Foto: Alex Pazuello/Semcom

Morte e vida proletária

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 12, de 06 de agosto de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Na UTI do Hospital Tide Setubal, localizado em um bairro proletário de São Paulo1, 95% dos pacientes com Covid-19 morrem. No Rio de Janeiro, um estudo feito pela Fiocruz mostrou que o percentual de mortes nas UTIs de hospitais públicos é o dobro do percentual nos hospitais privados.

É uma novidade da Covid-19? Num poema escrito entre 1954 e 1955, João Cabral de Melo Neto cantava:

E se somos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome
um pouco por dia (Morte e Vida Severina)

Se “atualizarmos” o poema, podemos dizer que os proletários morrem nas “operações policiais” nos bairros proletários, a maioria das vezes bem antes dos 20, morrem de velhice bem antes que os moradores de bairros da pequena e média burguesia e continuam a morrer de fome um pouco por dia, como mostram as reportagens sobre os entregadores de aplicativos. 

A Covid-19 apenas faz saltar aos olhos essa situação absurda, acelerando todo o processo. E mostrando que o dinheiro público tem destinação certa. Apesar de todas as medidas que despejaram rios de dinheiro em bancos privados, estes choram e lamentam que o lucro diminuiu pela metade durante a pandemia. Continuam a ganhar bilhões, mas somente a metade dos bilhões que antes ganhavam. 

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, por exemplo, a empresa terceirizada que fazia funcionar o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU) praticamente parou porque não recebe pagamentos. E o estado e município dizem que o problema é da empresa, nada temos a ver com isso. 

Os postos de saúde do município do Rio estão quase todos paralisados, em virtude da falta de pagamentos de médicos, enfermeiros e pessoal de apoio. Podemos acrescentar aos versos que se morre de doença todo dia por falta de atendimento. E quem conta as mortes? “É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo… a terra dada não se abre a boca”. 

Na Índia, depois que um ministro falou que não se podia contar os mortos, agora inventam uma contagem enquanto a pandemia se espalha pelo segundo país mais populoso do mundo sem nenhum controle, sem médicos ou qualquer atendimento. O canto de João Cabral vale no Brasil e na Índia, e a única diferença para os proletários dos EUA é que lá o serviço de estatística é eficiente, porque a máquina de matar proletários funciona com a mesma fria precisão, e morrem mais pobres, negros e latinos que todas as outras parcelas da população. 

100 mil mortos!

Os jornais querem dizer que média móvel de mortos (média de mortes relatadas dos últimos sete dias) baixou de 1 mil para 995 (em 3/8/2020) e isso talvez mostre que a epidemia está “cedendo”. E os governos estaduais, municipais e federal repetem a mesma cantilena, com algumas variações de tom e nota, mas sempre voltando à mesma nota de “reabertura da economia”. 

As fábricas, que nunca pararam ou fecharam, mostram que para os proletários nunca existiu o “isolamento social”. Os ônibus e trens, que tiveram diminuída a sua frequência para que se pudesse manter a “lotação ideal” de espremer o proletariado como sardinha em lata para se obter o lucro da concessão, nunca tiveram isolamento social. E o que abriu agora, principalmente, foram os bares, shoppings e outros centros onde a pequena burguesia desesperada vai celebrar a sua vida vazia às custas das vidas proletárias, já que o proletário se pegar Covid-19 e necessitar internação irá para o hospital com 95% de chance de morrer e o pequeno-burguês para o hospital privado onde a chance de morrer é bem menor. 

Nos tempos longínquos (não faz dois meses) em que a burguesia se estranhava com Bolsonaro, esse era o alvo preferido das críticas, enquanto as mortes chegavam à triste estatística de 10 mil. Agora, quando o número de mortos é multiplicado por 10 e Bolsonaro, governadores, centrão, prefeitos e juízes estão tocando a mesma marcha fúnebre, os sinais de alerta somem dos jornais. 

Para os proletários, resta uma fria certeza: é necessário combater para enterrar de vez o sistema capitalista e todo o seu festival de horrores. Os tempos de “Morte e Vida Severina” precisam ser deixados para trás. E para isso é necessário se armar com as armas da crítica marxista, antes do tempo em que a crítica das armas se fará falar.  

1 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml