Foto: Fernando Frazão, Agência Brasil

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres que lutam: trabalho docente e violência nas escolas

Em seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado Engels afirma que “o desmoronamento do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo (…) Essa degradada condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.” Ao mencionar a Grécia Antiga e, mais especificamente Atenas, que contraditoriamente deu tanto conhecimento à humanidade, Engels aponta que este período deixou como herança também a forma degradante como tratava as mulheres, demonstrando que em um sociedade de classes e de apropriação privada dos meios de produção “cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros.” E não à toa a vida das mulheres atenienses é, ironicamente, dada como exemplo a ser seguido na música de Chico Buarque:

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
(…)
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas, cadenas
(…)
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas

O livro de Engels analisa como as relações familiares foram sendo alteradas conforme as forças produtivas se desenvolviam e a apropriação privada dos excedentes fez com que a linhagem paterna tomasse o lugar das relações de parentescos anteriores pautadas na linhagem materna. É importante destacar que o estudo de Engels demonstra que a opressão das mulheres não é um fato dado pela natureza e que desenvolveu-se em conjunto com as transformações das relações sociais de produção. Se antes destas mudanças a família comunista demonstrava alto apreço pelas mulheres, com a apropriação privada da produção e seus meios, aliada à formação do Estado, a mulher tornou-se escrava do lar e do trabalho doméstico.

A Grécia Antiga e, mais especificamente Atenas, que contraditoriamente deu tanto conhecimento à humanidade deixou como herança também a forma degradante como tratava as mulheres

Um ponto de virada importante e que se deu novamente em intrínseca relação com as transformações das relações sociais de produção, ocorreu quando o capitalismo em sua fase de desenvolvimento, especialmente no período da Revolução Industrial, obrigou a mulher a sair de casa entrando no trabalho produtivo. Nesse momento ela passa a integrar novamente a sociedade reconhecendo-se como classe trabalhadora, o que foi fundamental para hoje estarmos debatendo a questão da mulher.

Sabemos que a entrada da mulher no trabalho produtivo não se deu em condições iguais aos homens, mas sim de forma ainda mais degradada e que isso também não significou sua libertação do trabalho doméstico ou do cuidado das crianças, idosos e familiares doentes, mas significou um acúmulo de funções que persiste até hoje. No caso do magistério, nosso foco neste texto, a grande presença das mulheres tem relação – assim como na saúde, nos serviços de limpeza, cozinha e cuidados pessoais – com o papel que, supostamente, caberia às mulheres em nossa sociedade: o papel de cuidar e educar. E também por isso estão nestas profissões os piores salários e as piores condições de trabalho.

Dados de 2021 compilados pela Revista Piauí1 indicam que as mulheres são 81% dos profissionais do magistério no Brasil e que, não por acaso, essa presença diminui conforme avança os níveis de ensino. Os dados do Censo Escolar de 2020 apontam que na educação infantil as mulheres são 96% do magistério e apenas 58% no ensino médio. As desigualdades também estão presentes nos salários, com os professores homens ganhando cerca de 12% a mais que as mulheres professoras. A reivindicação de melhorias salariais e de condições de trabalho são históricas na luta das mulheres trabalhadoras e, no caso da educação, ficou demonstrado qual seria o papel das mulheres professoras na sociedade através da fala do então governador de Minas Gerais, Hélio Garcia que, durante uma greve do magistério em 1979 afirmou que “as professoras não ganham mal, elas são é mal casadas2.” Ou seja, o trabalho docente era – e ainda é – visto como um trabalho desempenhado por mulheres que, logicamente são casadas e que por isso, não necessitam receber bons salários já que não são responsáveis pelo sustento do lar. O discurso de que a docência é uma profissão executada por amor, fruto de um dom das mulheres também reforça essa perspectiva de que não é preciso ser um trabalho bem remunerado.

Aliada à essa condição de trabalho das mulheres professoras está a constante luta pelo reconhecimento da escola como espaço do conhecimento científico historicamente produzido e socialmente transmitido. Não à toa uma escola na qual a maioria das trabalhadoras são mulheres permanece há séculos buscando reconhecimento e valorização social. Desde o início do processo de massificação da escola pública este espaço social passa por diversas contradições. Ao mesmo tempo em que se coloca cada vez mais exigências em um local onde parte das contradições da sociedade se manifesta, esperando-se que a escola supra as funções do Estado que vão além da educação, como a saúde, a alimentação, o combate à violência e o lazer, enfrentamos diariamente a sua desvalorização pelos gestores e pela própria classe trabalhadora – que, refletindo a ideologia dominante, relaciona-se de forma contraditória com a escola, pois, ao mesmo tempo em que a considera um importante meio para uma esperada ascensão social, é bombardeada com uma ideologia que, ao fim e ao cabo, quer pintá-la como algo menos importante uma vez que ensinaria coisas que não tem utilidade no cotidiano capitalista.

Nas últimas décadas, junto com a decadência do capitalismo, temos visto os impactos de sua degeneração na cultura e demais aspectos sociais. A massificação da internet neste contexto, aliada ao aumento da miséria e das contradições sociais, tem potencializado aspectos essenciais para a manutenção do capitalismo como a xenofobia, o racismo e o machismo. Além disso, o papel conciliador e reformista das direções das nossas entidades históricas, que não assumem um papel dirigente e organizador da insatisfação legítima dos trabalhadores, tem aumentado a canalização desta revolta no campo da direita reacionária, como vimos com a eleição de Bolsonaro e no aumento do poder político de entidades como as igrejas neopentecostais e políticos demagogos que, aproveitando-se desse vácuo deixado pela esquerda, têm se promovido e organizado uma série de ataques que, no último período, tem elencado a escola como alvo fundamental.

Esse ataque à escola pública – e consequentemente ao trabalho docente feminino – tem se organizado mais fortemente desde as práticas do movimento chamado Escola Sem Partido. Foram diversas tentativas de criminalizar o trabalho docente a partir de um discurso reacionário e dito apolítico, que afirmava que a escola tinha se constituído como um local de cooptação das crianças e jovens para a esquerda e tudo que seria considerado próprio desse campo, levantando espantalhos para depois derrubá-los com temas que vão desde conteúdos curriculares e abord agens que seriam de esquerda (falar em Golpe em vez de Revolução de 64, por exemplo), passando pelo famigerado kit gay e o temido banheiro unissex.

Não é por acaso que estes ataques têm um viés da chamada pauta dos costumes, que dizem respeito às liberdade democráticas e a questões que envolvem diretamente as mulheres, como a educação sexual, o combate à violência contra as mulheres e as desigualdades sociais, por exemplo. Questões que mesmo parte da burguesia já adotou como reivindicações ligadas aos direitos humanos, adotadas em diversas redes de ensino como parte dos currículos. Quando vereadores e deputados demagogos insistem em debater essas questões, colocando por exemplo, como papel exclusivo dos pais decidir se os filhos irão frequentar ou não aulas com conteúdos ligados a estes temas, eles estão reafirmando que não se deve debater questões que possam despertar qualquer tipo de questionamento e crítica dos estudantes ou suas famílias, perpetuando assim a ideologia dominante e reacionária que afirma o papel submisso das “mulheres de Atenas” também na sociedade capitalista.

É importante destacar que, como já afirmava Trotsky em 19323, ao responder questões sobre a Rússia Soviética, “Ninguém pode negar que a educação fornecida às crianças soviéticas também é propaganda. A única diferença está em que nos países burgueses se inculca às crianças respeito pelas velhas instituições e ideias que são tomadas como corretas. Como na URSS se trata de ideias novas, a propaganda salta aos olhos. ‘Propaganda’ no mau sentido da palavra é o nome que as pessoas usualmente dão à defesa e propagação das ideias que não lhe agradam”. Ou seja, estes senhores acusam a escola de fazer propaganda “comunista” ou “esquer dista” quando na verdade a escola sempre teve como parte do seu currículo oculto, a propagação das ideias conservadoras e próprias da sociedade capitalista na qual está inserida, com todas as suas contradições.

Além dos ataques institucionais temos visto o aumento de casos de ameaças à vida de professoras4 por parte de estudantes, bem como os ataques organizados por jovens em escolas, ferindo e matando crianças e professoras. Não por acaso, os ataques são voltados às escolas, que além de causar grande comoção, principalmente quando se tratam de escolas de educação infantil, são espaços predominantemente ocupados por mulheres. O crescimento do machismo e da misoginia, como manifestado no caso dos grupos autodenominados redpills5 é mais um exemplo da decadência do capitalismo que, em momentos de crise retoma velhos preconceitos arraigados em nossa cultura. Estes ataques têm como objetivo ferir as mulheres trabalhadoras, ferir a escola como espaço social de transmissão do conhecimento científico, a escola pública como instituição que deve ser apropriada e valorizada pela nossa classe. Criam desconfianças da classe trabalhadora, incluindo as próprias professoras, sobre a segurança da escola, seu papel dentro da sociedade e do próprio trabalho desenvolvido dentro dela. Reforçando, mesmo que momentaneamente, a expectativa de que a segurança só existe com a presença policial dentro do espaço escolar.

Na Carta a uma reunião de trabalhadoras em Moscou escrita por Trotsky em 1923 ele afirma a importância da mulher revolucionária, pois, “quem coloca mais energia e constância na luta pelo novo, são os que mais sofrem por causa do velho.” Por isso não é coincidência que as mulheres têm estado na vanguarda de tantas lutas e revoluções, e no caso do magistério, organizado tantas e históricas greves em defesa da escola pública, de salários e condições dignas de trabalho. E como já afirmamos, o papel da mulher na luta de classes é fundamental e existem diversos exemplos na história. Porém, no caso de categorias majoritariamente de mulheres, como a educação, a sua organização ainda apresenta desafios. Já em 1896 Clara Zetkin apresentou estas dificuldades em seu discurso ao Congresso do Partido Socialdemocrata Alemão, intitulado Apenas junto com as mulheres proletárias o socialismo será vitorioso.

“Abaixo a escravidão na cozinha! Que haja um novo estilo de vida!”, por G. Shegal

Além de ressaltar as diferenças entre as reivindicações das mulheres burguesas e trabalhadoras, Clara destaca a importância de entender que as trabalhadoras devem se unir em luta aos homens da sua classe visando a construção do socialismo, bem como a necessidade de garantir os meios para que as mulheres possam participar da vida pública e das atividades políticas. Questões colocadas naquele momento ainda persistem, como a dificuldade das mulheres professoras se entenderem como classe – fruto da ideologia do dom e do trabalho executado por amor – e a sobrecarga de tarefas do lar que ainda exige delas um grande tempo e esforço, minando assim muitas possibilidades delas organizarem-se para além do período de trabalho, nos espaços sindicais, por exemplo.

Segundo dados divulgados recentemente6, as mulheres gastam 21 horas semanais com tarefas domésticas enquanto os homens apenas 11 em média. E essa desigualdade na distribuição dos afazeres se inicia já na adolescência, com 86% das mulheres entre 14 e 24 anos realizando as tarefas domésticas enquanto apenas 69% dos homens nessa faixa etária cuidam das tarefas da casa. Ou seja, as mulheres de hoje, além de permanecer sobrecarregadas continuam repassando à nova geração de mulheres o mesmo fardo. Essa condição é facilmente observada no cotidiano do trabalho docente, que inclui além das tarefas próprias do magistério, a necessidade das mulheres organizarem o almoço e a casa, a ida dos filhos ao colégio e ao médico entre tantas outras tarefas que ainda ficam a cargo da mulher e da mãe. Isso resulta na dificuldade da participação destas trabalhadoras em atividades políticas como reuniões sindicais, greves e formações que se dão fora do horário de trabalho.

Assim como estas dificuldades persistem, são vários os exemplos de superação dados pela luta das mulheres. Nas últimas décadas foram dezenas de greves do magistério em luta por salário e condições de trabalho. Greves fortes e organizadas que ocuparam Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas em diversos lugares do país, colocando em xeque a estrutura do Estado burguês e demonstrando que sem a classe trabalhadora nenhuma lâmpada se acende. Que sem professoras nenhuma escola funciona. Tanto são importantes estes movimentos que a resposta do Estado tem sido cada vez mais violenta, contando sempre com a presença das polícias e todo aparato repressor para diminuir o ímpeto das mulheres que lutam. Não são poucos os casos de repressão policial aos movimentos grevistas com bombas de efeito moral, cavalaria e tropa de choque, diante de mulheres que ousam sair de casa e, partindo das suas reivindicações mais imediatas ousam lutar pelo novo, destruindo o velho.

Como marxistas temos convicção de que nem a escola isolada, nem a luta das mulheres por si só irão construir um novo mundo, livre das opressões, da violência, das guerras e da exploração da maioria por uma minoria. Porém, temos a certeza de que cada conquista dentro do capitalismo é um avanço para a classe trabalhadora e que estas lutas devem ter como objetivo a superação desta sociedade e a construção do socialismo. Sabemos que, como disse Clara Zetkin “De mãos dadas com o homem de sua classe, a mulher proletária luta contra a sociedade capitalista”. Seguimos em luta!

  • Em defesa da escola pública, laica e gratuita para todos!
  • Em defesa do aborto legal, público e gratuito!
  • Contra a violência contra a mulher!
  • Pela laicidade das decisões do Estado!
  • Em defesa das liberdade democráticas!

Notas:

1 <https://piaui.folha.uol.com.br/elas-na-sala-de-aula/>

2 <https://sindutemg.org.br/noticias/a-luta-dos-educadores-em-relatos-historicos-emocionantes/>

3 As relações familiares nos sovietes.

4 <https://www.marxismo.org.br/inseguranca-escolar-e-perseguicao-politica-campanha-em-defesa-da-vida-da-profa-mara-entra-em-nova-fase/> e <https://www.marxismo.org.br/agressor-que-ameacou-sequestrar-e-matar-professora-e-transferido-de-escola-em-sao-paulo/>

5 <https://www.marxismo.org.br/red-pills-o-que-significa-a-proliferacao-dos-movimentos-machistas-na-internet-e-como-combate-los/>

6 <https://piaui.folha.uol.com.br/refens-da-vida-domestica/#:~:text=S%C3%A3o%2021%2C3%20horas%20semanais,%2C7%20horas%2C%20em%20m%C3%A9dia.>