A revolta, Honoré Daumier (1848)

O “Manifesto Comunista” estaria superado? A nova sutileza anticomunista

Li, no caderno MAIS! da Folha de São Paulo, publicado no dia 19/02/2006, artigo assinado pelo professor da USP, Dr. Boris Fausto, sob o título “O novo desafio da esfinge”. O artigo começa afirmando, em sua chamada inicial, que o referido documento histórico, o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, datado de 1848, teria antecipado “a expansão e a interdependência dos mercados em todo o mundo, mas não conseguiu dar conta da complexidade da vida social. Tal é, a meu ver, a espinha dorsal do argumento que o texto em seu todo busca sutilmente sustentar.

É importante assinalar, de saída, que me parece de todo impróprio, no campo da ciência política de corte marxista, a afirmação de que o que é pertinente no mundo atual são as lutas pela cidadania e pela melhoria das condições de vida, em lugar das lutas de classe.

Pergunte-se: a “incompreensão da complexidade da vida social” seria um pecado imputável ao “Manifesto Comunista” de Marx e Engels? Pode-se afirmar que, desde a Primeira Guerra Mundial, o proletariado passou a ter pátria só porque, na Europa daqueles anos, este proletariado “nacional” se deixou levar pela toada imperialista dos preparativos bélicos e da condução desta mesma guerra?

Em seu longo artigo, o autor postula que a “polaridade da luta de classe” já não teria grande força explicativa, visto que “as maiores contradições no mundo atual não se situam nesse plano”. Isto posto, avança a afirmação de que “a perspectiva do socialismo ao alcance das mãos cedeu lugar a reivindicações mais realistas” … E esclarece o que seria isto: “luta contra fome, a redução das desigualdades, o acesso de milhões de pessoas à educação, à saúde, aos direitos civis e políticos, em poucas palavras, o acesso à cidadania”.

Aqui o que pareceria uma mera confusão terminológica denuncia, na verdade, um determinado ponto de vista que se deve identificar com clareza. Pergunte-se, outra vez: lutar contra a fome, contra as desigualdades sociais etc., tudo isto deixa de ser, por encanto, uma clara expressão do processo geral da luta de classe?

Convém focalizar o que este autor qualifica como expectativa de Marx e Engels com relação a uma inevitável derrocada das “superestruturas “. Ele declara não só a vigência, como o reforço, no mundo atual, de consignas relacionadas com a temática do sagrado, do étnico, da afirmação nacional, como temas mobilizadores, juntamente com o da preservação da Natureza e o da luta contra a globalização.

Impõe-se lembrar, a propósito, que toda essa temática se insere como uma luva no âmbito mais geral, e bem concreto, das lutas de classe no mundo contemporâneo. E não só das lutas do proletariado internacional, como das de todas as camadas oprimidas pelo capital financeiro internacional!…

O que o autor apontou, sem afirmá-lo diretamente, como mazelas do socialismo, não decorre das propostas de Marx e Engels, nem de seu “Manifesto Comunista”! Quando afirma que “o monopólio estatal não só da produção como de todas as esferas da vida social, pela via do partido, levou à monstruosa construção do regime dito soviético na Rússia e a outros que se seguiram” …. ele expõe, na verdade, os descaminhos sofridos pelo “socialismo real”. E o fez valendo-se de uma terminologia confusa e tosca. São os descaminhos consequentes às derrotas sucessivas do movimento operário e popular, ocorridas na primeira metade do século 20.

No final de seu artigo, seguindo uma senda bastante sutil e sibilina, e apoiando-se na evocação do enigma da esfinge, sugere uma atitude de mera decifração (?) da realidade, tomada como “passo inicial de uma ação transformadora”. E resvala na falsa oposição entre as “certezas do passado” e a “opacidade do presente”. Eis a sua real disjuntiva: “opacidade do presente em lugar das ‘certezas do passado’”!

Pergunta final: não basta a caudalosa destilação do pessimismo ideológico promovida pela grande mídia e pela intelectualidade orgânica a serviço do grande capital?

Salvador, 28 de janeiro de 2021.

* José Alberto Bandeira Ramos é professor aposentado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, com pós-doutoramento pelo PROLAM/USP, e apoiador da Esquerda Marxista.