Por falta de oxigênio, pacientes foram transferidos para UTIs em Belém, Pará Foto: Marcelo Seabra

Manaus hoje é o resto do Brasil amanhã

Na última semana os principais jornais do país começaram a divulgar a tragédia já anunciada em Manaus. Hospitais da capital do Amazonas começaram a relatar óbitos por falta de oxigênio. O integrante da equipe do Ministério Público Federal (MPF) que atua no combate à pandemia na região, Igor Spindola, afirmou que faltava oxigênio em pelo menos 200 leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI)1. Segundo o pesquisador Jesem Orellana, da Fiocruz-Amazônia, uma ala inteira de pacientes morreu por falta de ar e a falta de oxigênio logo começou a afetar pacientes internados por outros problemas e recém nascidos prematuros. Manaus já registrou 1.654 mortes por Covid-19 nos primeiros 14 dias de janeiro e somente na noite do dia 13, cinco hospitais notificaram o total de 19 óbitos devido à falta de oxigênio. Além disso, essa situação também afetará aqueles que conseguirem sobrevier, já que “devem ficar com sequelas cerebrais permanentes.”2

Enquanto artistas e até o governo da Venezuela se mobilizavam para tentar prestar socorro, o presidente da República, Jair Bolsonaro, respondeu ao problema da maneira mais previsível possível, se eximindo de sua responsabilidade e afirmando que a sua parte já foi feita:

“A gente está sempre fazendo o que tem que fazer. Problema em Manaus, terrível o problema lá. Agora nós fizemos a nossa parte, recursos, meios” (destaque do autor)

Entretanto, os fatos mostram uma situação um tanto quanto diferente. Em primeiro lugar, porque o governo Bolsonaro já sabia que a situação estava chegando em um nível crítico:

“A Força Nacional do SUS, convocada pelo ministro da Saúde para atuar em Manaus, detectou dia após dia a evolução da crise de escassez de oxigênio na cidade e registrou em relatórios oficiais o que constatava nos hospitais. Documentos dos dias 8, 9, 11, 12 e 13 registram com detalhes o tamanho do problema, inclusive com previsão exata de quando ocorreria o colapso.”3

Mesmo assim, no dia 11, quando o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, visitou Manaus apenas explicou que era necessária a utilização da hidroxicloroquina, que não tem qualquer eficácia cientificamente comprovada contra a Covid-19.

O vice-presidente, Hamilton Mourão, também destilou sua dose de hipocrisia4 afirmando que “não tem como prever o que está ocorrendo em Manaus” por conta da nova cepa do coronavírus.

A mutação do coronavírus é uma realidade e já há relatos de que essa seja a explicação para a contaminação mais rápida. Porém, a questão é que a situação de Manaus era completamente esperada, mesmo sem uma nova cepa do vírus. O Amazonas foi um dos estados mais atingidos pela pandemia em seu início. Vimos as imagens chocantes de valas sendo abertas por retroescavadeiras, as notícias de que frigoríficos foram contratados para preservar corpos que não poderiam ser enterrados antes de apodrecerem, UTIs lotadas entre outras cenas que não esqueceremos tão cedo.

Mesmo com o agravamento da situação no estado, e principalmente em Manaus, a burguesia optou por manter a “normalidade” impedindo que a classe trabalhadora pudesse ter o direito ao isolamento social. Mas essa não foi a única atitude criminosa da classe dominante. Entre julho e outubro de 2020, o estado do Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI criados para Covid-195. Pelo menos 117 das 137 vagas públicas criadas a partir de fevereiro foram fechadas. Devemos considerar ainda o sucateamento que a saúde pública já sofria antes mesmo da pandemia, agravado pela aprovação da Emenda Constitucional 95, conhecida como a emenda do Teto de Gastos (que vai tirar R$ 600 bilhões do SUS em 20 anos).

A classe dominante brasileira busca esconder a qualquer custo dimensão da crise sanitária que estamos passando, pois compreende que mais cedo ou mais tarde a conta dos que hoje sofrem chegará. Como informou o jornal Estado de S. Paulo, o governo do Amazonas sabia “pelo menos desde o dia 23 de novembro, (…) que a quantidade de oxigênio hospitalar disponível seria insuficiente para atender a alta demanda provocada pela pandemia de covid-1912 e não agiu para impedir a tragédia.

O sucateamento da saúde, cortes de UTIs, a impossibilidade de cumprir o distanciamento social e demais problemas que levaram ao agravamento da situação em Manaus são os mesmos do restante do país. Pacientes já estão morrendo em cidades menores do Amazonas, como em Coari, que já notificou sete mortes por asfixia devido ao atraso do envio de 40 cilindros de oxigênio. A tragédia começa a se espalhar para além das fronteiras do estado também, esse é o caso do município de Faro, Pará, onde seis pessoas morreram por asfixia entre o dia 18 e 19 de janeiro. É uma questão de tempo para que a tragédia se repita em outras cidades e estados. O que estamos vendo no Amazonas e no Pará hoje é o que veremos no resto do Brasil amanhã.

UTIs lotadas no Rio de Janeiro

No dia 13 de janeiro, novas medidas de flexibilização foram publicadas no Diário Oficial pela prefeitura do Rio de Janeiro. O recém eleito Eduardo Paes, defendido pela esquerda reformista como o mal menor contra Crivella, planejava inclusive abrir os estádios do Maracanã, São Januário e Nilton Santos para voltar a receber partidas de futebol com público6, mas recuou diante da impopularidade da decisão. Com as medidas, quase todos os setores estão autorizados a funcionar no caso da classificação de risco muito alto. As exceções são apenas os estádios de futebol e as boates.

A medida vai na contramão da lógica de enfrentamento da pandemia. A situação vem se agravando e muito na capital carioca desde o fim de 2020. Em dezembro do ano passado, a média móvel no estado do RJ (registrada em 12/12) foi de 2.594 casos e 88 mortes por dia, um aumento de 20% na média móvel de casos e de 5% na média móvel de mortes em relação a novembro. Em menos de um mês, no dia 9 de janeiro, o estado registrou 160 mortes e 3.331 novos casos e esses números altos permanecem.

Nas unidades municipais, há uma ocupação de 99% dos leitos e pressão dos municípios para a transferência de pacientes para a capital. Porém, a situação é quase a mesma, já que 91% dos leitos do SUS da cidade do Rio de Janeiro estão ocupados. De acordo com o jornal O Globo7, “250 pacientes com casos mais graves aguardam por transferência”.

A burguesia fez sua escolha. Para “salvar a economia”, sacrifica a vida de milhares de trabalhadores que não podem acessar a iniciativa privada e não podem alugar seus jatinhos para se deslocarem para estados em que o sistema de saúde ainda não colapsou.

Explosão de contaminações em São Paulo

Enquanto o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ultrapassa a marca de 150 entrevistas coletivas para se utilizar da pandemia como palanque eleitoral para as eleições presidenciais de 2022, o estado de São Paulo registra 49.945 óbitos8. Somente na capital, são 16.580. Seguindo o ritmo do restante do país, os casos explodiram nas primeiras semanas de 2021:

“Em comparação com a última semana de 2020, ainda de acordo com dados do governo do estado, os casos de covid-19 aumentaram 77%; as mortes, 59%; e as internações, 28%. A ocupação de leitos de UTI atualmente é de 69,1% no estado e de 70,1% na capital.”9

Em São Paulo a situação tende a se agravar ainda mais. A taxa de contágio (Rt) do coronavírus ultrapassou o teto em todo o estado. Os dados são da Info Tracker, das universidades estaduais Unesp e USP, que monitora a pandemia. “Os pesquisadores consideram como teto o índice 1: cada doente pode contaminar outro. Se for maior, significa que cada pessoa doente pode contaminar mais de uma.10 O problema, segundo os pesquisadores, é quando a taxa está acima do 1. Eles explicam que em “uma cidade com 100 pessoas infectadas e taxa em 0,78, por exemplo, haverá 78 novas contaminação diretas. Para o cálculo, basta multiplicar a taxa por 100, segundo a Info Tracker”. Na capital, em que a taxa é 1,45, cerca de 100 infectados podem contaminar 145 pessoas, que devem infectar 210 e assim por diante.

Na cidade de São Sebastião, no litoral norte do estado, profissionais da saúde do Hospital de Clínicas da cidade relataram a morte de pelo menos duas pessoas por falta de oxigênio. A prefeitura nega a causa da morte, mas não divulga os nomes das vítimas em “respeitos às famílias”. Os trabalhadores do hospital ainda afirmam que a rede pública não consegue suportar a demanda e denunciam presença de ratos e larvas no ambiente. De acordo com a Folha, “há relatos de que não há médicos suficientes para fechar a escala do hospital e de que estão sendo usados ventiladores pulmonares só com torpedo (tubo de oxigênio) porque a rede de oxigênio não daria conta da demanda.11 São Sebastião é uma das cidades que ignorou completamente a chamada fase vermelha do Plano São Paulo, já limitado, e permaneceu abrindo comércio, bares, manteve suas famosas praias abertas etc.

Todos os dados mostram o que Doria pretende esconder a todo momento enquanto antecipa sua campanha eleitoral para presidente sob a base de milhares de mortos: São Paulo não está enfrentando a pandemia. A demagogia é a principal ferramenta desse político que surfou na onda de Bolsonaro para se projetar como um representante mais simpático da classe dominante.

Lucro acima de tudo

A verdade é que todos os representantes da burguesia, seja Bolsonaro, Doria ou qualquer outro, estão atuando para permitir que a burguesia continue explorando o proletariado mesmo que para isso milhares ou milhões precisem morrer. A diferença é que Doria teme mais uma possível reação daqueles que se enfurecem diante da incapacidade do sistema de combater a Covid-19.

No início de janeiro um debate interessante no programa Em Pauta, da Globo News, viralizou após dois jornalistas divergirem seriamente. Gerson Camarotti, após condenar aqueles que foram às praias durante o recesso de fim de ano, foi respondido por Demétrio Magnoli com uma pergunta: “Você acha execrável que um trabalhador, que passou o ano inteiro não tendo direito ao isolamento social porque precisava trabalhar, enfrentando transporte público lotado, vá à praia no fim de ano?”. Essa questão é fundamental, não são os trabalhadores que estão impedindo que exista uma quarentena ou isolamento social. É a burguesia que força essa situação e é a mesma burguesia que critica hipocritamente quem vai a algum bar ou à praia.

Enquanto a situação se agrava, a vacina é utilizada não como instrumento de combate ao vírus, mas como armas no embate entre Bolsonaro, que critica a “vacina chinesa”, indica hidroxicloroquina etc., e Doria, que busca sangrar seu rival político. No Rio de Janeiro, Eduardo Paes e o governador em exercício, Cláudio Castro, vacinaram as duas primeiras mulheres do estado sob a benção do Cristo Redentor, na esperança de que a vacina acalme os ânimos. No entanto, mesmo com as primeiras doses sendo aplicadas no país, a falta dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) para a Fiocruz e Butantan e de matéria-prima da Sinovac para o Butantan já impactam no calendário de produção e distribuição de novas doses. As vacinas disponíveis agora não são suficientes para atingir a chamada imunidade de rebanho e barrar o coronavírus.

A classe dominante, em nome da salvação das contas públicas, defende os planos de austeridade de todos os governos, sejam do PT, PSDB, MDB ou do presidente sem partido. Esse dinheiro “economizado” tem um destino: o bolso dos banqueiros, da burguesia imperialista que suga mais da metade do orçamento da União (por meio da Dívida Pública, interna e externa) que deveria estar sendo investido em transporte, educação e saúde. O Brasil investe a maior parte de seus recursos em saúde no sistema de saúde privado13.

Mas os atrasos com as vacinas, as jogadas políticas, a austeridade e demais ataques não passam despercebidos pela classe trabalhadora e pela juventude. A popularidade de Bolsonaro apresenta novos sinais de queda, os panelaços tomaram conta do país novamente no último final de semana e atos contra o governo Bolsonaro já estão marcados para o fim de janeiro. A insatisfação cresce na sociedade e se a pandemia se arrastar muito, podemos assistir às massas novamente tomarem às ruas do país. Uma parte da burguesia, junto da esquerda reformista, compreendendo os riscos desta situação, já volta a falar em impeachment, sabendo que uma saída por vias institucionais é mais “saudável” que por uma ação das ruas.

Aqueles que veem essa situação e se indignam com a podridão da classe dominante e sua incapacidade de combater o coronavírus convidamos a conhecer a Esquerda Marxista e a Corrente Marxista Internacional. A arma mais poderosa de nossa classe é a organização. É preciso lutar para pôr abaixo o governo Bolsonaro já, varrer João Doria e seus aliados e construir um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais para combater o vírus e o capital.

Fontes:

1 https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/01/4900551-em-hospital-de-manaus-ala-inteira-de-pacientes-morre-por-falta-de-oxigenio.html

2 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/01/oxigenio-acabou-e-hospitais-de-manaus-viraram-camara-de-asfixia-diz-pesquisador-da-fiocruz.shtml

3 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/forca-nacional-do-sus-detectou-oxigenio-na-reserva-leitos-fechados-por-falta-do-insumo-e-previu-colapso-em-manaus.shtml

4 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/01/nos-fizemos-a-nossa-parte-diz-bolsonaro-em-meio-a-crise-de-falta-de-oxigenio-em-manaus.shtml

5 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/amazonas-desativou-entre-julho-e-outubro-85-dos-leitos-de-uti-criados-para-covid-19.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

6 https://oglobo.globo.com/rio/paes-anuncia-que-liberacao-dos-estadios-sera-revogada-por-ser-medida-quase-impossivel-de-ser-fiscalizada-1-24835953

7 https://oglobo.globo.com/rio/covid-19-rj-tem-fila-de-mais-de-250-pacientes-por-leitos-de-uti-exclusivos-para-doenca-rede-publica-da-capital-tem-99-de-lotacao-24789614

8 https://www.seade.gov.br/coronavirus/. Acesso em 18 de jan. 2021.

9 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/18/governo-de-sp-diz-que-ultima-semana-foi-a-pior-desde-o-inicio-da-pandemia.htm

10 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/18/covid-19-coronavirus-estado-de-sao-paulo-taxa-de-transmissao.htm

11 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/falta-de-oxigenio-matou-pacientes-tambem-no-litoral-norte-de-sp-dizem-funcionarios-de-hospital.shtml

12 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,cidade-do-interior-do-am-diz-que-sete-pacientes-morreram-por-falta-de-oxigenio,70003586877

13 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142018000100047