O que está por trás da discussão sobre a posição da nova Ministra da Cultura em relação aos direitos autorais? Este artigo do companheiro Mario Conte nos traz algumas respostas a essa e outras questões.
Recentemente, a ministra Ana de Hollanda, mandou que fosse retirado do site do Ministério da Cultura (MinC), o logotipo do “Creative Commons”, assim como o licenciamento, no rodapé do site. Ainda assim, permanece escrito no site do MinC: “Licença de Uso: O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.”
No último dia 25 de janeiro, presente na reinauguração da Biblioteca Mario de Andrade, nas comemorações do aniversário da cidade de São Paulo, a ministra da cultura, Ana de Hollanda, concedeu entrevista modificando ligeiramente sua opinião. Segundo matéria do provedor Terra, disse ser “totalmente a favor da cultura digital”, uma vez que suas primeiras declarações repercutiram muito mal nas comunidades da internet, como blogs, redes de relacionamento, twitter, etc. que não pouparam críticas à ministra, acusando-a de romper com o programa de governo de Dilma, que teria assumido compromisso de estimular essas formas de licenciamento, durante sua campanha.
A ministra alegou que sua atitude se deu por falta de contratos de licenciamento. Que apenas o autor pode fazer esse contrato, por isso achou inadequado que o ministério o fizesse diretamente. Mas disse que ela vai estimular os pontos de cultura a continuar utilizando essa forma de licenciamento. Por que justo os pontos de cultura?
Voltaremos a essa questão, após esclarecer algumas outras, das quais essa depende inteiramente. A questão do direito autoral é demasiado complexa e merece uma série de artigos, para que este não se torne muito extenso ou entediante.
Vamos falar aqui apenas dos principais atores que hoje pressionam a ministra, cada um à sua forma, e que nestes primeiros lances de início de governo, apenas acionaram seus peões, poupando suas peças mais valiosas para jogadas mais decisivas, quando e se forem necessárias: O Creative Commons (CC) e o ECAD.
O CC é uma ONG (Organização Não Governamental), fundada por Lawrence Lessig, Hal Abelson e Eric Eldred, em São Francisco, California, EUA, em 2001 (eles mantém seu próprio website em: creativecommons.org).
As CC consistem em licenças de conteúdos culturais em geral (textos, músicas, imagens, filmes e outros), onde seus autores abdicam de parte de seus direitos (copyright, do inglês) para o público, retendo ainda parte deles. Esses direitos consistem em livre manipulação, distribuição, compartilhamento e replicação dos conteúdos licenciados, desde que essas ações não se dêem sob a forma de comercialização. Em outras palavras, copiar um CD ou DVD, ou baixar música pela internet de produto licenciado como CC, pode, desde que não implique remuneração.
Claro que, dependendo do poder de negociação do autor em questão, inclusive os direitos de comercialização poderão ser flexibilizados e, assim, o autor passa a ser o único a não receber pela comercialização e produtos gerados pela obra, ficando com todo quinhão os atravessadores e distribuidores (desculpem o trocadilho, mas isso é que pode-se chamar mais-valia absoluta!).
O projeto CC é representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no RJ.
Todos sabem que ONGs obtém seus recursos principalmente da iniciativa privada, sendo que esta obtém descontos proporcionais ao valor investido nos seus impostos devidos ao Estado, além de obter visibilidade para suas marcas. Ou seja, fazem propaganda com dinheiro público!
A ONG norte-americana é mantida por ninguém mais, ninguém menos que o Google, a Mozilla Corporation, Omidyar Network Fund (do fundador do eBay), a William & Flora Hewlett Foundation (bancada pela Hewlett-Packard Company), a Redhat (empresa de software “livre” associada à IBM) e seu braço comercial, a Lulu.com. Outras categorias de doadores em anos anteriores: Microsoft, Sun Microsystems, Yahoo!, The Rockefeller Foundation.
Qual o interesse dessas empresas (praticamente todas elas distribuidoras de conteúdo na rede de computadores, a internet) de que exista uma grande oferta de conteúdos gratuitos, aos quais não precise ser pago direito autoral? Assim elas podem continuar cobrando suas taxas mensais dos usuários, para que eles tenham acesso “gratuito” a conteúdos na internet.
Já o ECAD é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, entidade que recolhe as quantias devidas aos autores musicais, pelo uso de suas obras (difusão em rádio, TV, execução ao vivo ou mecânica em festas, teatros, bares, etc.). Mas o ECAD não faz o rateio direto para o autor. Mantém o dinheiro retido, apenas repassando-o a uma associação, caso o autor encontre-se filiado a uma. Na verdade, o escritório é composto por nove dessas associações (os nomes podem ser verificados aqui). É a associação que repassa o valor devido ao autor. Por isso, quando autores executam ou interpretam suas próprias obras em apresentações ao vivo, devem “liberar” o uso de suas obras para eles mesmos, para que o ECAD não recolha o dinheiro, que passaria pelo trâmite acima descrito, com seus respectivos intermediários, até que volte para as mãos do autor.
