Considerando que os primeiros casos surgiram na cidade chinesa de Wuhan em dezembro de 2019, estamos no décimo mês da evolução da pandemia da Covid-19. A contagem oficial de óbitos, globalmente, superou 970.000 e deve ultrapassar um milhão nos próximos dias. Quase todas essas mortes ocorreram nos últimos seis meses, visto que em 15 de março o total era de 6.500, metade disso na China, onde o número de mortes chegou a 4.634 em 18 de maio, e desde então lá não foram reportadas novas mortes pela Covid-19.
Nesses últimos seis meses, embora o número diário de óbitos tenha sido mais alto em abril, quando em vários dias ficou acima de oito mil (refletindo principalmente a fase inicial de total descontrole da infecção em Nova York, na Itália, Espanha e Reino Unido), desde então esse número geralmente tem ficado entre cinco e seis mil. O contágio persiste em nível bastante elevado em muitos países, como os Estados Unidos, Índia, Brasil, México, Colômbia, Irã etc. Permanecendo nesse patamar, o número oficial de vítimas fatais da pandemia, nos próximos seis meses, deve dobrar.
Mas esse patamar pode ser ultrapassado porque a flexibilização das medidas de controle em muitos países (Espanha, França, Argentina, Israel, Austrália etc.), está abrindo o caminho para uma nova expansão do contágio. Na Espanha, o número diário oficial de mortes voltou a superar duas centenas. Em Madri, ocorreram protestos, que alguns jornais caracterizaram como uma rebelião contra as novas medidas de quarentena, implementadas nos bairros mais atingidos pela nova onda de infecções pelo vírus.
Mas as declarações dos manifestantes expressam outra coisa. Um deles disse o seguinte:
“São medidas que chegam mal e tarde, como sempre, e que não são suficientes. Se tivessem sido tomadas antes, acho que estaríamos melhor em Madri“.
Na opinião de outro morador do bairro,
“se as pessoas continuarem a pegar o metrô para o trabalho apertadas como se estivessem em uma lata de sardinha, o contágio não vai parar”.
Outro manifestante declarou:
“O que deveriam ter feito era aumentar os cuidados com a saúde e aumentar o transporte público. A saúde tem sido sobrecarregada durante todo o verão e ninguém foi contratado”.
Parte da mídia tenta usar o cansaço, depois de longos meses de ansiedade com o isolamento social e a crise econômica, para propagar a ideia de que a quarentena é inútil e só faz agravar o desemprego e a miséria. A quarentena seria um remédio pior do que a doença, e seria melhor deixar a pandemia seguir o seu curso “natural”. Mas aqueles manifestantes estão dizendo que a evolução da pandemia não é determinada pelas forças da natureza. Eles protestam porque o “remédio pior do que a doença” é um sistema social incapaz de organizar as ações necessárias, e usar os recursos disponíveis para controlar a pandemia.
É o capitalismo que faz da quarentena um remédio amargo e ineficiente para a grande maioria. Não é a quarentena que produz o desemprego e a miséria, nem é a quarentena por si mesma que agrava a crise econômica, mas sim a submissão da sociedade aos interesses privados do capital. As evidências atuais, analisadas pelos epidemiologistas, indicam que o uso generalizado de máscaras, e outras medidas de proteção, reduzem o contágio, mas a quarentena é essencial, e quando implementada rigorosamente, é a única medida eficaz para reverter a expansão explosiva do contágio.
A quarentena, ao deter o aumento exponencial de novos casos da doença, é essencial igualmente porque cria as condições que tornam possível utilizar o teste (RT-PCR) para detectar não somente as infecções sintomáticas que precisam de tratamento nos hospitais, mas também para detectar e providenciar o isolamento dos assintomáticos, ou pouco sintomáticos, com isso reduzindo a transmissão ao ponto em que é possível utilizar novas estratégias de controle, inclusive com níveis de quarentena menos rigorosos. Vários epidemiologistas elaboraram estratégias, com o uso massivo do teste em condições apropriadas para o isolamento dos casos positivos, que indicam uma alta probabilidade até mesmo de eliminação do vírus na população.
Mas isso pressupõe planejamento, um conjunto de ações coordenadas, e a real mobilização dos recursos na escala necessária e pelo tempo necessário, ou seja, pressupõe um sistema de uso integrado e racional de uma totalidade de recursos, o que necessariamente subverte a lógica fragmentada da economia capitalista. Por essa razão, a quarentena capitalista é, contraditoriamente, uma guerra permanente contra a própria quarentena. Um dos componentes dessa guerra é a desinformação sobre o curso real da pandemia, uma questão importante com a qual vamos concluir esse artigo.
Para avaliar o curso real da pandemia, o número de óbitos é bem mais preciso do que a contagem do total de casos, sintomáticos ou não, porque a quantidade de exames realizados, na maioria dos países, não foi suficiente nem mesmo para testar as pessoas sintomáticas e os contatos dos casos positivos. Porém, como será explicado, mesmo a subnotificação de óbitos tem acontecido em ampla escala, inclusive nos países mais ricos, e os dados expostos adiante mostram que os números oficiais ocultam uma grande parte do que realmente está acontecendo.
A subnotificação de óbitos pode ser avaliada pela diferença entre o “excesso de mortes” (ou seja, o número em 2020 que excede, em cada mês, a média de mortes nos anos anteriores à pandemia) e o número de mortes pela Covid-19 que são oficialmente reportados. Digamos que no país “X” a média de óbitos entre abril e junho nos anos anteriores tenha sido de 20.000. Se nesses mesmos meses em 2020 foram registrados um total de 30.000 óbitos, temos um “excesso de mortes” de 10.000. Se nesse período foram notificados apenas 6.000 óbitos por Covid-19, temos uma provável subnotificação de 4.000, caso não haja outra explicação razoável para essa diferença.
Existem muitos países, como a Nigéria, a Indonésia e a Índia, nos quais essa diferença não pode ser calculada com alguma precisão (exceto em algumas cidades) simplesmente porque muitos óbitos não são registrados em cartório. Na Índia, 80% das pessoas morrem em casa, e somente uma em quatro mortes são registradas em cartório. Uma estimativa de um grupo de médicos do Índia, Covid Apex Research Team, por comparação com a subnotificação de casos de tuberculose, considera que o número real de mortes por Covid-19 naquele país é pelo menos cinco vezes maior do que a contagem oficial (a qual ultrapassou 90.000 há poucos dias). Eles acreditam que essa estimativa seja válida para vários outros países da Ásia e da África.
Os dados que vamos apresentar a seguir, que estão resumidos em alguns links listados no final desse artigo, incluem apenas alguns países entre aqueles nos quais é possível encontrar avaliações quantitativas do “excesso de mortes”, mas servem para formarmos uma ideia mais clara do curso real da pandemia.
No Equador, de março até julho, foram reportados 5.702 casos de óbitos pela pandemia, mas o “excesso de mortes” nesse período foi de 28.100, com uma provável subnotificação de 22.400 casos, ou seja, apenas uma em cada cinco mortes da pandemia foi reportada. No Peru, de março até agosto, foram reportados 19.021 casos de óbitos pela pandemia, mas o “excesso de mortes” foi de 77.300, com uma provável subnotificação de 58.300 casos, de modo que só uma em quatro mortes foi notificada. Especificamente na Cidade do México, de março até agosto, esses números são, respectivamente, 8.304, 31.200 e 22.900, ou seja, o número real provavelmente é 3,7 vezes maior do que a contagem oficial.
No Brasil, um estudo mostrou que desde o início da pandemia até 6 de junho, quando já tinham sido notificadas 35.957 mortes pela Covid-19, o “excesso de mortes” foi de 62.490, com uma provável subnotificação de 26.533 casos. Ou seja, o número real de mortes provavelmente foi 1,7 vezes maior do que o reportado oficialmente. E se aplicarmos essa mesma proporção hoje, o número real de mortes não seria 137.000 (que é o número oficial em 21 de setembro), mas algo próximo de 230.000. Em Manaus, os dados indicam que o “excesso de mortes” foi cinco vezes superior ao número oficial de mortes pela Covid-19.
Nos Estados Unidos, entre 1 de março e 16 de agosto, período em que foram notificadas oficialmente 169.000 mortes pela Covid-19, o “excesso de mortes” foi de 244.000, com uma provável subnotificação de 75.000 casos (ou seja, o número real seria 1,4 vezes maior do que o oficialmente reportado, o que indica que atualmente o número real seria de 280.000 óbitos e não 200.000). Desde agosto, a subnotificação nos EUA, segundo denúncias amplamente divulgadas, está se agravando porque o governo Trump alterou de tal modo as regras pelas quais os hospitais devem comunicar os óbitos da pandemia, que o próprio órgão central (CDC, Center of Disease Control), que é responsável por coordenar as ações a nível federal, não consegue ter acesso direto às informações.
No Reino Unido, até 28 de agosto, a contagem oficial reconhecia 41.486 mortes, o excesso de mortes era de 61.700, dando uma subnotificação total de 20.314 mortes, de maneira que o número real seria 1,5 vezes maior do que a contagem oficial. Na Holanda, até 23 de agosto, o número real seria 1,4 vezes maior do que a contagem oficial. Na Espanha, até 6 de setembro, seria 1,7 vezes maior. Na Itália, até o final de junho, seria 1,25 vezes maior. Na Áustria, até 26 de agosto, seria 1,6 vezes maior. Em Portugal, até 19 de julho, seria, 1,7 vezes maior. Na França, Alemanha, Suíça, Irlanda, Dinamarca, Bélgica e Noruega, o excesso de mortes não foi significativamente superior (e em alguns casos foi inferior) à contagem oficial de óbitos por Covid-19.
Além das mortes, como acontece com muitas outras doenças infecciosas, os estudos clínicos estão revelando que uma porcentagem significativa (que ainda desconhecemos exatamente) das pessoas que sobrevivem às formas graves da COVID-19 permanecem com sequelas, principalmente respiratórias e neurológicas. Esse é o curso real da pandemia.
Fontes:
https://thewire.in/health/watch-actual-covid-19-deaths-karan-thapar-hemant-shewade-giridara-gopal
https://www.economist.com/graphic-detail/2020/07/15/tracking-covid-19-excess-deaths-across-countries