“Descontextualizar uma passagem solta de um livro é uma prática comum a todo e qualquer censor, porque é fácil e não cria uma discussão séria.”
Recentemente, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu parecer de que o livro de Monteiro Lobato, “As Caçadas de Pedrinho”, era racista e deveria ser banido das salas de aula da rede pública brasileira. O autor da acusação é Antonio Gomes da Costa Neto, um servidor da Secretaria de Educação do DF e mestrando na Universidade de Brasília (UnB) na área de relações internacionais. Ele afirmou que o livro contém passagens que incitam o preconceito contra os negros. Levou a questão à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, cujo ministro, Eloi Ferreira de Araújo, afirmou que o livro possui conteúdo “racista” e “perverso”.
O CNE deu parecer contra a adoção da obra nas escolas por votação unânime, segundo o jornal “OESP”, de 31/10/10, justificada pelo fato do livro não “se coadunar com as políticas públicas para uma educação antiracista”.
O Movimento Negro Socialista (MNS) e a Esquerda Marxista já explicaram anteriormente que o Estatuto da Igualdade Racial é um instrumento reacionário que pode conduzir ao apartheid no Brasil, pois se apóia no conceito acientífico de que existem raças e que o racismo contra os negros é culpa dos brancos, abstraindo da existência da exploração capitalista e da divisão das classes sociais. Agora vem a tentativa da censura, amanhã virá a queima de livros e a condenação de Darwin por ter descoberto a teoria da evolução das espécies e afirmado que a raça humana evoluiu de macacos, mais adiante lançará trabalhadores brancos contra trabalhadores negros em bandos xenófobos para melhor reinar o capital.
Condenamos e denunciamos todo ataque contra as artes e a liberdade de expressão. Defendemos a unidade das lutas dos trabalhadores na luta por sua emancipação frente à exploração capitalista fonte de todo racismo e preconceitos.
As acusações contra Monteiro e seu livro
No capítulo IV (“Os espiões da Emília”) a boneca Emília diz: “É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do sítio, exceto os de pena”. No capítulo VII (“O assalto das onças”), quando as onças chegam ao sítio e a Tia Nastácia, para não ser pega “… esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.”
No capítulo IV, Tia Nastácia recusa-se a usar as pernas-de-pau para escapar das onças, porque não tinha habilidade para a coisa, afirma preferir ser devorada viva, ao que o livro coloca “Mas isso de preferir que as onças nos comam vivos é conversa. Na hora em que onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir.”
Esta afirmação, ainda que com o intuito jocoso, poderia ser classificada como preconceito em relação aos deficientes físicos? Descontextualizar uma passagem solta de um livro é uma prática comum a todo e qualquer censor, porque é fácil e não cria uma discussão séria. Ignora os muitos desdobramentos que o tema pode levar e ignora o papel da obra de arte ou literária na construção da subjetividade dos indivíduos, que contribui para formar um ser pensante, crítico e atuante. Reduzir a arte ou literatura à mera transmissão de idéias objetivas e rasas é o desejo dos moralistas, aleijões da imaginação, que criaram tais precedentes no fascismo, no macarthismo nos EUA, ou no Jdanovismo na URSS sob o stalinismo.
No livro, logo no capítulo I (“E era onça mesmo”), quando tentam matar a onça e não conseguem, é descrita a fuga das crianças: “Foi uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores. Felizmente havia ali um pé de grumixama que dava para abrigar o grupo inteiro. Nele treparam, sem dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emília.” Por que o parecer esqueceu-se que aqui também se comparou o ato das crianças treparem em árvores a uma ação de macacos?
Na sequência, uma fala de Pedrinho, ao incitar todas as crianças contra a onça que ele cegou com um punhado de pólvora: “É hora! Avança macacada!” De novo, os macacos!
Logo no capítulo II do livro, Narizinho afirma que “as grandes coisas devem ser bem pensadas e não podem ser decididas assim, do pé para a mão”, como que prevendo a atitude apressada dos que tentariam impedir as próximas gerações de ter contato com o livro.
Parece que o ministro da Educação, Fernando Haddad, seguiu esse conselho, ao afirmar que ouviria educadores e acadêmicos sobre o parecer do CNE: “Não vou decidir no calor do momento”. Ao ouvi-los, Haddad acertadamente vetou o veto.
Censurar obras de arte ou literatura sempre abre um precedente perigoso e põe em risco a liberdade de expressão duramente conquistada neste país, através de luta e organização contra a ditadura militar brasileira e seu autoritarismo. Pessoas foram presas, torturadas e assassinadas, por lutarem pela construção de um país mais livre e democrático, e agora querem reinstalar a censura no Brasil, proibindo um clássico da literatura nacional.
Mesmo divergindo de posições políticas do autor, entre elas seu nacionalismo ou seu ufanismo frente ao império britânico com sendo um processo civilizatório do terceiro mundo, não podemos concordar com o parecer da CNE e saudamos o veto do ministro Haddad.
Porque, o que queremos:
A independência da arte – para a revolução!
A revolução – para a liberação definitiva da arte!
Mario Conte é secretário Trabalhista do Sindicato dos Músicos Profissionais Independentes, petista e militante da Esquerda Marxista