e a milhares de escravos foi concedida a liberdade também no Sul. Além disso, o comércio de escravos foi legalmente proibido – embora, na prática, tenha continuado durante décadas.

Uma nova classe dominante de novos-ricos cresceu quase da noite para o dia, enquanto advogados, artesãos especializados, comerciantes e banqueiros se levantavam para preencher o vazio deixado pelos Conservadores em fuga e pelos empregados coloniais britânicos. Estima-se que pelo menos 100 mil, e talvez 200 mil conservadores fugiram do país, principalmente para o Canadá, alguns para a Grã-Bretanha. Com relação à população do país, foi talvez a mais massiva emigração política e econômica da história moderna; 10 vezes mais per capita dos que fugiram da França durante o “Reino do Terror”, em 1790. Esses emigrados representavam a nata da terra colonial, representando nada menos que a metade dos proprietários mais educados e ricos da Nova Inglaterra e de Nova Iorque queimando os pés para longe da revolução.

As relações de propriedade capitalistas encontram solo fértil

Mas tudo não era como leite e mel para a nova classe dirigente. Crise econômica e um período de adaptação se seguiram à guerra, enquanto a especulação dos tempos de guerra e o contrabando chegavam ao fim. Além disso, a situação de crédito e comércio preferencial por fazer parte do Império britânico significava acesso aos bancos e portos externos. A Rebelião de Shay, um levante em massa dos agricultores descontentes de Massachusetts e ex-soldados da Guerra Revolucionária, continha dentro dela os ecos dos “Niveladores” da Revolução Inglesa, exigindo que aqueles que tinham lutado por liberdade e igualdade também deviam ter igualdade econômica. Isto aterrorizou os novos líderes dos estados naqueles tempos profundamente desunidos, e levou à adoção de uma nova Constituição.

A nova Constituição adotada em 1789 e vigente até nossos dias, contou com uma estrutura federal muito mais centralizada do que os antigos Artigos da Confederação. Outras revoltas, como a Rebelião do Uísque na Pensilvânia Ocidental, foram posteriormente abatidas como demonstração de força do novo estado nacional.

A jovem burguesia americana agora tinha o poder firmemente em suas mãos e começou a criar estruturas, leis e instituições para se enriquecer e defender seus interesses. Ela utilizou o poder estatal para extirpar os restos do velho sistema e construir alicerces sólidos para sua eventual ascensão à proeminência mundial. Antes predominavam os mercadores capitalistas que compravam barato no mercado mundial e vendiam caro em casa. Agora, se sentavam as bases para o desenvolvimento dos meios de produção e das manufaturas em grande escala nas próprias antigas colônias, e para o surgimento mais tarde do capitalismo industrial e financeiro.

O primeiro banco nacional e um sistema de crédito e dívida nacional foram estabelecidos. Alexander Hamilton foi o primeiro Secretário do Tesouro. Isto foi como colocar a raposa a cargo do galinheiro. Hamilton, embora amoral, foi um animal político peso-pesado das avançadas relações de propriedade capitalistas americanas. Ele lançou implacavelmente as bases do sistema sob o qual ainda vivemos hoje. Grandes fortunas foram feitas quando ele convenceu o novo Congresso dos EUA a pagar na íntegra os títulos de guerra emitidos pelo velho Congresso Continental durante a guerra – mas somente depois que seus amigos especuladores tinham comprado os antigos e quase inúteis pedaços de papel dos proprietários originais por centavos de dólar.

Em suma, os elementos básicos da revolução nacional democrática foram realizados, estabelecendo as condições para o florescimento do capitalismo no continente americano: um território unificado, língua, moeda, sistema legal, forças armadas para se defender de invasores externos e para abater rebeliões internas etc. Com todo um continente a ocupar e explorar, havia muito espaço para ampliar o país e basear sobre ele o sistema capitalista.

A traição das aspirações das massas

O resultado potencial da revolução foi necessariamente limitado e condicionado pela etapa de desenvolvimento das forças produtivas e das classes na sociedade daquele tempo. Ela não poderia ter sido nada mais do que uma revolução burguesa e, tanto quanto as revoluções burguesas podem ir, ela estava bem à frente do seu tempo.

No entanto, em muitos outros aspectos, a revolução só foi realizada parcialmente. Mesmo o seu lado de democracia política permanece incompleto até hoje. A instituição do Colégio Eleitoral significa que o mais alto cargo do governo nacional, a presidência, não é eleito diretamente pelo povo. Milhares de outros funcionários são nomeados, e não são eleitos ou responsáveis diante do eleitorado. O Senado é uma espécie de “Câmara dos Lordes” com mais poder político per capita dos estados menos povoados, mais rurais e politicamente retrógrados. Ainda hoje, as mulheres não têm os mesmos direitos que os homens. E a persistência da escravidão necessitou de uma segunda revolução – a Guerra Civil Americana – para abolir a escravidão e estabelecer um sistema de trabalho livre por todo o país, permitindo a dominação irrestrita do capitalismo através de todo o continente.

Dadas as condições objetivas do tempo, muitos dos ideais expressos pelos Pais Fundadores e pelos panfletários radicais que estimularam as massas a lutar e morrer pela revolução acabaram por ser irrealizáveis e utópicos. No entanto, um órgão de maravilhosa literatura revolucionária foi produzido, o qual colocava em palavras eloquentes as aspirações das massas, palavras que continuam a receber poderoso eco nestes dias. Como podemos esquecer as linhas de agitação da Declaração da Independência, com a premissa de que “todos os homens nascem iguais” (exceto, naturalmente, os escravos, os nativos americanos e as mulheres)? Ou sua afirmação dos “direitos inalienáveis do homem”, e os direitos à Vida, Liberdade e de Busca da Felicidade?

