Foto: Ueslei Marcelino

O petismo e o falseamento da realidade

Friedrich Engels já reiterava em algumas citações que não seria possível apreendermos todas as determinações do real e, na carta para Joseph Bloch em 21-22 de Setembro de 1890, ele afirmou:

“As condições econômicas são a infraestrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma. Há uma interação entre todos estes vetores entre os quais há um sem número de acidentes (isto é, coisas e eventos de conexão tão remota, ou mesmo impossível, de provar que podemos tomá-los como não existentes ou negligenciá-los em nossa análise)”.

Portanto, nenhuma análise daria conta de explicar tudo, nenhuma teoria social tem essa capacidade e amplitude, então o que os analistas podem fazer é buscar uma aproximação mais ampla do objeto real e tentar capturar as questões cruciais, essenciais, os núcleos fundantes para que se possa chegar a uma conclusão mais assertiva do conjunto tendencial da realidade. Nesse sentido, é comum que uma análise de conjuntura possa estar mais próxima do real ou menos próxima do que outra, sendo completamente natural que existam divergências quanto a isso, bastando que a formulação tenha algum lastro material, que existam dados concretos que possam fundamentá-la. Já dizia o velho Marx que a prática social é o critério da verdade. O grande problema é quando a análise se distancia tanto do concreto que não podemos enxergar nenhuma base para que ela se sustente e parece refletir outra realidade que não aquela que se propõe investigar. Nessas condições, é possível levantar algumas hipóteses, talvez existam problemas com o método utilizado, ou anacronismos, ou problemas de outra ordem que não teórica/metodológica, como iremos perceber adiante.

Estamos convencidos de que o melhor e mais poderoso método para conseguir decifrar a realidade capitalista é o materialismo histórico, esse fundamentado na reprodução ideal do movimento (processo) real que em conformidade com o entendimento do professor José Paulo Netto, na obra “Introdução ao estudo do método de Marx”, significa: “a teoria é o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento)”. Nos dizeres de Lênin é a “Análise concreta da situação concreta”. É notório que temos grande apreço pela materialidade do processo histórico, desta forma, é muito difícil encontrar alguma validade nas análises petistas, pois estão longe de utilizarem categorias concretas.

Seríamos bastante generosos se classificássemos tais avaliações da conjuntura como idealistas, pois, parece-nos que a questão é ainda mais grave do que o método. Um ponto inicial que deve ajudar a esclarecer melhor as coisas é o depoimento do “intelectual” Rudá Ricci, onde ele explica os principais motivos de ter deixado o PT, e em um dos trechos declara: ”Era, evidentemente, o fim do projeto original do PT. Em 1989, os petistas que dirigiram o partido desde sua fundação ainda tinham peso na condução da campanha de Lula. Eu coordenei o programa agrário, em 1989. Em 1990, fui membro do Governo Paralelo montado por Lula. Éramos a maioria. O que Zé fez? Começou a diminuir os espaços de intelectuais, lideranças de base e aumentar o peso da burocracia partidária, da cúpula e de profissionais da área de comunicação na condução do partido e, principalmente, no foco nas eleições.” Segue dizendo que: “O foco era outro. O partido caminhava nitidamente para não ser partido de massas, para desmontar as estruturas de decisão de base (como os núcleos de base) e para ampliar o arco de alianças que, até então, era focado em partidos de esquerda e centro-esquerda. Também tinha início um trabalho de marketing para criar culto à personalidade, algo oposto ao que deu origem ao PT (criamos o partido contra as propostas populistas e caudilhescas do trabalhismo).” Foi um processo que de fato aconteceu, o Partido dos Trabalhadores, como dito por Rudá, afastou-se da base, burocratizou-se, retirou os intelectuais e as lideranças de base das decisões e contratou marqueteiros profissionais para transformar o partido em uma máquina eleitoral. Essa posição adotada por eles será um dos vetores de fundamentação da tese central deste texto.

