Por toda a história, as classes dominantes nunca hesitaram em recorrer ao conflito armado para defender seus interesses. Em nome da segurança e da expansão de suas propriedades, as elites sempre se dispuseram a afundar o conjunto da humanidade no inferno da guerra. E em nenhum outro período isso foi mais verdadeiro do que no capitalismo. Além das constantes disputas por mercados e recursos naturais, as diversas burguesias nacionais se veem constantemente ameaçadas pela ameaça de revolução em seus próprios países. Mais do que qualquer outra classe dominante, os capitalistas se veem forçados a utilizar métodos violentos com mais frequência do que qualquer outra classe dominante na história.
Naturalmente, não são os burgueses e nem seus filhos que pegam em armas. Quem é enviado para marchar para a morte com armas nas mãos são os trabalhadores, os escravos assalariados do capital. Enganados pela propaganda oficial, que os ensina a odiar mortalmente este ou aquele país, grupo étnico ou movimento político, os soldados são treinados para matar, sem hesitação, os que são designados como inimigos da pátria, da moral, de deus e qualquer outra coisa que possa servir de pretexto para a matança. A eficácia da máquina de propaganda é notória. Milhões de jovens de diferentes nacionalidades, mas de uma mesma classe social, matam uns aos outros convencidos da justeza das causas sórdidas das elites de seus países.
Contudo, em alguns poucos e notórios momentos da história, os horrores da guerra se encargaram de desnudar a falsidade da propaganda. Nessas ocasiões, a verdade fica evidente: os soldados de ambos os lados das trincheiras têm muito mais em comum entre si do que com os governantes e homens de negócios de seus países. E a hostilidade nacionalista dá lugar à solidariedade de classe. Foi exatamente isso que ocorreu no natal de 1914, quando soldados britânicos, franceses e alemães deixaram a guerra de lado para confraternizar, trocar histórias de casa e amaldiçoar os que os haviam reduzido ao estado de mais absoluta barbárie.
Apenas cinco meses depois do início das hostilidades, os estrategistas em Londres, Paris e Berlim começaram a se dar conta que aquele era um conflito distinto dos anteriores. As ideias que haviam perdurado desde a primeira metade do século 19 já estavam claramente obsoletas. Naqueles poucos meses de luta, as baixas já haviam superado as expectativas para mais de um ano de combate. Era preciso fazer uma pausa na matança para que os generais pudessem deliberar formas mais rápidas e menos custosas de eliminar o maior número possível de soldados inimigos. Enquanto esses senhores deliberavam sobre o assunto, a soldadesca deveria permanecer afundada na lama das trincheiras, aguardando a ordem para retomar a carnificina.
Contudo, em diferentes pontos das trincheiras, os soldados e os oficiais de baixa patente desobedeceram às ordens de permanecerem nos buracos aonde haviam visto tantos morrerem. Ao darem os primeiros passos para fora, viram aqueles com quem haviam se enfrentado de forma tão feroz nos meses anteriores. Mas ao invés de ódio, os homens que se encontravam carregavam uma profunda estranheza no olhar. Encarando-se pela primeira vez, todos se deram conta do quão parecidos eram. Todos tinham os rostos cobertos de fuligem e ferimentos, as roupas já colavam ao corpo por falta de banho. E principalmente: nenhum deles via qualquer razão plausível para tanto horror.
Essas primeiras impressões foram o suficiente para que regimentos inteiros de lados opostos passassem a noite de natal em uma amigável confraternização. Os soldados rezaram juntos, trocaram bebidas, cartões postais e outras lembranças de seus respectivos países. Nas conversas, realizadas mesmo com as barreiras linguísticas, aqueles trabalhadores convocados para vestir uma farda se deram conta das semelhanças entre suas histórias. Todos eram operários e camponeses, convocados para uma guerra cujas razões jamais foram realmente explicadas. E a realidade da qual haviam sido, bem como aquela que enfrentavam nas trincheiras, se assemelhavam tanto quanto se distinguiam daquela em que viviam os que haviam iniciado o terrível conflito.
No dia seguinte, esses mesmos soldados resolveram organizarem-se para disputar uma partida de futebol, um esporte que começava a dar seus primeiros passos. A partida oferece uma das imagens mais perfeitas de como esses homens se identificaram uns com os outros e estavam dispostos a abandonar qualquer preconceito patriótico em nome da solidariedade de classe. Entre os locais em que ocorreram essas partidas, o mais famoso foi o departamento de Saint-Yvres, no norte da Bélgica, e foi nos relatos do que ocorreu nesse local que se baseou o excelente filme “Feliz Natal”, lançado em 2005 e que retrata muito bem a trégua e as confraternizações que ocorreram.
Evidentemente, os oficiais superiores tremeram de raiva e medo assim que souberam do que estava ocorrendo em determinados setores do front. Soldados ensinados a odiarem-se desde os tempos da educação elementar brindando e jogando futebol? Qual seria o passo seguinte? Recusa a cumprir as ordens de matar ou morrer? Talvez uma infiltração comunista que levasse a consequências ainda piores? Os generais não tardaram em agir. Todas as unidades envolvidas foram transferidas para outros setores mais perigosos, onde a guerra poderia se encarregar de liquidar os que se atreveram a romper a barreira da propaganda e a enxergar no soldado inimigo um trabalhador, um camponês, um semelhante.
Atualmente, a burguesia se vê em um beco sem saída muito mais estreito do que aquele que contemplava em 1914. O mundo moderno, já muito marcado por violência, verá um considerável aumento no número de conflitos e guerras. E assim como ocorreu no passado, a propaganda burguesa tratará de incutir nas mentes de milhões de jovens ódios baseados em nacionalidade, raça e religião. Tudo para que estes se disponham a sacrificar suas próprias vidas e destruir a de tantos outros. Diante desse cenário, é importante que a atual geração conheça exemplos, como os dos soldados de Saint-Yvres, que se dispuseram a desafiar a hierarquia militar e o “amor à pátria” e acabaram descobrindo uma verdade importantíssima: a classe trabalhadora não tem fronteiras.