Mano Brown está certo?

Nesta última terça-feira (23/10), no palanque do chamado Comício da Virada, na Lapa (Rio de Janeiro), num palanque repleto de artistas, entre eles atores conhecidos da televisão brasileira, cantores consagrados, Mano Brown – referência central do rap nacional – fez uma fala que repercutiu por todo o Brasil. Em meio ao comício de Haddad, destoando da bajulação costumeira e profundamente despolitizada, Mano Brown falou de política de verdade. Embora ele mesmo tenha afirmado que não gosta de política, que “Política não rima, não tem swing, não tem balanço, não tem nada que me interesse”, foi o único que se aproximou do verdadeiro problema. Apesar de não gostar de política, a realidade o chamou e ele atendeu – mais uma vez.

A pergunta-título deste artigo é: “Mano Brown está certo?” De minha parte, acho que no importante, sim, mas em outra parte, não. Ele é um legítimo representante da periferia de São Paulo, mesmo que tenha dito que ali representava apenas a si mesmo. Ainda que carregue em sua obra as contradições próprias do povo trabalhador periférico, contradições que marcam todo o conjunto povo explorado, ele é um daqueles que esteve à frente, enxergou mais longe que a maioria e, aliando tal percepção ao seu talento, se dispôs a intervir sobre a realidade. É profundamente comprometido com seu povo, antes de qualquer coisa. Como artista, sempre foi uma referência artística e política. Cantou a denúncia de sua realidade e a luta por transformações radicais.

Por tudo isso, por seu lugar e pelo que é, Mano Brown percebe que os trabalhadores que são hoje eleitores de Bolsonaro não são os fascistas como pinta grande parte da “esquerda”. Sim, há os grupelhos fascistas e os malucos atiçados, mas falo aqui das massas de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.

Aqui tratamos, em especial, do desserviço dos reformistas que não conseguem explicar porque o povo, de quem acreditam ter cuidado tão bem nos governos petistas, lhes deram as costas agora. Brown entende perfeitamente que a periferia de SP – que praticamente abandonou o PT desde o estelionato eleitoral de Dilma – não se tornou fascista:

“Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, me amavam, que serviam o café de manhã, que lavavam meu carro, que atendiam meu filho no hospital, se transformaram em monstros, eu não posso acreditar nisso (…) Essas pessoas não são tão más assim”.

Aqueles que afirmam pelos cantos ou nas bolhas das redes sociais que “quem vota no Bolsonaro é fascista”, ou que eleitor dele “defende tortura”, entre outras coisas, não estão enxergando a realidade da massa trabalhadora. Uma conversa nos terminais de ônibus, estações do metrô ou CPTM na periferia, nas portas de fábrica, nas feiras, vão mostrar que no tom e no conteúdo das falas dos trabalhadores que votam em Bolsonaro não está a defesa de tortura ou de assassinatos, mas uma enorme repulsa ao PT e a tudo que identificam com a atual ordem.

Apesar de todas as políticas assistenciais, do aumento do poder de consumo da classe trabalhadora, o caráter capitalista das principais medidas dos governos petistas (que se aproveitaram do crescimento econômico global) tornaram-se poeira ao chegarem os verdadeiros efeitos da crise econômica mundial. Todo o mundo encantado prometido pelo petismo mostrou-se uma miragem. Passada a euforia, com a queda do emprego e do poder de compra, com os cortes no orçamento, sobrou um Brasil sem serviços públicos de qualidade e com ainda menos direitos que antes de Lula – que aliás, junto com Dilma, promoveu a destruição de vários deles. Mas com os banqueiros mais ricos do que nunca.

Porém, diferente do antipetismo típico e crônico da ultradireita brasileira, da burguesia e da pequena-burguesia conservadora e raivosa, esse antipetismo de uma fração considerável do povo trabalhador é parte integrante de um sentimento antissistema, um sentimento de repulsa a todos aqueles que representam a ordem, as coisas como estão. Que envolve o PT, mas que também não poupa Temer, senadores e deputados de forma geral.

Cabe tomar o máximo cuidado para não colocar na boca do Mano Brown posições que ele nunca defendeu. Entre o que costuma defender Mano Brown e o que defende a Esquerda Marxista há alguma distância. Mas na essência de sua análise da atual situação, eu diria que estamos de acordo. Ele não gosta do clima de festa e está certo, não há o que festejar. Ele não foi ali ganhar voto (e talvez tenha ganho muitos). Fez algo mais importante que isso: apontou contradições essenciais na campanha de Haddad e prestou um importante serviço à reflexão de muitos milhares de jovens e trabalhadores que o escutam.

Segundo ele, “falhou vai pagar, porque errou vai ter que pagar mesmo”. É o que está acontecendo e, ao invés de por a culpa no povo que supostamente estaria escolhendo a tortura em lugar do partido “do pai do povo”, explica claramente que o erro esteve no PT.

Brown disse que faltou comunicação. Não sei ao certo o que ele quer dizer com isso. Ele mesmo não estava ali para explicar. Foi sucinto. De minha parte, creio que quanto melhor o PT explicasse o que verdadeiramente pensa, pior seria. O programa de Haddad é mais do mesmo, em certa medida até pior que o dos governos antecessores do PT, e quanto mais o povo souber que o PT não quer mudar absolutamente nada, ainda mais repulsa pode desenvolver.

Porém, mais à frente, ele fala claramente de conteúdo. A língua do povo é sobre o que o povo quer:

“Se não tá conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo, tio”.
(…)
“Se nós somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo tem que entender o que o povo quer! Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber“.

Aqui está nosso ponto de discórdia. A direção do Partido dos Trabalhadores fez uma escolha e seus dirigentes sabem o significado desta escolha. Eles trabalharam durante muito tempo para derrotar dentro do partido os revolucionários que lutavam contra as alianças com partidos burgueses, que lutavam contra suas propostas de conciliação de classes, as posições que nos trouxeram até aqui.

Mano Brown parece ter alguma crença de que os quadros do PT tenham “esquecido” e possam voltar “lá” para entender o que o povo quer. Mas a direção do PT e o povo querem coisas diferentes. O PT quer um sistema capitalista mais doce e o povo quer ver este sistema explodir.

Por isso, a linha de Haddad é que nos empurra ao precipício. O povo está contra o sistema, mas para tentar ganhar a eleição, Haddad busca a aliança com todos os partidos e candidatos de sustentação do sistema! O povo, que não aguenta mais “o que está aí”. Também puniu o PSDB nas urnas, porque o vê como pilar da ordem atual. Puniu a todos os velhos partidos da ordem. Não é se aliando mais uma vez com a velha ordem que acharemos uma saída.

O PT não pode dizer outra coisa, porque já é outra coisa.

O que o povo viu até agora é justamente a democracia burguesa, suas instituições viciadas e corruptas, um Executivo incapaz de dar solução aos seus problemas seja lá quem o governe, um Congresso de picaretas, um Judiciário de magnatas corruptos, uma polícia que mata pobres e negros. Essa é a democracia burguesa, um sistema de dominação da burguesia, que se o povo não entende na teoria, está mais que claro que ele rechaça na prática. E é justamente a linha de salvar a “democracia” que Haddad agita para tentar derrotar Bolsonaro. A linha de tentar salvar o que povo odeia!

Devemos defender as liberdades democráticas conquistadas com tanto sangue derramado porque são nossas armas para a luta de classes. Mas não podemos defender o sistema democrático deles, dos de cima. Precisamos varrer estas instituições e criar novas. E a luta para varrer o sistema não está na agenda do PT. Por isso, tantos votam num candidato que diz que vai virar a mesa e mudar “isso daí”.

O PSOL teve a grande chance de se apresentar como partido antissistema pela esquerda. Se assim tivesse feito, teria saído muito fortalecido. Resolveu parecer palatável, ficou à sombra de Lula e do PT e não serviu ao verdadeiro combate. Ainda assim, é para o PSOL que olha grande parte daqueles que querem uma saída pela esquerda e lá estamos, seguindo o combate para que aprendam a escutar os anseios do povo e lhe proponham uma saída viável para por abaixo este sistema. Sem conciliação com os patrões, sem vacilação.

A fala de Brown é a confirmação de nossa análise de que votar no PT neste segundo turno não é a linha do mal menor, é o voto de classe – um voto crítico ao programa, mas que visa colocar classe contra classe. Ele expressa a relação histórica do PT com a vanguarda da periferia da maior cidade do país e de muitas outras e os conflitos que sua traição gera. Por isso a parte mais consciente da classe trabalhadora o utiliza como arma neste combate, apesar e, talvez, mesmo contra a linha de Haddad.

Por fim: não Brown, não está decidido. Está difícil, mas não podemos entregar ainda. Vamos ao combate. Mas, com toda a razão, com realismo. E se perdermos nas urnas, é com o espírito da crítica, do debate fraterno, mas franco, que precisaremos reorganizar a classe sobre um novo eixo de independência de classe, para os combates que virão e para a revolução que falará a língua do povo.

“O que mata a gente é o fanatismo e a cegueira”.