“A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” (Karl Marx).
A morte de um voluntário dos testes da vacina CoronaVac, que está sendo desenvolvida em uma parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac, foi o instrumento de uma nova disputa política entre frações da burguesia brasileira na última semana.
De um lado, a diretoria do Instituto Butantan, sob a direção do governador de São Paulo, João Doria (PSDB). De outro, a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sob comando de Jair Messias Bolsonaro (sem partido), presidente da República.
Utilizando-se de uma verborragia travestida de argumentos científicos, as diretorias de ambas as instituições comportam-se como membros de verdadeiras quadrilhas. Elas evidenciam que as milhares de vidas que já foram – e ainda serão – ceifadas pela Covid-19 pouco importam para a burguesia e seus representantes.
Bolsonaro, em mais uma demonstração de seu desprezo à vida humana, conseguiu comemorar os desdobramentos da morte do voluntário declarando em seu Facebook: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
Para entender o papel de todos os atores em cena, é preciso retomar alguns fatos. No dia 29 de outubro, a Polícia Militar de São Paulo registrou um boletim de ocorrência relatando que policiais foram chamados pelo rádio para atender a uma “ocorrência de encontro de cadáver“. No local, encontraram o corpo de um homem de 32 anos (um dos voluntários dos testes) no chão do banheiro e, perto dele, uma seringa e ampolas de remédio.
No dia 30 de outubro, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, que já havia sido notificado da morte, informou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e o departamento de farmacovigilância do Instituto Butantan. Uma semana depois (6/11), a farmacovigilância do Butantan comunicou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A celeuma teve início no dia 9, quando a Anvisa solicitou informações sobre um “evento adverso grave” do Butantan e o instituto respondeu que já havia informado a agência reguladora – de acordo com a Anvisa, uma falha na comunicação impediu o recebimento da informação. No fim da noite do mesmo dia, a Anvisa suspendeu os estudos clínicos da vacina argumentando um “evento adverso grave” e tornou pública a decisão.
Por mais que a Anvisa tenha seguido o protocolo – qualquer “evento adverso grave” na fase três de uma vacina em processo de pesquisa deve resultar em suspensão até que se compreenda o que ocorreu –, é evidente o uso político da instituição. Bastava aguardar o laudo do IML para a Anvisa saber se a morte teve relação com a vacina ou não. Além disso, poderia dialogar melhor com o Butantan para coletar mais informações. Entretanto, sabemos que não era esse o objetivo.
Bolsonaro já declarou que não comprará uma vacina chinesa e está combatendo a obrigatoriedade da vacinação na população. Sabemos que essa é uma resposta do presidente à sua base, que desconfia não só de uma vacina vinda da China, mas das vacinas em geral. Mas o que não sabemos é quais outros grupos empresariais que desenvolvem vacinas estão negociando uma fatia do mercado brasileiro.
A suspensão da pesquisa foi o instrumento do governo para desmoralizar e minar qualquer confiança na vacina chinesa. O diretor-geral da Anvisa, o contra-almirante da Marinha Antônio Barra Torres, estava junto de Bolsonaro nas manifestações durante a pandemia contra o STF e ignorava as mais simples indicações científicas, como o uso de máscara. Hipocritamente, agora está imbuído de todos os argumentos científicos para justificar suas ações. Do outro lado dessa queda de braço, encontra-se o pretenso candidato a presidente do Brasil em 2022, João Doria. Desde o início da pandemia, o antes “Bolsodoria” buscou se distanciar do presidente da República e de suas declarações polêmicas, que ignoravam os impactos da pandemia no país em detrimento da “defesa da economia”.
Doria tenta criar a imagem do político sensato que se baseia na ciência, ainda que a ignore homericamente no estado de São Paulo. A suspensão da pesquisa da CoronaVac imposta pela Anvisa é conveniente politicamente para ele e o ajuda no processo de construção de seu nome como uma opção da burguesia para substituir Bolsonaro.
Há um jogo, inclusive, de grande parte da imprensa burguesa – principalmente da Rede Globo –, que “discretamente” está ao lado de Doria e para isso questiona a todo momento o papel “intransigente” da Anvisa e o uso “político” de Bolsonaro. O governo Bolsonaro ainda preocupa a classe dominante pela sua demora em concluir os ataques aos trabalhadores e suas conquistas. Assim como pela capacidade do presidente de provocar a ira da população.
Esses são elementos, como explicou Lenin, que caracterizam a transformação de uma situação pré-revolucionária em revolucionária. Os de cima não conseguem governar como antes e se dividem. Nessa briga, cada um se esconde em jargões técnicos e uma aparência de cientista, quando na verdade o que ocorre é uma luta política.
O discurso de que não se pode politizar a vacina, a direção da Anvisa e do Butantan aparece publicamente como realmente é: uma fraude total.
O Brasil e o mundo
O mundo acaba de assistir à derrota de Donald Trump. Joe Biden, eleito seu sucessor, foi o candidato preferido da maioria da burguesia americana, já que o atual presidente dos EUA não se mostrou capaz de barrar a insurreição das massas, que despertaram após o assassinato de George Floyd pela polícia. Essa é uma aposta mais segura, em alguém mais capaz de manter o melhor cenário possível para que a classe dominante possa reprimir e continuar a explorar a classe trabalhadora.
Uma grande parte dos trabalhadores depositou seu voto em Biden, é fato. No entanto, esse é um voto contra Trump. Além disso, é necessário levar em conta a elevação do nível de consciência das massas, que estão tirando conclusões revolucionárias do processo. Vimos como no Chile e na Bolívia, mesmo que num primeiro momento por vias institucionais, os trabalhadores estão demonstrando sua disposição de combate.
No Brasil, as greves que extrapolaram as direções, como a que aconteceu na Renault; os panelaços e manifestações de rua em meio à pandemia, que adotaram a palavra de ordem “Fora Bolsonaro”; a revolta contra a Justiça burguesa, como no recente caso de Mari Ferrer, são sinais da mesma disposição de luta.
O governo Bolsonaro e a burguesia podem contar com as direções traidoras para frear o movimento, mas isso é uma questão de tempo.
Em meio a tudo isso, no próximo domingo os brasileiros irão às urnas na eleição mais desacreditada da história da “democracia” brasileira. Na segunda-feira (16/11) tudo continuará como antes e a situação é insuportável para as massas.
Não há mal menor entre Doria e Bolsonaro, ambos utilizam a vacina e as vítimas da maior pandemia da história para seus próprios interesses. Bolsonaro despreza a vida dos trabalhadores publicamente, alegando que um dia “todos nós vamos morrer” e que precisamos “deixar de ser um país de maricas”.
Doria usa palavras mais suaves, mas na prática não garantiu o direito à quarentena aos trabalhadores das empresas de serviços não essenciais, reabriu o comércio com a pandemia ainda acontecendo, manteve os trabalhadores técnicos-administrativos das escolas em serviço presencial, tentou reabrir as escolas etc. Ou seja, ele despreza os trabalhadores tanto quanto Bolsonaro.
A tarefa dos marxistas é explicar tudo o que está acontecendo, expor a burguesia, as direções traidoras, organizar os trabalhadores e confiar na única classe que pode transformar a realidade no Brasil e no mundo. Se há uma expressão que podemos nos utilizar nesse show de horrores (parafraseando Bolsonaro) é “quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”, mas na mão dos trabalhadores. Assim colocaremos abaixo esse sistema.
Nem Biden, nem Trump, nem Doria, nem Bolsonaro são opções para a classe trabalhadora. É preciso organização e preparar o combate para derrubar o governo Bolsonaro e constituir um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais.