“O Mito do Déficit”: dois erros não fazem um acerto

Os defensores da Teoria Monetária Moderna (MMT, em suas siglas em inglês) devem estar se sentindo justificados. Seguindo os seus conselhos, governos de todo o mundo estão injetando dinheiro na economia global, em uma tentativa desesperada de sustentar o sistema.

Cerca de 8 trilhões de dólares em apoio estatal já foram gastos ou prometidos pelos países capitalistas avançados. 4,2 trilhões desse montante vieram de empréstimos públicos; 3,7 trilhões, entretanto, vieram da expansão dos balanços dos bancos centrais – isto é, da criação de novo dinheiro.

É isso exatamente o que os defensores do MMT defendem: que os governos, em face de uma crise, imprimam e gastem. E um dos defensores mais destacados desta “nova perspectiva” é Stephanie Kelton, professora de economia e ex-conselheira de Bernie Sanders nos EUA.

“Mudança copernicana”

Em seu novo livro, The Deficit Myth [O Mito do Déficit], Kelton descreve os princípios fundamentais da MMT, tentando, no processo, oferecer sugestões sobre “como construir uma economia melhor”.

A MMT, informa a autora aos leitores, “é uma lente apartidária que descreve como nosso sistema monetário realmente funciona”. Com essa nova “lente”, diz Kelton, podemos passar por uma “mudança copernicana” na nossa visão da economia. E, por sua vez, um mundo de possibilidades, antes inimaginável, se abre diante de nós. Ou é isso o que nos prometeram.

Na verdade, como já explicamos em profundidade em outro momento, não há nada de novo ou de radical sobre a MMT, nem sobre as ideias, no livro de Kelton.

A MMT não é particularmente moderna, nem é, em grande parte, uma teoria. Em vez disso é, na melhor das hipóteses, uma reformulação das ideias reformistas e liberais de John Maynard Keynes, de estímulo governamental e de “gestão do lado da demanda”. Na pior das hipóteses, é uma ilusão perigosa – que o movimento dos trabalhadores e a esquerda deveriam rejeitar.

Capitalismo e crise

Deve-se deixar claro desde o início que Kelton (como Keynes) não é uma socialista, mas uma liberal. Não há uma só menção ao socialismo em todo O Mito do Déficit. Da mesma forma, em nenhum momento a autora sugere que o capitalismo deva ser substituído ou derrubado.

As principais propostas da MMT – e de seus discípulos como Kelton – podem ser resumidas da seguinte forma:

  • Que os países que têm “soberania” sobre suas moedas (ou seja, a capacidade de criar dinheiro novo) nunca precisam se preocupar em ir à falência, pois sempre podem imprimir mais dinheiro para pagar suas dívidas.
  • Que a inflação não é um risco enquanto houver recursos produtivos não utilizados (ou seja, “excesso de capacidade” e desemprego) na economia.
  • Que os governos “soberanos” não precisam tributar e depois gastar, mas devem imprimir, gastar e usar os impostos para gerenciar a demanda efetiva.

Com essa compreensão supostamente inovadora, Kelton e outros defensores da MMT dizem que podemos “ver através dos mitos e lembrar mais uma vez que sempre tivemos o poder”.

Não temos nada a perder, exceto nossas restrições autoimpostas”, afirma a autora, em um leve aceno ao apelo de Karl Marx às armas em O Manifesto Comunista. Mas, ao contrário de Marx e do Manifesto, Kelton e O Mito do Déficit não têm nada a dizer sobre como o capitalismo funciona – e sobre como não funciona.

Consideremos a questão da inflação. Os adeptos da MMT afirmam que isso não é um problema enquanto houver forças produtivas ociosas: trabalhadores desempregados que poderiam ser colocados em uso; ou fábricas e máquinas desativadas que poderiam ser acionadas.

Isso pode ser verdade. De fato, evidências recentes mostram que esse é o caso. Enormes quantias de dinheiro novo foram criadas pelos bancos centrais nos EUA, Reino Unido, Europa e Japão na forma de flexibilização quantitativa e de “financiamento monetário”. Mesmo assim, devido à pressão baixista sobre os preços causada pela recessão, a inflação permaneceu moderada.

Mas em nenhum momento Kelton ou qualquer outro admirador da MMT faz a pergunta simples: por que todo esse “excesso de capacidade” e desemprego em massa, em primeiro lugar? Por que todo esse potencial produtivo desperdiçado? Por que tanta pobreza em meio à abundância? Em outras palavras, por que o capitalismo entra continuamente em crise?

Imaginação

Na verdade, revelando a bancarrota do reformismo da MMT, Kelton, escandalosamente, aceita essas crises econômicas devastadoras como simplesmente uma parte natural e inevitável da vida.

“Os momentos difíceis são inevitáveis”, afirma a autora. “Não existe uma só economia capitalista na Terra que tenha encontrado uma forma de erradicar o ciclo dos negócios. As economias crescem e criam empregos; então, eventualmente, acontece algo que as coloca em recessão”.

“Podemos e devemos usar políticas discricionárias para tentar domar o ciclo dos negócios”, continua Kelton. “Caminhos mais suaves são preferíveis aos acidentados. Mas nenhum país descobriu como evitar todos os riscos possíveis”.

Aí está. Devemos tolerar a anarquia do mercado. Na melhor das hipóteses, podemos tentar “domar” a mão invisível, pois ela causa estragos na sociedade. Mas como? Através do uso de uma “garantia de empregos”, argumenta Kelton: um programa de emprego patrocinado pelo Estado em um trabalho socialmente útil.

Deixamos nossa imaginação ficar muito limitada e isso está nos freando”, proclama Kelton. “Fomos muito restritivos nas políticas públicas por temores injustificados sobre os números registrados nas planilhas das agências governamentais”.

Mas, de fato, com o exemplo da “garantia de empregos”, vemos quão pouca imaginação têm os principais iluminados da MMT. Afinal, o papel dessa política, conforme sugerido por Kelton e cia., é simplesmente reduzir o número dos desempregados e gerenciar a demanda na economia (mais uma vez, sem diferença do New Deal de Franklin Delano Roosevelt de inspiração keynesiana na década de 1930).

Por que não ir mais longe? Por que não acabar com o desemprego de uma vez por todas – em todos os lugares e de forma permanente? Com base em um plano socialista racional e democrático, envolvendo a nacionalização das principais alavancas da economia, isso é perfeitamente possível. Mas tal ideia sequer entra na cabeça de Kelton.

Debates versus Lucros

Assim como com o keynesianismo, vemos que o objetivo da MMT não é abolir o capitalismo, mas remendá-lo; não derrubar este sistema decrépito, mas salvá-lo.

De fato, o título do livro de Kelton denuncia o jogo. Seu objetivo é argumentar contra a austeridade, não lutar pelo socialismo. Seu público-alvo não é radical, mas liberal. Como Keynes, ela está tentando convencer as elites, os formuladores de políticas e os intelectuais, não os trabalhadores e a juventude.

“Gastar ou não gastar é uma decisão política”, afirma a autora, ecoando o mantra reformista sobre os “cortes ideológicos”. “Em última análise, o debate deve permanecer centrado em nossas prioridades, em nossos valores e em nossa capacidade produtiva real para cuidar de nosso povo”, implora Kelton. “A MMT nos dá a lente que precisamos para um debate inteligente”.

“A MMT não pretende que o poder de emissão de moeda do governo lhe dê a capacidade de fazer o que quiser”, esclarece a autora. “Em vez disso, focamos a questão nos limites reais que enfrentamos, para que possamos encontrar as melhores soluções possíveis. É assim que o debate deve funcionar – tomando decisões do mundo real com base nos recursos do mundo real”.

Mas o mercado não opera de acordo com “decisões políticas” e “debates inteligentes”. É um sistema baseado na produção com fins lucrativos. E são os interesses da classe capitalista e sua busca insaciável por lucros e novos mercados que, em última análise, ditam as ações dos políticos das grandes empresas em todo o mundo.

Esta é a razão do desperdício criminoso dos recursos econômicos da sociedade. Os capitalistas produzem para obter lucros. Se não puderem fazer isso, os trabalhadores, as fábricas e as máquinas permanecerão ociosos.

Os governos podem imprimir quanto dinheiro quiserem. Mas, se não encontrar mercados lucrativos, devido às crises de superprodução do capitalismo, esse dinheiro simplesmente se acumulará nas mãos dos super-ricos ou irá alimentar bolhas especulativas.

É isso exatamente o que está acontecendo agora. E é por essa razão que os trilhões em dinheiro da Flexibilização Quantitativa do banco central não foram capazes de tirar a economia global da estagnação.

Ilusões e mitos

Distraída por seu discurso obsessivo sobre déficits, gastos do governo e as complexidades do sistema monetário, Kelton nunca se detém para dar uma olhada no mundo ao seu redor. Isso não deve nos surpreender, dado o seu ambiente cotidiano na torre de marfim da academia e da política de Washington.

Vejamos outra questão, por exemplo: a da dívida. Kelton e o restante de sua turma da MMT dizem que as dívidas – como os déficits – são um mito. Os governos com “soberania” monetária nunca precisam da inadimplência, dizem eles, visto que sempre podem pagar as dívidas nacionais ordenando ao banco central que crie mais dinheiro.

De fato, a autora do livro dá um passo além e sugere que tais estados poderiam eliminar toda a sua dívida pública da noite para o dia, se assim o desejassem, deixando “o banco central comprar títulos do governo em troca de reservas bancárias” – isto é, imprimindo dinheiro novo para pagar dívidas antigas.

“Se realmente quisermos fazer a dívida nacional desaparecer, há formas mais fáceis de fazer isso [do que por meio da austeridade]”, garante Kelton. “Isso pode ser feito usando nada mais além de um teclado no Federal Reserve”.

Mas isso levanta uma questão elementar: se fosse realmente tão simples, por que os governos monetariamente “independentes” acumulam dívidas? Por que não imprimir a dívida nacional e não precisar mais se preocupar com isso? Por que os políticos realizam cortes brutais destruindo o próprio tecido social, se existe uma saída tão fácil?

Claro, a resposta que Kelton encontrou é o refrão habitual de “é uma escolha política”; que a austeridade é “ideológica”. Essa linha é frequentemente repetida por proeminentes esquerdistas do movimento trabalhista britânico.

O ex-deputado trabalhista Chris Williamson, por exemplo, se converteu à MMT. Em sua própria resenha do livro de Kelton no Morning Star, ele se refere ao “mito do déficit” como um “dogma enganoso” e como uma “mania monetarista equivocada”, promovida por “parlamentares de ambos os lados da câmara”.

E embora Kelton não responda explicitamente a essa pergunta óbvia sobre a dívida em seu livro, foi forçada a dar mais detalhes em outro lugar, por exemplo, quando pressionada por entrevistadores do Financial Times.

“Então, hoje”, explica Kelton, “os governos vendem títulos para proteger algo mais valioso do que o ouro: um segredo bem guardado sobre a verdadeira natureza de suas capacidades fiscais, que, se amplamente compreendido, pode levar a pedidos de ‘financiamento monetário aberto’ para pagar por bens públicos”.

“Com a venda de títulos”, continua ela, “mantêm a ilusão de serem financeiramente limitados”.

Ah, agora entendemos! O atual status quo rompido é uma “ilusão”! Tudo o que precisamos fazer é engolir a pílula vermelha de Kelton, acompanhá-la até a toca do coelho e, de repente, tudo ficará claro!

Marxismo versus MMT

Como nas histórias de Lewis Carroll sobre as Aventuras de Alice no País das Maravilhas, esse jargão só é bom para ser lido para as crianças na hora de dormir. Afinal, de que serve essa nova “lente” econômica para se entender o mundo que nos cerca, se a conclusão a que chegamos é que “o problema está todo em nossa mente”?

A crise do capitalismo não é imaginária, e sim um fato dolorosamente real para milhões e bilhões de pessoas em todo o mundo. Não é o produto de políticos “ideológicos” ou “ignorantes”, mas o resultado lógico das leis do sistema capitalista, baseado na propriedade privada e na produção com fins lucrativos.

A dívida não é uma “ilusão”, mas a expressão monetária de uma relação socioeconômica objetiva: entre credores capitalistas, monopólios financeiros e imperialistas, de um lado; e trabalhadores explorados, famílias empobrecidas e nações dominadas, de outro. Esta relação não se pode desejar ou imprimir. Deve ser derrubada.

A solução para as crises do capitalismo não está nos devaneios reformistas oferecidos pela MMT, mas na organização, na construção de um movimento de massa e na luta para mudar fundamentalmente nossas condições materiais: substituir as leis do capitalismo por um sistema baseado na propriedade comum, no controle operário e no planejamento socialista.

É por isso que essas bobagens idealistas são piores do que erradas – são positivamente prejudiciais. Sim, Kelton e sua turma da MMT podem estar corretos em algumas de suas críticas aos economistas e políticos burgueses que promovem uma agenda de austeridade. Mas dois erros não fazem um acerto.

Os trabalhadores e os jovens não devem se enganar com Kelton e o restante desses vendedores de óleo de cobra da MMT. Em vez disso, precisamos nos basear nas ideias revolucionárias do marxismo – as únicas ideias que podem oferecer um caminho a seguir para a humanidade.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM SOCIALIST.NET