Nessa esteira, fica fácil compreender a “Carta ao Povo Brasileiro” apresentada por Lula em 22 de junho de 2002, durante o encontro sobre o programa de governo do partido, no qual o presidenciável apresentou um documento mostrando para a classe dominante brasileira que ele não faria mudanças substanciais no país e que eles, integrantes da classe dominante, pudessem ficar tranquilos que o seu governo, caso eleito, iria buscar uma coalizão entre as classes, a estabilidade e a paz social, um suposto novo “contrato social” entre as classes. É evidente que as soluções propostas na carta não tinham muita aproximação com a realidade, tendo em vista que o ali exposto era completamente insuficiente para os embates que a classe trabalhadora precisaria travar para uma transformação qualitativa na sociedade e, além disso, não coadunava com os princípios fundadores do Partido dos Trabalhadores na década de 80, que delineavam objetivos mais profundos, como reformas consequentes e radicais na estrutura brasileira. A incoerente carta teve um claro motivo eleitoral, uma verdadeira jogada de marketing, rebaixaram-se à burguesia, tentaram deixar claro que não iriam mudar nada que afetasse os seus interesses, os seus lucros e a sua dominação de classe, e isso tudo para que os burgueses pudessem aceitar Lula como um possível presidenciável, sem temer a sua candidatura, jogando um projeto inteiro “para escanteio”, somente com interesse eleitoral.

Após chegar à Presidência da República, não demorou muito tempo para que o governo Lula contasse a primeira mentira, em 2003, para agradar à burguesia, adotando a agenda do FMI, do Banco Mundial e do capital financeiro com relação aos fundos de pensão. Implementou a dramática reforma da previdência e, para isso, o PT fez uma enorme apologia à medida tentando enganar os trabalhadores, apontando como um processo inevitável e bom para a nossa economia. Os jornais burgueses, à época, saudavam a iniciativa como uma vitória: “A reforma da Previdência aprovada hoje em segundo turno pelo plenário do Senado é a primeira grande vitória do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso Nacional. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tentou alterar o sistema previdenciário nacional, mas, em oito anos de mandato, só conseguiu implementar mudanças no setor privado referentes aos aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).” Trecho de reportagem do portal Terra em 11/12/2003.

O ministro da fazenda da época, Antônio Palocci, pronunciava-se enviando uma carta a Horst Köhler, diretor do FMI, dizendo: “O governo tem avançado rapidamente no cumprimento de sua agenda para a recuperação econômica e implantação das reformas. Depois de um importante esforço para a construção de consensos, uma proposta ambiciosa de reforma tributária e previdenciária foi enviada ao Congresso antes do previsto.” (MINISTÉRIO DA FAZENDA, 2003, p. 1, § 1).

Lula começava a falsear a realidade com objetivo de servir aos interesses burgueses e iniciar um período de conciliação de classes, alegando um déficit na previdência que era inexistente, mentindo para conseguir aprovar a reforma sem que houvesse uma resistência popular mais profunda. Nesse processo, alguns parlamentares petistas votaram contra a reforma e se posicionaram do lado oposto a essas ações. Todos foram expulsos do partido e fundaram o PSOL em 2004, como partido de oposição ao governo.

De 2002 até 2018, as práticas não mudaram, na verdade, intensificaram-se, e no período atual o petismo que antes era iniciante na arte do falseamento, agora já não sobrevive sem ele, virou uma questão patológica, endêmica. A tese que levantamos aqui é a de que o PT não faz análise de conjuntura a partir da realidade concreta, ele cria sua própria conjuntura fictícia, primeiro definindo os seus objetivos políticos, depois formulando uma narrativa falseada da realidade que possa fundamentar e corroborar os seus objetivos. Após isso propagandeia essa narrativa no seio social, através de verdadeiras táticas de marketing e, também, por meio das direções burocráticas que ele controla nos movimentos dos trabalhadores e dos estudantes, que servem como verdadeiras veias de transmissão de mentiras que se tornam discursos oficiais para quem ali está se organizando. Foi por esses instrumentos que eles tentaram pacificar os trabalhadores brasileiros durante 13 anos, em prol da conciliação de classes.

A nova narrativa petista conta uma história do Brasil um pouco distante do real. Na sua análise de conjuntura dizem que os governos Lula e Dilma praticamente revolucionaram o país e que estava indo tudo muito bem, em progresso, até que um desastre catastrófico e inesperado aconteceu, o “golpe” de 2016, e a partir de então o Brasil acabou. É perceptível que houve uma alteração qualitativa na mudança de Dilma para Temer, mas acontece que, antes mesmo de cair, o governo Dilma já estava aplicando o mesmo programa de ajustes e cortes, só que de forma gradual e menos intensa. Um texto de minha autoria em 2015 exemplifica a agenda dos ajustes à época.

