O G20
Nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2018 foi realizada na Argentina a Cúpula Mundial do grupo dos 28 países mais industrializados do mundo.
Com uma militarização nunca vista na Argentina, milhares de trabalhadores, organizações políticas e sociais, juntamente com sindicatos, repudiaram nas ruas as reuniões dos presidentes dos países participantes. Com um exímio contraste, a opulência chegou a limites absurdos, que foram televisionados sem o menor escrúpulo, enquanto a Argentina chega ao índice de pobreza mais alto da última década, 33,6%, significando que 13,2 milhões de pessoas no país vivem na miséria.
Os cantos de sereia que o governo Macri e Cambiemos tentaram apresentar à população nestes dias em relação aos benefícios da cúpula do G20 duraram pouco e não puderam esconder a crise no país e a consequente deterioração da vida e do trabalho de milhões de pessoas. A isto se combina a crescente crise política e econômica da região e do mundo que, somada a um protecionismo que revela a crise de um sistema, mostra de maneira crua e alarmante, para as classes dominantes da Europa, dos Estados Unidos, da China e do restante do universo capitalista, uma crescente polarização: o capitalismo se encontra em um dos desafios mais profundos de sua história.
A premissa de 2019
As grandes lutas protagonizadas, na Argentina, apenas há dois meses, tiveram seu ponto mais alto no conflito universitário, quando 57 universidades do país se encontravam lutando, com muitas delas ocupadas. Este conflito de caráter nacional desempenhou um papel de unificação dos diferentes conflitos e mobilizações em curso. Estaleiros Río Santiago, Fábricas Militares Río Tercero e Fray Luis Beltrán, a educação básica, fábricas que se viram obrigadas a sair à luta por demissões ou reduções salariais envolveram-se com mobilizações contra o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Este alto grau de questionamento dos trabalhadores ao governo de Macri e Cambiemos colocou em alerta a grande burguesia e o conjunto do empresariado. O kirchnerismo com seu operativo “queremos um 2003 e não um 2001” desempenhou um arrefecimento sobre o movimento, que trava ou impede um nível superior de luta.
Quando dizemos que o conflito docente universitário desempenhou um papel de unificação é porque consolidou o estado de ânimo de repúdio e cansaço que existia e ainda existe nos trabalhadores, sentindo-se como um conflito próprio para o conjunto dos trabalhadores que estavam em luta ou não, abrindo um caminho de aglutinação da luta e de um sentimento de desprezo para com o governo do FMI.
É verdade que as assembleias já existiam às dezenas, mas não estavam generalizadas nem coordenadas, porém a evolução do movimento apontava para esta construção. Nosso inimigo de classe sentiu muito o desenvolvimento de 2001 que possibilitou uma luta generalizada dos de baixo.
Portanto, a premissa de 2019 se impõe de maneira transitória, dando lugar a um caminho incerto para uma “agenda eleitoral”. Todos os chefes sindicais jogaram a cartada da saída eleitoral, menosprezando as lutas e mobilizações e impondo certo impasse à classe trabalhadora e aos setores populares.
Agravamento da crise
Todos os índices apontam a um estancamento e declínio da economia no país. A indústria caiu 6,8% em outubro. Segundo o Página 12 de 4 de dezembro de 2018:
A atividade manufatureira acumula em 2018 uma queda de 2,5%. Em outubro se manteve a tendência dos cinco meses anteriores e a contração com respeito ao mesmo mês do ano passado foi de 6,8%. O dado foi divulgado pelo Indec, que também informou uma baixa de 6,4% na indústria da construção. Os números da Estimativa Mensal Industrial (EMI) correspondente a outubro mostram a consequência da baixa da demanda interna e a queda do consumo. A indústria já apresenta seis meses de retração.
Mas não é somente a indústria, já que a queda da produção leva a uma queda do emprego. De acordo com os dados publicados em 4 de dezembro de 2018 em Infobae:
Os dados oficiais anteriores, revelados pela gestão de Jorge Triaca à frente da carteira laboral, confirmam que o mercado de trabalho segue em queda, com uma demanda laboral em declínio que desanima as pessoas a sair à procura de melhorias no bem-estar. Pelo nono mês consecutivo, a situação do emprego formal no setor privado, como revela a Pesquisa de Indicadores Laborais (EIL[, na sigla em espanhol]), mostrou em outubro uma deterioração contínua da parcela mais protegida do emprego, o que permite prognosticar o angustiante sofrimento que vivem hoje os trabalhadores não registrados.
E segue:
Segundo os números do Sistema Integrado de Previsão Argentino (SIPA), na Argentina existem 12,2 milhões de trabalhadores. De março a setembro já foram perdidos 136 mil postos de trabalho. Em seis meses de 2018 foram destruídos o que 18 meses para ser construído, no período de 2016 a março passado. E o panorama para frente não é promissor. Para o terceiro trimestre é esperado uma forte queda dos postos atuais, uma maior quantidade de pessoas desanimadas em procurar trabalho e um aumento do ritmo inflacionário. Uma combinação que derivará em maior crescimento da pobreza.
Estas duas citações mostram de maneira clara e contundente a situação da crise capitalista, a tendência geral de para onde vai a economia mundial e que a Argentina não é mais que um nó nesta rede de países explorados pelo imperialismo e pelos países mais poderosos do planeta. A submissão do empresariado e da grande burguesia não encontra precedentes.
As direções kirchneristas trataram de sustentar desde dezembro de 2015 a governabilidade. A crise foi se acentuando e em mais de uma ocasião não somente salvaram a governabilidade, mas as próprias instituições capitalistas. Não espanta a decisão política do início de 2018, onde o fio condutor foi de estar nos conflitos, mas com uma política de levá-los para o moinho de vento das eleições presidenciais de 2019. O ponto de inflexão produzido na consciência das massas, sua resistência e luta nas ruas foi a votação parlamentar da Reforma da Previdência, que mostrou à direção sindical e política – que prefere gerir o capitalismo, inclusive em momentos de crise – que tem como tarefa salvar o grande capital.
A aposta do kirchnerismo à saída de conciliação de classes, que implica gerir o capitalismo e tentar reformá-lo, baseado no conceito de Comunidade Organizada que o movimento peronista começa a propor a partir de 1949 é o ovo da serpente.
Em última instância, o kirchnerismo aparece como um bombeiro do capitalismo, produto da teoria política sobre a qual levanta seu andaime ideológico. Nesta lógica se agarra às instituições da democracia burguesa porque não está em seu programa a superação do próprio capitalismo, mas se limita, como mencionamos, a tentar administrá-lo.
Portanto, administrar o capitalismo em sua fase de crise histórica implica gerir a crise. Quer dizer que o kirchnerismo só pode se limitar a tentar levar adiante uma versão “adocicada” do ajuste.
A direita e a esquerda estão fora do processo?
A bancarrota política do reformismo mostrou toda sua potencialidade na entrevista de Axel Kicillof, ex-ministro da Economia, no semanário Forbes – inclusive com foto na capa – onde afirmou que “não vamos voltar em nada para 2015”. Pouco ou nada mencionou do documento emitido pelo Instituto Pátria em 2016, onde assinalava que ao ganhar em 2019 se iria restituir todas e cada uma das conquistas que o governo Macri ia retirando com o Programa de 24 pontos que resolveria a crise dos argentinos.
Hoje, passado pouco tempo, vemos na boca do ex-ministro como seu programa de reformas deixa de honrar a dívida externa, “isto é, há que começar conversas com o FMI, indiscutivelmente”. “[…] Agora, romper com o FMI […] não se pode romper com o Fundo. Mas eu discutiria os termos deste acordo. Diria a eles: ‘por favor, não obriguem um país a tomar as mesmas medidas que o levaram ao desastre de 2001’, como no caso do dólar que manifestou estar a favor de um dólar competitivo etc. Deixando claro que o próximo governo em 2019 será ‘amigo dos empresários’ e que ‘começaram a gostar de mim’ (FORBES ARGENTINA, 20 nov. 2018).
Mas nem tudo fica aqui, já que a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner, logo que votou a favor da descriminalização do aborto no Senado da Nação, dado sua compreensão ou aprendizagem da maré verde, das centenas de milhares de mulheres que velavam por seus interesses fazendo vigília no dia anterior à votação, passou a sustentar que “no centro do movimento há muitos lenços verdes, mas também há lenços azuis” (fazendo referência ao movimento que defende as “duas vidas”).
Sua intervenção de que esquerda e direita estão fora do processo é uma sinalização ao grande capital, revelando-se como os cruzados que guardam o Santo Graal da sacrossanta democracia burguesa e do Parlamento onde se cozinham todas e cada uma das medidas mais antipopulares. Cristina, assim, fez um chamado na “contracúpula” do G20 à unidade opositora em uma “frente patriótica”, que não é “de direita nem de esquerda”, para derrotar “as políticas do neoliberalismo que voltam a endividar o país”, para então dizer que:
a classificação de direitas e esquerdas é absolutamente defasada, servindo para dividir. Devemos cunhar uma nova classificação de frente social, cívica, patriótica, em que se agrupem todos os setores que são agredidos pelas políticas do neoliberalismo. Que não é de direita nem de esquerda.
Na realidade, a ex-presidente debate somente com a esquerda sabendo da situação de crise política, econômica e social que atravessa o planeta. Trump e seus assessores caluniam e desqualificam o socialismo pela crescente adesão de amplos setores da classe trabalhadora e da juventude a essas ideias; o recém-eleito presidente do Brasil, Bolsonaro, lança um profuso ataque ao comunismo, ao marxismo e aos grupos de esquerda; Cristina Fernández debate, desde o justo meio aristotélico, com uma política reformista que não pode reformar, e um claro posicionamento que não propõe retroceder o ajuste, tudo isso desvenda a polarização da luta de classes. Cristina Fernández, como nos habituou, faz falar seus ajudantes, como é o caso de Axel Kicillof, que mostra uma política amistosa com os inimigos dos trabalhadores.
Os últimos acontecimentos na Europa, mais especificamente na França, é uma mentira para Cristina de Kirchner. A ofensiva capitalista contra os trabalhadores e setores populares pela mão de Emmanuel Macron e do capitalismo francês teve uma resposta das massas, quase insurrecional. Se não fosse a CGT, omissa ao não convocar uma greve geral e estender o movimento a toda classe trabalhadora, a situação teria mudado a um nível superior. Novamente as mediações aqui e lá impedem o aprofundamento da luta de classes. O grande temor de todos os presidentes e parlamentares na Europa é o efeito contagioso dos franceses junto aos demais trabalhadores europeus, além da atual situação de crise do capitalismo italiano e inglês com o Brexit.
A grande operação que realizam a partir dos meios de comunicação é apresentar estas mobilizações, como também outras em curso, como movimentos da direita, estabelecendo como a encruzilhada entre o fascismo e a democracia. A mesma democracia que golpeia aos trabalhadores do mundo.
O que os trabalhadores precisam?
Trotsky dizia com razão que “a crise da humanidade é sintetizada na crise da direção do proletariado”. Encontramo-nos em uma época de tremendas turbulências, tanto políticas como econômicas e sociais.
Por qualquer lado que olhemos, a ofensiva do grande capital contra as bandeiras dos trabalhadores é implacável.
A crise de superprodução de mercadorias é descarregada sobre as costas das amplas massas do mundo, mas, além disso, estamos presenciando um fenomenal declínio do comércio mundial. As economias europeias cresceram apenas 2,3%, porcentagem menor que o crescimento de 2017.
China cresceu 6,7%, menos que no primeiro trimestre de 2018, e encontra-se na perspectiva de desaceleração de sua economia e vislumbrando, em um futuro não muito distante, começar a sentir os efeitos da guerra tarifária com os Estados Unidos. E é assim que vemos por toda parte do mundo.
A burguesia mundial, os capitalistas, teme a direita nos governos, como é o caso dos de Trump ou de Bolsonaro, mas teme mais a mobilização das massas, sendo os primeiros uma expressão do fracasso político do regime e de seus representantes tradicionais. Ao contrário disso, a mobilização das massas por suas reivindicações e suas bandeiras é a expressão dos ataques do capital a suas conquistas e é o cenário mais favorável para construir uma alternativa independente dos partidos do regime e de suas instituições, entre outros.
Insistimos que os tribunos revolucionários que cheguem ao parlamento devem não só expressar o sentimento de repúdio que as massas manifestam nas ruas, mas revelar o caráter de classe de cada uma das instituições capitalistas.
Hoje nos encontramos em um impasse na situação política na Argentina, mas a mesma não durará muito tempo. Os trabalhadores aprendem com seus corpos e suas cabeças, aprendem com suas derrotas. Mas tudo indica, como ocorre no resto do mundo, que estamos presenciando um aprofundamento da luta de classes, em uma possível edição de outro 2001 na Argentina, em um futuro não muito distante. Trata-se, então, de que a história não se repita desta vez da mesma maneira que em 2001 e não tropeçemos nos mesmos obstáculos daquela façanha revolucionária e, sim, coloquemos como prioridade a construção do Partido dos trabalhadores que nós de baixo tanto precisamos e que possibilite a construção de um Governo dos Trabalhadores.
Mãos à obra!
Artigo publicado na página El Militante, da seção argentina da Corrente Marxista Internacional Corriente Socialista Militante, sob o título “No es crisis neoliberal, es crisis capitalista. El Único camino: Revolución Socialista”, publicado em 18 de dezembro de 2018.
Tradução de Nathan Belcavello de Oliveira