O projeto inicial se referia à Vida, Liberdade e ao direito à propriedade. Mas Benjamin Franklin e outros se opuseram incluindo “defesa da propriedade” como uma das virtudes do governo na Declaração. Franklin era um pensador e economista político à frente de seu tempo. Ele acreditava que a propriedade era uma “criatura da sociedade” e que deveria ser tributada como uma forma de financiamento da sociedade civil. Assim, o mais poético “Busca da Felicidade” fez o corte final.

E, naturalmente, há a audaz afirmação da Declaração da Independência:

“Sempre que uma forma de governo se torne destrutiva destes princípios [Vida, Liberdade e Busca da Felicidade], é Direito do Povo alterá-la ou aboli-la, e instituir um novo Governo, que se fundamente em tais princípios e organize seus poderes na forma que, a seu juízo, ofereça as maiores probabilidades de alcançar sua segurança e felicidade”.

Thomas Jefferson também acreditava que “A árvore da liberdade deve ser refrescada de vez em quando com o sangue de patriotas e tiranos. É o seu adubo natural”. Ele também era favorável à regular revisão e reformulação da Constituição, a cada 20 anos ou mais, se necessário. Estas eram ideias ousadas, especialmente em um mundo dominado por Reis, a Igreja e por séculos de obrigações feudais e hierarquias.

Mas a realidade econômica e as necessidades do sistema se afirmaram e a Constituição dos EUA se tornou a garantia suprema dos direitos de propriedade privada. É um notável modelo de democracia burguesa – de democracia para os ricos. É habilmente equilibrada e projetada para dar a impressão de democracia genuína, sem nunca permitir à ralé ter uma palavra a dizer sobre qualquer coisa. A maioria dos Pais Fundadores era admiradora da velha República Romana, e se viam como versões modernas dos nobres patrícios, governando sabiamente sobre uma massa de plebeus ordinários. Todos sabemos como isto terminou: com a consolidação do poder em cada vez menos mãos e com a ascensão do Império Romano.

A necessária Terceira Revolução Americana

Como todas as revoluções burguesas, o que começou como um desenvolvimento altamente progressista terminou por se transformar em seu oposto. Os EUA são agora o poder mais reacionário do planeta, para não dizer que é uma das sociedades mais antidemocráticas e economicamente desiguais do planeta. Em uma das muitas ironias da história, os Americanos estão agora engajados na ocupação de países estrangeiros e na luta contra a insurgência guerrilheira e inimigos que “não fazem uma luta justa”. Inclusive contrataram a moderna versão dos mercenários Hessianos – corporações como Blackwater – para fazer o trabalho sujo para eles. Mas isso também será transformado dialeticamente em seu contrário no próximo período. Disto, podemos estar absolutamente seguros.

As reais raízes revolucionárias desses tremendos eventos devem nos inspirar, assim como inspiraram centenas de milhares de homens e mulheres americanos comuns a lutar e morrer para mudar a sociedade. Como Lênin colocou em sua Carta aos Trabalhadores Americanos:

“A história da moderna e civilizada América se abriu com uma dessas grandes guerras, realmente libertadoras, realmente revolucionárias, das quais tem havido tão poucas em comparação ao vasto número de guerras de conquista que, como a atual guerra imperialista, foram causadas por disputas entre reis, latifundiários ou capitalistas sobre a divisão das terras usurpadas ou ganhas ilicitamente. Esta foi a guerra do povo americano travada contra os ladrões britânicos que oprimiam a América e a mantinham na escravidão, da mesma forma como esses sanguessugas ‘civilizados’ ainda oprimem e mantêm na escravidão colonial centenas de milhões de pessoas na Índia, Egito e em todas as partes do mundo”.

E é precisamente por isto que os historiadores da classe dominante despojaram a Revolução Americana de seu verdadeiro conteúdo de classe. Eles não querem que recordemos que, como em todas as revoluções sociais, foram as massas que empurraram o processo adiante em cada etapa. Nem querem que recordemos as significativas violações sobre a propriedade privada, o poder e os privilégios da classe então governante que foi separada pela revolução. A Revolução Americana foi a primeira “limpeza das plataformas para o capitalismo”, um processo que foi completado e consolidado pela Guerra Civil.

Agora, o terreno está sendo preparado para a Terceira Revolução Americana – a revolução socialista, que libertará toda a humanidade e transformará a história humana para sempre.

Minneapolis, 31 de outubro de 2011

Fontes utilizadas:    

  • Herbert Aptheker, The American Revolution (1763-1783)
  • Gore Vidal, Inventing a Nation
  • Harry Braverman, Sam Adams and the American Revolution
  • Grant S. Wood, The Radicalism of the American Revolution
  • Alan Woods, Marxism and the USA
  • Leo Huberman, Man’s Worldly Goods
  • Harry Braverman, America Also Had A Revolution, a Review of J. Franklin Jameson’s The American Revolution Considered As A Social Movement
  • V.I. Lenin, Letter to American Workers
  • Wikipedia

Artigo publicado originalmente em 5 de novembro de 2011, no site Socialist Appeal, seção nos EUA da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Class Struggle and the American Revolution.

Tradução de Fabiano Leite.