O Estado brasileiro e a Constituição são realmente laicos?

No dia 21 de junho, Ciro Gomes (PDT) publicou em suas redes sociais um vídeo sobre “política e religião”, em que fala sobre como os princípios cristãos são o caminho para tirar o Brasil da crise. Trata-se de uma tentativa eleitoreira de conquistar a simpatia de eleitores cristãos, em particular dos evangélicos, visando 2022. Ciro já falou abertamente que quer os eleitores que em 2018 deram voto de confiança a Bolsonaro. De um lado, é válido dizer que boa parte dos votos em Bolsonaro foram pelo discurso “antissistema”, por mais falso que já fosse claro à época, afinal, em 30 anos de política, Bolsonaro já era a expressão mais podre que esse sistema podia oferecer; isso foi catastroficamente comprovado em 2 anos e meio de presidência. Ciro também tenta parecer radical na forma de seu discurso de terceira via, mas não deixa de ser um político burguês de um partido burguês, o PDT, que apela a valores reacionários para mostrar saídas dentro do sistema, tentando se firmar como alternativa para a burguesia nas eleições de 2022.

São vários elementos que poderíamos citar, mas esse texto não é uma análise do programa do PDT ou das falas do Ciro, que já sabemos a quem serve. Trataremos especificamente da questão levantada no vídeo e, principalmente, da reação de algumas figuras e direções da esquerda.

A legenda que acompanha o vídeo começa dizendo que “Somos um Estado laico, mas a Bíblia e a Constituição não são livros conflitantes”. Afirma isso argumentando que os princípios da moralidade cristã não ofendem a laicidade do Estado. Pelo contrário, alavancam a humanidade para um desenvolvimento que pode tirar o Brasil da crise que atravessa. A afirmação repercutiu bastante e muitos apontaram que sim, são conflitantes, porque a Constituição Federal defende a laicidade como princípio fundamental e em muitos pontos é incompatível com a bíblia.

Em parte, Ciro está certo. Realmente a Constituição Federal e a bíblia não se contradizem, mas não pelos motivos que aponta. A laicidade da Constituição Federal de 1988 é da boca pra fora. Antes de mais nada, não há menção expressa que o Estado é laico (o termo sequer aparece em nenhuma das mais de 200 páginas), ficando a laicidade presente apenas nas entrelinhas, mas há menção expressa, logo no preâmbulo, no primeiro parágrafo do documento, de que foi promulgada, “sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.

O Estado em que vivemos seria supostamente laico e neutro apenas porque a Constituição assim determina. Sabemos que não é assim na prática, mas há de se reafirmar que não é assim nem na teoria. O artigo 226, por exemplo, assim determina o que é (e o que não é) a entidade familiar:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Isso significa taxativamente que, para a “Constituição Cidadã” e toda sua laicidade, famílias homoafetivas não são reconhecidas, não tendo proteção especial do Estado. É verdade que decisões recentes do STF têm estendido o entendimento deste artigo, mas a natureza e as origens desse Estado e sua carta reguladora mostram que, definitivamente, não são laicos.

Na prática, é mil vezes pior. Os crucifixos em órgãos públicos é o menor dos problemas, mas merecem ser citados. Porém, a relação entre igrejas e Estado não se resume à bancada obscurantista que bloqueia os estudos sobre células tronco e medicamentos derivados da cannabis sativa, que trava a discussão sobre aborto legal e até direitos individuais de sexualidade. Mais do que isso: é através de grandes igrejas que muito dinheiro de tráfico de drogas e armas, milícias e desvios de dinheiro público são lavados, dinheiro que é revertido a concessões de TV e campanhas eleitorais de criminosos como o bispo Marcelo Crivella, a família Bolsonaro e outros mafiosos que exploram financeiramente a fé das pessoas. Isso tudo com isenção de impostos, já que o Estado é laico e não pode interferir nos negócios dessa parte da burguesia. Nesse contexto, como diz a música do Racionais, a laicidade do Estado se expressa em deus como uma nota de cem.

Outro ponto que Ciro comenta é que a laicidade do Estado “não nos deve levar à negação de uma realidade histórica com consequências sempre atuais: O Brasil se formou no berço do cristianismo”. Ciro novamente falou a verdade. Mas falou isso com saudosismo, como um ponto positivo. A história a que ele se refere só é digna de honrarias a quem esteve do lado assassino da história. Longe de qualquer conceito de paz, amor e caridade, as missões para imposição do cristianismo no Brasil se deram através de chacinas, esquartejamento, estupro, roubo de terras, incêndio de comunidades inteiras, coisas que realmente ainda acontecem pelas mãos de pecuaristas, madeireiros, garimpeiros e latifundiários. São os que hoje compõem a bancada do boi e da bala, aliados aos da bancada da bíblia. Nos países vizinhos, a Espanha também impôs a “boa nova” sob pólvora e sangue, dizimando civilizações inteiras, como bem sabemos. No Brasil, o reino português. É um passado com consequências atuais que precisam, na verdade, ser superadas e não relembradas com saudosismo. Esse “berço do cristianismo” foi balançado por mãos ensanguentadas e muitos ainda matam segurando a mesma bíblia;

O vídeo continua com Ciro falando de “dois aspectos da mensagem cristã que devem falar fundo no coração de qualquer brasileiro”. A “superação”, a “primazia da solidariedade” e a expressão do amor que ele menciona existem quando uma categoria se ajuda em uma situação de demissão em massa arrecadando alimentos de forma emergencial. Ou quando se rompe uma barragem de uma mineradora e os moradores se unem para procurar sobreviventes ou pelo menos ter o direito de velar seus mortos. Esse amor existe entre os iguais. Não existe quando se aprova uma reforma trabalhista e uma corporação como a Estácio de Sá demite 1,2 mil professores para recontratar alguns em regime precarizado, ou quando um aplicativo como a Uber suga 20 horas (ou mais) de trabalho ininterruptas sem arcar com direitos trabalhistas… ou quando uma prefeitura demite 1.300 eventuais da noite para o dia, negando verbas rescisórias, como aconteceu em Rio Claro. Entre esses desiguais, existe imposição de interesses. Quando protestam, se expressa ódio. Atiram nos olhos, para cegar. Jogam bomba, prendem, assassinam. É isso que precisa ser de fato superado.

Não é possível alcançar esse amor que Ciro romantiza enquanto as pessoas forem divididas por grau de importância. Enquanto um trabalhador médio, que ganha um salário mínimo, tem o hospital público sucateado para que um acionista enriqueça bilhões com o dinheiro público que deveria ir aos hospitais e escolas. Isso é o antagonismo de classes e não existe nem um pouco de amor nisso. São relações sociais assassinas, de parasitismo, que determinam como as coisas funcionam no capitalismo.

A esquerda que sai em defesa do Estado, da Constituição e de suas instituições, inclusive as de repressão, como se fossem ferramentas neutras da sociedade, tem uma grave falha de compreensão desses elementos. Não vivemos em um Estado neutro, mas em um Estado burguês. Esse é o modelo de Estado predominante no modo de produção capitalista desde as revoluções burguesas. Um Estado burguês é o que tem como princípio fundamental a manutenção do regime de propriedade privada dos meios de produção, sugando recursos da classe trabalhadora e despejando gota por gota a acionistas através da dívida pública. Não é correto entendê-lo como uma estrutura que protege os interesses e liberdades de todos igualmente. Basta verificar quem morre nas filas dos hospitais, quem sofre com subnutrição e quem está mais exposto à bala da polícia. Essa balança pesa de um lado, e esse lado é sempre o da classe trabalhadora.

