Maria de Deus: história de uma vida de uma militante do PT de São Bernardo do Campo

Publicamos abaixo a história de uma companheira do PT. Uma história que relata sofrimentos e lutas, alegrias e desilusões. Getúlio, Lula, conselhos de saúde, Igreja, emaranhados de ilusões atadas à vida da militante. Um passado que nos é necessário compreender, com suas tradições e erros, trata-se de toda uma vida que ainda hoje segue lutando. Para modificar e superar as antigas tradições há que compreendê-las, verificá-las e superá-las, e seguirmos firmes na via da construção do socialismo. (o editor)

Apresentação

Publicamos abaixo a história de uma companheira do PT. Uma história que relata sofrimentos e lutas, alegrias e desilusões. Getúlio, Lula, conselhos de saúde, Igreja, emaranhados de ilusões atadas à vida da militante. Um passado que nos é necessário compreender, com suas tradições e erros, trata-se de toda uma vida que ainda hoje segue lutando. Para modificar e superar as antigas tradições há que compreendê-las, verificá-las e superá-las, e seguirmos firmes na via da construção do socialismo. (o editor)

Apresentação

“Maria de Deus Vieira da Silva tem dois filhos, é auxiliar de enfermagem e funcionária pública há mais de 40 anos. É fundadora do Sindicato dos Servidores Públicos de São Paulo e atualmente faz parte da direção do Sindicato dos Servidores Públicos de São Bernardo. É filiada ao PT desde 1990 e faz parte da Direção Executiva do Partido em São Bernardo”.

O texto abaixo foi feito a partir de uma entrevista com a companheira Maria de Deus, para o jornal-informativo do Núcleo de Base Novo Rumo do PT de São Bernardo do Campo. A entrevista não chegou a ser publicada, então esse texto fica como uma homenagem para essa companheira cuja história de vida e de militância é um patrimônio do Partido dos Trabalhadores e do funcionalismo publico.

A vida e a militância de Maria de Deus

A primeira vez que ouvi falar de política eu ainda era uma criança vivendo em Serra Preta, cidade do interior da Bahia. Vivia ali em uma pequena fazenda, com meus pais e irmãos. Lembro-me de acordar cedo e sentir o cheiro da grama molhada pelo relento da noite anterior, logo, eu e minha irmã nos púnhamos a caminhar por uma longa estrada até a escola da igreja onde estudávamos. De volta da escola trabalhávamos com nossos pais a tarde e a noite na fazenda a aos finais de semana em uma pequena venda para trazer algum dinheiro para casa. Nas noites de sábado, nos reuníamos novamente com nossos parentes e amigos para dançar nos bailes, sempre sob os olhares atentos dos nossos pais. E no domingo estávamos novamente juntos, agora na Igreja onde ouvíamos com atenção os ensinamentos e sermões do Padre.

Aquela pacífica rotina só era quebrada pelas visitas a nossos tios em Feira de Santana de onde voltávamos nos gabando por ter assistido televisão, comido “comida de geladeira” e sem falar claro, nas belas roupas emprestadas de nossas primas.

Nada disso, entretanto comparava-se com as visitas do meu irmão, adorava ouvir suas estórias da tal São Paulo para onde ele se mudara anos atrás. E quando todos já estavam dormindo, ficava acordada ouvindo ele e meu pai falar sobre a tal da politica, especialmente, sobre Getúlio, “o rei do Brasil”, como diziam.

Aliás, Getúlio era o nome que mais se ouvia ali, graças a ele, meu pai se convencera a comprar o único aparelho que tínhamos: o rádio. Sentávamo-nos todos na sala em volta do radio, para ouvir Getúlio discursar. Aliás, quando ele falava, em qualquer lugar que fosse, pequenas multidões se reuniam em volta de um radio para ouvi-lo. Aquela voz firme e eloquente invadia as casas e tomava a atenção de todos. Lembro-me da grande tristeza que tomou conta de todos, quando Getúlio morreu, lembro-me de ver pessoas chorando muito nesse dia.  

Tinha vinte anos quando convenci minha irmã, que estava sempre comigo, e embarcamos para São Paulo em um caminhão de frutas. Moramos um tempo com meu irmão e sua família.

Aquela cidade era ainda mais deslumbrante do que eu pensava, prédios, carros, muitas televisões, roupas bonitas e pessoas, muitas pessoas, de todos os tipos, vindos de todos os lugares.

As oportunidades surgiam e me abriam caminho para trilhar, comecei trabalhando como auxiliar de cozinha em um restaurante, e depois atendendo clientes de um laboratório que fabricava agulhas. Era tudo emocionante, mas ao mesmo tempo apavorante, a saudade apertava, e eu voltava pra casa sempre que podia para ver meus pais. Eu ia sempre com todas as minhas coisas, preparada para ficar por lá mesmo, e quando eu havia finalmente me decidido, algo novo surgiu: um rapaz.

Ele estava de visita como eu e se preparava para voltar para São Paulo. Chamou-me para voltar no mesmo ônibus com ele. Embarcamos conversando como amigos e chegamos a São Paulo namorados.

Ele continuaria viajem para outra cidade, São Bernardo do Campo, mas isso não mudava nada, pois já havíamos nos tornado o mundo um do outro.

Foi nessa época também que me apaixonei pela enfermagem, me formei como auxiliar em uma escola técnica na Rua Marechal Deodoro no centro de São Bernardo, pra onde me mudei quando casamos, onde tive e criei meus dois filhos, Ricardo e Tiago.

Foi pouco depois disso que tive a primeira oportunidade de me envolver com politica, algo que me atraia desde os tempos do “rei Getúlio”. Foi quando ajudei na campanha do Dr. Feldman a vereador em São Paulo. Eu o conheci no Hospital Anchieta onde eu trabalhava, foi sua esposa, que era assistente social do hospital quem veio nos anunciar a sua candidatura a vereador, nos engajamos, toda a equipe de enfermagem do hospital, na sua campanha e em troca, ganhamos algumas promessas.

Feldman era do MDB, que na época era o único partido que fazia oposição ao governo militar, o que era bom. Ele era um bom homem e um bom médico era querido pelos pacientes então com certeza era um bom candidato a se tornar politico.

Mas quando terminou a campanha, eu não estava satisfeita, não só eu, mas todos nós que lidávamos diretamente com o público, tínhamos muito a dizer e a contribuir, mas não havia ninguém que quisesse nos ouvir, não havia lugar na politica para trabalhadores braçais e para funcionário públicos de baixo-escalão como nós. Ouvíamos falar de democracia, mas para nós tudo parecia igual ao que sempre foi.

Porém, uma estrela surgiu para mudar essa história, Nessa época a explosão de greves em todo ABC se espalhou por todo o país como pólvora. Lembro-me que, por morar perto do sindicato dos metalúrgicos do ABC, na hora de ir trabalhar todas as manhãs eu passava pelo sindicato e me informava sobre o que estava acontecendo.

Aquilo tudo me animava ainda mais quando falava com o “Baiano Lula” no bar do Abel, onde passava para comprar pão e leite antes de sair pra trabalhar. Era o presidente do sindicato que havia se tornado uma espécie de celebridade-politica nos últimos meses, mas era um politico bem diferente de todos que eu já tinha visto, era um “operário baiano” vindo para São Bernardo para trabalhar e lutar pelos seus sonhos, assim como eu.

Ele me contava sobre aquele novo partido de que todos falavam naqueles dias, o Partido dos Trabalhadores, um partido que nascia aglutinando o sonho dos de baixo como eu, os sonhos dos trabalhadores, o sonho de um país sem opressão ou exploração. Daquele dia em diante e até os dias de hoje, me tornei uma militante do partido, sempre que chega uma campanha eu tiro férias ou me licencio do trabalho, para trabalhar na campanha seja pra um parlamentar, prefeito, governador ou presidente, faço isso sem receber nada em troca, apenas por acreditar que um mundo melhor é possível.

De repente, por todos os lados, em todos os locais de trabalho, em todos os bairros de periferia, as pessoas se organizavam para falar e para fazer política e quando dei por mim, estava metida em reuniões e mais reuniões, protestos e manifestações.

Nessa época eu já era funcionária pública do Estado e da Prefeitura de São Paulo e fui trabalhar na periferia da cidade. Ao lado de outros companheiros, lutamos em defesa do funcionalismo público, por condições dignas de trabalho, por ampliação de direitos e por aumento salarial, porém éramos tratados como verdadeiros bandidos pelos governantes, e então naquele que ficou conhecido como “movimento da saúde”, nos juntámos as associações de moradores e comunidades de base da igreja na luta por melhorias na saúde pública. Toda essa luta desembocou na eleição da companheira Luiza Erundina do PT como prefeita de São Paulo, uma funcionária pública como nós.

Nessa época também, fundamos o sindicato de servidores públicos de São Paulo, que conforme dizia a nova constituição de 88, foi logo reconhecido pelo novo governo.

Ainda neste ano, lutamos com todas as forças para tentar eleger o baiano-Lula como o presidente, nas primeiras eleições diretas no Brasil em mais de 20 anos. E apesar da derrota eleitoral, nós saiamos muito mais fortes politicamente.

A luta do “movimento da saúde” fez com que a nova constituição criasse o SUS, estabelecendo que todos tivessem acesso irrestrito a saúde publica e gratuita, o sistema deve ser financiado pelo Estado e a política de saúde seria definida pelo governo em conjunto com os trabalhadores e a população através dos conselhos de saúde. Fui então trabalhar no conselho de Saúde do bairro São Judas, onde minha tarefa era justamente estimular a participação da população no conselho. Mas era uma tarefa difícil e convivíamos com os constantes ataques da direita que, enciumada, tentava colocar em nós a culpa pelos seus próprios fracassos.

A vitória de Maluf sobre o companheiro Suplicy do PT nas eleições de 92 foi uma grande frustração pra todos nós. Parecia que um rolo-compressor passava por cima de toda a luta socialista na cidade de São Paulo.

Como uma maré ruim, aquela foi provavelmente a época mais difícil da minha vida, a irmã que viera comigo para São Paulo anos atrás, morreu subitamente, pouco depois veio a minha separação, apesar de eu nunca ter deixado de amar o meu marido. Quando a vida do meu pai também foi levada eu já estava em profunda tristeza e desespero, já aposentada eu apenas via os dias passarem sem perspectivas.

Entretanto, algo viria para dar uma reviravolta em tudo aquilo. Depois de tentar encontrar respostas nos lugares mais obscuros, uma amiga me levou a sua igreja. Uma igreja evangélica, as palavras que ouvi ali me tocaram profundamente e me converti. Minha fé não só me deu forças para reconstruir minha vida e recuperar minha alegria de viver como me permitiu compreender muitas coisas.

Várias pessoas me diziam que parte dos problemas pelas quais eu tinha passado, foi por causa de toda a minha militância política, mas eu entendi que Deus podia usar algumas pessoas como instrumento para fazer o bem e, portanto podia usar também a política para isso.

Com as energias renovadas, voltei a trabalhar. Agora como auxiliar de enfermagem na Unidade Básica de Saúde do Bairro Alves Dias em são Bernardo, lá fiz novos amigos, e como representante dos trabalhadores no conselho local saúde, retomei a minha militância política, ao lado dos representantes dos usuários no conselho, lutamos por toda essa gente humilde, muitas delas que, como eu, um dia vim de muito longe, carregando nada ou quase nada, apenas os sonhos e desejos de uma vida melhor.

*militante da Esquerda Marxista do PT de São Bernardo do Campo