“Homens e mulheres podem ser animais racionais, mas eles não são por natureza animais que raciocinam. O pensamento claro e cuidadoso requer um certo rigor; é uma habilidade e, como todas as habilidades, ele requer treino, prática e vigilância. Antes que possamos usar nossa razão devemos conhecer as armadilhas que esperam as mentes não preparadas. A maior parte das pessoas quer acreditar que as soluções para os problemas da sua vida e do mundo são simples em vez de complexas, querem ter seus preconceitos confirmados, querem sentir que que elas “pertencem” e outros não. Necessitam encontrar um inimigo que tenha a culpa de suas frustrações e fracassos.” – Robert J. Gula, Nonsense, Axios Press, 2018.
Há certas falácias de caráter editorial dirigidas a um público que possui uma educação escolar razoável, mas de base essencialmente enciclopédica que pouco incentivou o pensamento original e lógico. Para esse público, os argumentos são travestidos em falsas dicotomias, que omitem informações vitais. Elas são profissionalmente criadas por empresas de marketing contratadas por governos, empresas, bancos, federações e grupos de empresários. São bordões, frases curtas veiculadas na internet ou em vinhetas de horário nobre na TV aberta, para que o próprio povo também as repita e as imagine como algo bom para ele para o mundo. Tais campanhas publicitárias podem ter caráter comercial, financeiro, político e ideológico. Uma bela propaganda de um banco trata de convencer o público que ele quer mudar ou salvar o mundo e o lucro é algo secundário. A grande imprensa não pode noticiar que os grandes bancos (seus clientes) foram socorridos por meio de compra de papéis de dívida podres pelo Banco Central, que os juros de uma dívida pública não auditada continuam sendo religiosamente pagos. A ideia lançada ao público é que não há outra saída para salvar a economia senão a volta ao trabalho, mesmo com pandemia.
Um outro tipo de fonte de desinformação são notícias falsas, muitas criadas de forma criminosa e implementadas por ferramentas de inteligência de máquina nas redes sociais. Estas fornecem ao usuário somente aquilo que ele gosta de ler ou ver, usando feedbacks e dados de navegação e preferências que o usuário fornece em geral sem saber. Esse sistema tem levado ao surgimento de propriedades emergentes em redes sociais desconhecidas até pelos seus criadores, como o surgimento rápido de legiões de fanáticos que defendem e glorificam racismo, xenofobia, tortura e assassinatos em nome da vingança e justiça rápida.
Aqui não é necessário grande conhecimento de marketing. Basta produzir uma notícia, que pode ter formato cru e mal feito. É preciso também criar contas falsas em grandes números, automaticamente operadas por robôs virtuais. A sofisticação das mensagens também não é muito importante, pois as emoções em jogo aqui são as mais primitivas. O ódio canalizado a partir de frustrações e fracassos aqui encontra uma válvula de escape. Ela envolve a destruição de estruturas republicanas conquistadas, consolidadas e amadurecidas ao longo de muitas décadas: o estado de bem-estar social, as instituições e estruturas públicas de saúde, trabalho, previdência, ensino, pesquisa e cultura, além de ataques pessoais a intelectuais e cientistas. Alguns ministérios brasileiros se tornaram fontes de notícias falsas e centros de destruição. Descreveremos aqui somente quatro deles, juntamente com os seus ministros. Mostraremos como eles impactam negativamente nas ações para tentar amenizar a pandemia de Covid-19.
Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo
Sabemos todos que esse ministro não tem capacidade técnica para tratar de questões da diplomacia brasileira. Em seu tempo livre ele dedica-se a replicar e aplicar as ideias do seu guru terraplanista, o pseudoastrólogo Olavo (um caso em que o argumentum ad hominem pode ser aceito). Recentemente o ministro tem se mostrado preocupadíssimo com o que ele chama de “comunavírus”. Ele tentou ler o livro “Pandemia – Covid-19 e a reinvenção do comunismo”, de autoria de Slavoj Žižek, e não conseguiu entender nada. Em seu blog sugere que o próprio Žižek está planejando a volta do comunismo no mundo inteiro assim que a pandemia terminar. Araújo acredita que a pandemia de Covid-19 é, na verdade, uma conspiração comunista. Uma organização que estaria fomentando o comunismo mundial seria a Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo o ministro, “transferir poderes nacionais à OMS, sob o pretexto (jamais comprovado!) de que um organismo internacional centralizado é mais eficiente para lidar com os problemas do que os países agindo individualmente, é apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária”. A infantilidade do pensamento desse senhor seria inverossímil até para um filme de super-heróis.
Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Cesar Pontes
Seu desconhecimento sobre o que é ciência não é novidade. Isso ficou bem claro no dia em a assumiu e já tratamos desse tema em outro artigo. O ministro astronauta, que boa parte da população e mesmo alguns jornalistas acreditam ter ido mesmo à Lua, andava desaparecido há meses (em quarentena na Lua). Na página do MCTIC a aba designada “Agenda do Ministro” permanece vazia até o momento. No entanto, no dia 13 de abril, numa visita à UFMG ele surgiu com uma revelação bombástica: “o governo” estava testando um medicamento revolucionário que poderia curar a Covid-19, cujo nome ele não iria revelar, pois poderia causar uma corrida às farmácias.
Em entrevistas nos dias 15 e 17 ele afirmou que os testes clínicos iriam começar em 500 pacientes (que não estejam em estado grave), a serem concluídos em três semanas, de modo que na metade de maio o medicamento já poderia ser liberado pela Anvisa para ser usado em todo o país. Ele ainda afirmou que tinha muita esperança no sucesso, pois testes preliminares mostravam uma eficácia de 94% in vitro. Logo depois, órgãos de imprensa lançavam manchetes como “Governo vai testar em pacientes remédio com 94% de eficácia contra a Covid-19” (Uol).
Tal notícia foi recebida como um ato irresponsável pela comunidade de médicos infectologistas, uma vez que a eficácia de moléculas testadas in vitro é trivial e quase nunca se confirma em testes clínicos (com humanos). Na verdade, o remédio secreto de Pontes, como se descobriu rapidamente, é o vermífugo que tem como princípio ativo a nitazoxanida, vendido nas farmácias com o nome de Annita.
Tal droga, como todas que têm qualquer ação antiviral, tem sido testada sem sucesso até agora no mundo inteiro. O fabricante do medicamento, a empresa argentina Farmoquímica, declarou desconhecer essa “pesquisa” do MCTIC e disse conduzir uma pesquisa própria com Annita envolvendo cinco hospitais de São Paulo num ensaio clínico muito preliminar chamado “prova de conceito”, envolvendo 50 pacientes e que deverá ser concluído em junho.
A empresa afirmou ainda que não tem informação nenhuma sobre a eficiência do Annita para tratar Covid-19 e não recomenda seu uso para esse propósito. Devido à declaração do ministro astronauta, o medicamento agora passou a ter venda controlada nas farmácias. Mesmo que fosse uma droga promissora, esse tipo de anúncio prévio contraria normas éticas estabelecidas na área, além de dar falsas esperanças a um povo já desinformado sobre uma “cura” que já está quase pronta. A ingenuidade e o desconhecimento do processo científico por parte do ministro Pontes sempre nos surpreendem.
Ministro da Educação, Abraham Weintraub
Ministro modelo de Bolsonaro, que acha exageradas as medidas de governadores de afastamento social por conta da pandemia. Ele dá uma amostra de sua cultura com seus erros de português de todos os tipos, sendo mais famosos os ortográficos, como “imprecionante”, “paralização”, “suspenção, “incitaria”, “Cafta” etc. (lista interminável). Dificilmente ele passaria na prova de redação do Enem.
Ele também é criador de confusões com a China por piadas racistas, prejudicando comercialmente a própria agenda neoliberal que tanto defende. Em seu papel de destruidor da educação, o ministro Weintraub tem se destacado pelo ódio aos professores dos institutos e universidades federais. Logo ao assumir, em abril de 2019, ordenou um bloqueio de R$ 2,4 bilhões a essas instituições, comprometendo 30% das verbas discricionárias. Na ocasião ele mostrou publicamente que matemática também não é seu forte, quando tentou explicar os cortes das universidades e institutos federais usando barrinhas de chocolate (e errando). Em setembro e outubro de 2019, a verba retida foi liberada após intensos protestos em todo o Brasil. No entanto, o estrago já estava feito.
No MEC, além de ter causado uma enorme confusão na organização administrativa, que ficou por meses paralisada, promoveu um desastroso Enem, com erros de impressão na prova e erros na correção que prejudicaram milhares de estudantes. Em tom de deboche à UNE, que solicitou mudança no calendário do Enem de 2020, o ministro fez questão de frisar que o calendário de provas será mantido usando o lema “O Brasil não pode parar”, contrariando a decisão da Justiça Federal para suspender a prova.
Isso prejudica mais os estudantes da rede pública que têm menos condições de completar seus estudos à distância, sem falar nas incertezas associadas ao futuro da pandemia. Os danos que o ministro causou ao sistema de pós-graduação do Brasil, administrado pela Capes, representam um retrocesso de décadas, com o cancelamento de bolsas de pós-graduação, suspensão de programas de mestrado e doutorado, afetando linhas de pesquisa. Os recursos para bolsas de mestrado e doutorado concedidas pela Capes caíram de R$ 4,25 bilhões em 2019 para R$ 2,20 bilhões em 2020. Ele se declarou inimigo número um das Ciências Humanas por conta de sua “inutilidade”.
Ministro da Saúde, Nelson Teich
Anunciado como um grande administrador de saúde privada, esse é o ministro que está preocupado com a urgente “saída econômica” da pandemia. Em sua primeira entrevista coletiva, no dia 22 de abril, o ministro cometeu uma série de equívocos muito primários, dignos de um zero bem redondo se fosse uma apresentação de trabalho de 7ª série. Ele chegou a afirmar: “A gente hoje tem 43.500 casos do coronavírus no Brasil. Se a gente imaginar que a gente tem uma margem de erro grande, digamos que a gente tenha aí 100 vezes. É só um exemplo hipotético. A gente está falando em 4 milhões de pessoas. Nós hoje somos 212 milhões. Então, fora da Covid, temos 208 milhões de pessoas que continuam com as suas doenças e que têm que ter isso tratado”.
Deixando o linguajar logicamente desconexo de lado, o que será que ele quis dizer com isso? Será que é para não dar demasiada importância à pandemia pois temos que cuidar de outros 208 milhões de doentes? Além de só falar em termos genéricos, proferir frases sem conteúdo de informação e não especificar qualquer planejamento de ações do governo, os poucos dados numéricos que ele forneceu foram errados numa análise também errada. O ministro afirmou que no combate à pandemia no Brasil estava numa boa posição comparativamente aos outros países, olhando-se o número de mortos por milhão de habitantes: “8,17 no Brasil, 15 na Alemanha, 135 na Itália, 255 na Espanha, 9.229 no Reino Unido”.
Segundo o ministro, “nossos números são muito bons”. Em primeiro lugar, falar números bons em relação a mortes é uma estupidez quando vemos todos os dias as mortes em condições degradantes que ocorrem no Brasil causadas por Covid-19. Em segundo lugar, é um mistério a fonte desses números. Eles estão todos equivocados. Os dados corretos da lista acima para o dia 22 de abril, fornecidos pelos governos dos países e listados no worldometers.info são, respectivamente: 14, 64, 416, 463, 272. Em terceiro lugar, isso significa que estamos melhor que estes países no que se refere à pandemia? Claro que não! Em cada país a pandemia começou em dias diferentes. Sem entrar no mérito da validade de tais comparações, o mínimo que poderia ter sido feito seria usar algum critério como ponto de partida para cada país. Por exemplo, a partir do registro de cinquenta contágios (“It is not even wrong”, como diria Wolfgang Pauli).
A nossa triste realidade é essa: impossível encontrar alguém que tenha como preocupação primeira a vida humana e a ciência neste governo. Enquanto médicos, enfermeiros e demais trabalhadores da saúde estão sofrendo com a pandemia, muitos deles adoecendo e morrendo sem proteção e medidas sanitárias adequadas, enquanto cientistas buscam soluções para pesquisar remédios e vacinas, este governo investe em pseudociência, com ampla possibilidade de aumentar a mortalidade tanto pelo vírus quanto por outras doenças.