Essa compreensão equivocada do Estado é fruto direto da ausência da perspectiva de classes sobre como funciona a sociedade. É a mesma esquerda que em 2019 lançou nota conjunta afirmando que as pessoas nas ruas não deveriam falar “Fora Bolsonaro”, afinal ofendia a democracia burguesa, pois Bolsonaro teria sido “eleito democraticamente”. Alguns até defenderam a Lei da Ficha Limpa e a Lava Jato como saídas para a classe trabalhadora. Não são erros pequenos, tampouco esquecíveis. Ficam marcados na história como tiro nos pés da classe que já vinha se levantando em protestos contra o sistema em que vivem. Quanto às direções, não são falhas por fragilidade teórica, mas por decisões conscientes contra a própria classe. Quanto às bases, cabe abrir o diálogo convidando a aprofundar o tema, como se propõe esse artigo.

Em 1918, quando publicou Estado e Revolução, Lenin não caracterizou o Estado como “produto do antagonismo inconciliável das classes” partindo de elaborações da própria cabeça. Assim funcionava o Estado em 1918 e ainda hoje funciona, em 2021:

“É um produto da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entre devorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da “ordem”. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado”.“ (…) Para manter um poder público separado da sociedade e situado acima dela, são necessários os impostos e uma dívida pública.”

Nessa divisão inconciliável, Ciro quer ser o apaziguador. Usa a carta da religião como enxerto porque não é racionalmente explicável que esse tipo apodrecido de sociedade um dia seja justa e que aponte para um futuro melhor. Pelo menos não para a classe trabalhadora, ou seja, a maioria da população. Usar os princípios de nobreza do trabalho e da dignidade para dizer que há uma “terceira via”, uma saída nesse sistema, é fazer o mesmo uso da religião que vários outros fazem há séculos. “Trabalha e confia” pode ser traduzido como “sustente os parasitas do poder público e das finanças, doe até sua última gota de sangue e confie que a boa vontade deles lhe trarão dias melhores”. Dias melhores não virão assim. Não por eles e não pra nós. A superação que precisamos é a de superar esse sistema com todos os seus representantes. Ciro é um deles.

Para desmontar as ilusões nos candidatos da burguesia, no capitalismo, no Estado burguês e nas direções que, vestindo a camisa da classe trabalhadora, querem preservar o sistema e suas instituições, afirmando que seriam neutras e apenas são ocupadas por maus representantes, devemos combater esses discursos com elementos de classe. Há uma tarefa imediata para a classe trabalhadora que é derrubar já Bolsonaro. Os discursos que apontam para saídas em 2022 são tentativas de desviar o calor das ruas ao campo das instituições.

Bolsonaro, Ciro e tantos outros políticos, inclusive os que se dizem de esquerda, utilizam-se da fé religiosa das pessoas para seus fins eleitorais. Respeitamos a crença individual de jovens e trabalhadores; muitos são os que buscam na religião uma forma de suportar tanta dor e sofrimento gerados por este sistema. Para um governo dos trabalhadores, a religião deve ser uma questão privada. Um mundo novo, em que a felicidade seja a realidade cotidiana, em que a ciência e a cultura deem saltos e esteja disponível para todos, a necessidade de se agarrar em explicações místicas ou na crença de um paraíso após a morte irá definhar. A religião, utilizada pelas classes dominantes durante toda a história para promover e justificar guerras e exploração, também definhará.

Como consequência dessas contradições insanáveis do capitalismo, que Bolsonaro torna ainda mais evidentes pela incapacidade de contornar a crise, trabalhadores vêm protestando no Brasil, mesmo diante das limitações da pandemia. Os dias 29 de maio e 19 de junho são exemplos disso, e outros protestos ainda vão acontecer. Mas toda essa força pode encontrar um forte refluxo se depender dessas direções que fazem de tudo para tirar o caráter revolucionário das mobilizações. Até o momento, as manifestações têm acontecido apesar das direções reformistas. A saída que Ciro aponta não serve, assim como não servem as alternativas do próprio sistema a que as direções de esquerda se agarram. É por isso que convidamos a todos a participarem do Encontro Nacional Abaixo Bolsonaro, no dia 10 de julho, para discutirmos a situação e nos prepararmos para ir às ruas, lutando pela derrubada do governo e pela abertura de uma saída socialista e revolucionária no Brasil e no mundo.

Inscreva-se agora no Encontro Nacional de Luta!

Abaixo o Governo Bolsonaro! Por um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais!