“Não olhe para cima… e nem para os lados”

Este artigo não é uma crítica ao filme em si, mas busca abrir uma discussão com aqueles que assistiram ao filme sobre a realidade atual e suas perspectivas a partir do marxismo.

Alerta de Spoilers: Se você não gosta de receber spoilers de filmes que ainda não viu, sugerimos que leia este artigo apenas depois de ter assistido ao filme “Não olhe para cima”, de Adam McKay, em cartaz na Netflix.

A sátira política “Não Olhe para Cima” (Don’t Look Up), escrita e dirigida por Adam McKay e estrelada por Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Cate Blanchett, Rob Morgan, Jonah Hill dentre outros, estreou há alguns dias no serviço de streaming Netflix e causou uma certa comoção entre os espectadores brasileiros.

Não é para menos. Embora o filme satirize figuras da política americana, é inevitável traçar paralelos com seus correlatos brasileiros. Quando o chefe de gabinete da presidência dos EUA se revela como sendo ao mesmo tempo o filho da presidente, não há como não identificá-lo imediatamente com o filho zero três do presidente do Brasil, Carlos Bolsonaro, que assessora seu pai no tocante às redes sociais. A presidente dos EUA, interpretada por Meryl Streep, é claramente uma caricatura de uma mescla de Hillary Clinton e Donald Trump, mas com seu servilismo extremo aos seus doadores de campanha, poderia muito bem representar Bolsonaro também. Aquela cena em que a astrônoma Kate Dibiasky, interpretada por Jennifer Lawrence, se exalta em um programa de TV por conta das tentativas dos apresentadores de fazerem piada com a tragédia em curso é praticamente uma reconstituição da atuação da cientista Natalia Pasternak no Jornal da Cultura há um ano (veja abaixo).

O filme retrata de maneira genial a decadência intelectual e moral da classe dominante atual e o negacionismo científico que predomina em setores desta. No enredo, o governo dos EUA só se propõe a agir para tentar conter a ameaça que vem do espaço quando a equipe da mandatária considera isso eleitoralmente conveniente. E, não obstante, fazem os foguetes com ogivas nucleares dar meia volta quando o CEO de uma megacorporação assim exige, pois quer ter a oportunidade de explorar economicamente os minérios que o cometa traz em seu ventre. Como se pouco importasse a ameaça da iminente extinção da vida no planeta Terra, representantes do governo e da burguesia americana ficam eufóricos em saber que o cometa pode dar-lhes mais de US$ 100 trilhões em minérios. Aqui a sátira vai no cerne do que é o capitalismo hoje: para ampliar seu capital, os capitalistas estão dispostos a arriscar toda a vida no planeta.

E, no filme, é literalmente ouro caindo do céu! O cometa chega como um deus ex machina para salvar o sistema da crise mundial em que se encontra – pelo menos é assim que os personagens que representam os interesses da classe capitalista veem a situação. E, mesmo quando a história é vazada e seus planos se tornam conhecidos do público em geral, eles buscam convencer as pessoas de que provocar uma espécie de queda controlada do cometa na Terra é melhor do que destruí-lo ou desviá-lo, pois o enorme capital que ele traria em minérios levaria à geração de empregos. E, de maneira muito plausível, muitos trabalhadores e pessoas comuns, que não enxergam uma perspectiva de mudança, de saída do atual sistema, apoiam a ideia. Para muitos, parece valer o risco. Afinal, continuar do jeito que está para quem precisa trabalhar em 2 ou 3 empregos para sobreviver, é pior do que um evento de extinção global. De certa forma, é a contradição dos muitos apoiadores de Trump ou Bolsonaro que baseiam seu apoio num genuíno sentimento antissistema.

Também é retratada de maneira fidedigna no filme (embora, muito provavelmente, inconsciente) a impotência da pequeno-burguesia, em particular dos liberais progressistas – e podemos estender aos reformistas de maneira geral. Os personagens interpretados por Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence e Rob Morgan desempenham um papel patético no enredo. Eles tentam combater o negacionismo científico e a lógica do “lucro acima da vida” apelando ao governo dos EUA e depois à imprensa capitalista americana. O astrônomo interpretado por Leonardo DiCaprio fica batendo boca com internautas em chats das redes sociais. Depois, quando o cometa se torna visível a olho nu no céu noturno, ele e a astrônoma Kate criam uma campanha “Olhe para cima”, com camisetas, adesivos, broches. Seu objetivo é convencer os donos do poder ou obrigá-los pela pressão da chamada “opinião pública” a mudar de postura. São derrotados pela contracampanha “Não olhe para cima” e, no final, terminam de mãos dadas em volta de uma mesa, orando para um deus no qual não acreditam e buscando conversar sobre questões triviais enquanto aguardam o impacto, assim como os músicos seguiam tocando enquanto o Titanic afundava. Antes de serem pulverizados pela onda de choque, ainda trocam algumas palavras: “Pelo menos nós tentamos.” Tentaram?! É o retrato acabado da impotência dessa classe!

A classe pequeno-burguesa não é capaz de jogar um papel independente na história. Ela sempre está à mercê das classes protagonistas da luta histórica: a burguesia e o proletariado. Claro que, na maior parte do tempo, a pequena-burguesia segue a reboque da classe dominante. É só nos momentos de agudização da luta de classes, de crises revolucionárias, que importantes setores da pequena-burguesia se deslocam em apoio ao proletariado. Mas, mesmo assim, vão a reboque deste. Indivíduos pequeno-burgueses podem jogar um papel importante e até decisivo. Mas a pequena-burguesia enquanto classe é sempre impotente.

O filme apresenta uma perspectiva pequeno-burguesa. Por isso, ignora qualquer possibilidade de iniciativa das massas proletárias e conduz os espectadores ao beco sem saída de, ao final, torcer para que o cometa acabe mesmo com a humanidade! Afinal, se a humanidade está representada por esses indivíduos desprezíveis da classe dominante e por esses aparentemente lúcidos, mas completamente impotentes da pequena-burguesia, o que há para ser salvo?

Há milhões, bilhões de pessoas que não estão retratadas no filme e que numa eventual situação como essa, muito provavelmente irromperiam no cenário da luta central. Não bastava “olhar para cima” e tomar consciência de que o cometa era real. Era preciso fazer algo diante disso. Olhar para os lados e, braços dados, ver em seus irmãos oprimidos a possibilidade da luta coletiva para tomar as rédeas da sociedade em suas mãos e tomar a iniciativa necessária.

Há apenas pouco mais de um ano, vimos como o movimento de protesto pela morte de George Floyd obrigou Trump a se esconder no bunker da Casa Branca e delegacias e viaturas policiais foram incendiadas por multidões em revolta nas ruas de todo o país. Um pouco antes disso, o governo do Líbano caiu depois de ameaçar cobrar uma tarifa para mensagens de whatsapp. Do Chile a Hong Kong, passando pelo Sudão, Equador, Catalunha, Argélia, Colômbia, Haiti e muitos outros países, nos últimos 30 meses vimos as massas irromperem nas ruas com uma força impressionante.

Se estivéssemos diante da iminente queda de um cometa, onde a vida de todos seria ceifada em algumas semanas e aqueles que controlam a tecnologia desenvolvida por toda a humanidade que seria capaz de impedir isso estivessem se recusando a colocá-la a serviço da salvação do planeta, um país atrás do outro seria varrido por revoltas insurrecionais e haveria a possibilidade de que o proletariado americano tomasse em suas próprias mãos o controle das instalações da NASA e de outras empresas de tecnologia aeroespacial, bem como o proletariado da Rússia, da China e de outros países poderia fazer o mesmo.

Mas isso nem é cogitado no filme. No máximo retratam algumas depredações localizadas ou saques a supermercados, diante do relativo caos que a situação de tragédia iminente traz, mas nada que chegasse próximo do povo em revolta tomar o controle de qualquer coisa, ou mesmo os funcionários da NASA ou de qualquer empresa por si só tomarem iniciativa semelhante. É a perspectiva pequeno-burguesa de quem acabou de perder as ilusões que tinha nos de cima, mas ainda não conseguiu se desprender de seu preconceito de classe para confiar nos de baixo.

Para nossa sorte, embora os representantes da classe dominante no mundo real sejam mais asquerosos do que qualquer roteirista de Hollywood possa ousar imaginar, a classe trabalhadora mundial é capaz de lutar como nunca Hollywood ousará retratar. Por isso, diante de cometas, mudanças climáticas, pandemias, fome, miséria, guerras e exploração, temos ainda muito mais chances do que os pobres personagens interpretados pelos atores e atrizes deste filme.