Detalhe burocrático: o autor só pode liberar sua própria obra após encontrar-se inscrito em alguma associação (a maioria das filiações implica pagamento de taxa), que cede os documentos da liberação. Esse procedimento deve se repetir todas as vezes que o autor quiser executar sua própria obra, sem pagar. No site do ECAD, pode-se conferir a “tabela”, com os valores devidos de direito de uso da obra.
Quem mantém a estrutura do ECAD e das associações? Os próprios autores, através de taxas de adesão e “descontos” do dinheiro de direito autoral, que lhe é repassado.
Os valores oscilam de acordo com o porte do evento. Ninguém encontra-se isento. Não deveria ser surpresa que os maiores débitos junto ao ECAD são das grandes redes de televisão: a Rede Globo ganhou no ano de 2007 uma ação, onde o ECAD lhe cobrava cerca de R$ 100 milhões anuais!, após expirar, em 2005, acordo mútuo de pagamento anual da ordem dos R$ 6 milhões. Já a Rede Bandeirantes foi condenada a pagar ao ECAD 2,5% do seu faturamento, no ano de 2009. Redes de TV usam música para tudo: trilha sonora de novelas e séries, vinhetas de telejornais e outros programas, fundo de edições de noticiários e documentários, etc. Assim, os valores não são tão exorbitantes assim, apenas quem tem o melhor departamento jurídico, chora menos na hora de pagar a conta.
Mas quanto disso reverte para os músicos autores? Para não falar dos intérpretes que participaram das gravações, que, por lei, têm direito a pagamento pelo uso de sua interpretação (os chamados conexos – leia artigo de Alex Minoru sobre Elis Regina que trata disso).
Aqui começa a ficar mais claro os reais interesses nesse duelo de titãs, do qual a ministra é um mero títere, como todo e qualquer burocrata, quando o Estado é capitalista e ainda mantém a propriedade privada dos meios de produção. Sejam eles meios de produção de bens concretos, ou meios de produção de informação e comunicação.
O ECAD, bem como as associações que o compõem, não tem nenhum interesse em um sistema de licenças que permita ao autor “burlar” o esquema de filiação às mesmas associações. É por isso que os diretores de diversas associações iniciaram há cerca de 5 anos uma verdadeira “cruzada” (esse é o termo!), contra a licença de CC no Brasil.
Mas e o músico autor? Quais são suas opções?
Liberar o uso de sua obra para as grandes corporações, via CC, para que empresas de distribuição de conteúdo possam explorar livremente sua produção? Ou continuar sendo vampirizado pelo ECAD e associações?
A alternativa a isso não podem dar nem o ECAD, nem a ONG CC, nem mesmo nossa ministra títere dos interesses do capital. Como em toda disputa dessa arena, ganhará o setor que estiver mais adaptado às forçar produtivas de nosso tempo (e nesse caso é o CC, o ECAD permanece como uma excrescência anacrônica, esclerosada e condenada), a menos que os produtores da riqueza (os autores), reconheçam sua própria força e organizem-se mediante uma pauta comum, como trabalhadores que são. Uma pauta que permita o acesso universal e de fato gratuito a todo conteúdo cultural e artístico produzido, por todos os cidadãos, sem exceção, mas que não deixe os produtores desse conteúdos à míngua e miséria, às vezes em condições de semi-indigência, como já aconteceu com tantos autores da música nacional (Adoniran Barbosa, que foi homenageado por nós em seu centenário, foi apenas um entre tantos que morreu assim, enquanto até hoje sua obra rende dinheiro para empresários de gravadoras).
E um Ministério da Cultura de um Governo do PT deveria servir a esses interesses. Mas, como já dissemos em tantos outros artigos, enquanto a direção do PT continuar promovendo alianças com partidos da burguesia, os interesses dos governos do PT estarão submetidos a estes últimos.
Os músicos e autores de todo conteúdo artístico e cultural hoje, devem reconhecerem-se como os trabalhadores que são, organizarem-se junto aos seus sindicatos e ao restante da classe trabalhadora em seu partido, porque eles não tem nada a perder com o fim da sociedade capitalista, a não ser as correntes que hoje os prendem.
* Mario Conte é músico, membro da direção do SINPROIND (Sindicato dos Músicos Independentes), filiado no PT há mais de 20 anos e militante da Esquerda Marxista.