Com o estelionato eleitoral aplicado por Dilma após as eleições de 2014, ficou difícil sustentar que o governo petista estava em defesa dos direitos do povo. Em 13 anos de governo, o PT não realizou uma reforma estrutural sequer, não fez uma transformação substancial na sociedade brasileira. Para efeito de evitar repetições desnecessárias eu indico aqui a leitura do artigo do companheiro Nildo Ouriques no qual ele demonstra através de dados estatísticos que o governo petista não trouxe grandes mudanças como anunciava.

Destacarei apenas um trecho crucial do texto do camarada Nildo para fundamentar as premissas desenvolvidas nesta tese: “O povo, orientado por suas necessidades imediatas, embarcou na narrativa oficial de que os ganhos reais no salário mínimo, a expansão do ensino superior (predominantemente privado), as modestas taxas de crescimento do PIB e uma pretensa respeitabilidade internacional teriam caráter permanente. Subitamente o Brasil se transformara num ‘país de classe média’. Uma combinação ideológica que inflou a autoestima do Brasil e dos brasileiros permitindo a ‘paz social’ que tanto encanta os capitalistas no país. Os dados são tão impressionantes quanto ilusórios. O estudo da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República definiu como ‘nova classe média’, as famílias com renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00. Portanto, não é demais dizer que nem mesmo Lula, Dilma ou seus lacaios burocratas que formularam o novo conceito gostariam de pertencer à nova classe média brasileira. Além do mais, não existe a menor possibilidade de uma nação se sustentar como país de classe média com consumo de massas quando os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontam que 80% da População Economicamente Ativa do país ganha até 3 Salários Mínimos, o que totaliza pouco mais de R$ 2.800,00, enquanto o salário mínimo necessário, calculado pelo DIEESE, deveria ser de aproximadamente R$ 4.000,00. Enfim, onde comanda a superexploração é impossível qualquer vestígio de cidadania!”.

A quais interesses serve a narrativa petista? Sabemos muito bem que a situação de Lula é calamitosa, está prestes a ser preso por uma condenação sem provas em um processo parcial, perseguido pelo judiciário burguês que ele tanto ajudou a fortalecer em seus governos. A burguesia descartou o seu partido e criminaliza cada vez mais os seus integrantes e, diante disto, o PT e Lula já delinearam quais os seus objetivos. Eles precisam demonstrar que a burguesia ainda vai precisar deles na situação atual, para que Lula possa escapar do Poder Judiciário e conseguir voltar à Presidência da República com mais um projeto eleitoreiro e oportunista do Partido dos Trabalhadores. Caso Lula seja preso, planejam utilizar ele como mártir para radicalizar as massas momentaneamente e pressionar a classe dominante a lhe conceder a liberdade em grau recursal e, em última instância, caso Lula seja e permaneça preso, utilizarão essa condição de mártir para alavancar uma outra candidatura do PT que contará com o apoio de Lula.

Com as suas táticas e os seus objetivos já traçados, o PT desenvolve as suas narrativas falseadas, travestidas de análise de conjuntura, para poder fazer com que as massas defendam Lula-2018 a todo custo. Defender ele significaria voltar ao “paraíso” que era o governo petista antes da tragédia de 2016. A história brasileira, então, fica dividida entre antes e depois de Temer, antes era o céu na Terra, e depois, o inferno.

Infelizmente, o que observamos é que o governo do PMDB é o aprofundamento do que já havia sido iniciado por Dilma. Não comparece também na análise petista nenhuma menção ao capitalismo e sua crise, ou à guerra de classes efetuada pela burguesia, nem mesmo que o PT teve parcela de culpa em todo esse processo quando fez um governo de coalizão com o PMDB e colocou o ilegítimo usurpador como vice-presidente. Alardeiam que o problema dos trabalhadores é essencialmente o governo golpista e somente o PT poderá trazer de volta a prosperidade e, devido a isso, todos devemos cerrar fileiras na defesa de Lula. Eles querem acumular forças para pressionar o Judiciário e a burguesia e conseguirem “salvar” Lula. Tentam utilizar o povo como massa de manobra para a execução dos seus interesses privados, e anunciam nas manifestações: “O maior golpe contra a esquerda brasileira é a prisão do companheiro lula, o maior militante de esquerda da América Latina, a centralidade da nossa luta atual deve ser impedir a sua prisão, ou será um golpe na cabeça de cada militante de esquerda e do povo pobre deste país”. Em alguns locais, chegam ao absurdo de dizer que a luta contra as reformas já é secundária, que agora temos que defender Lula e o eleger novamente.

Argumentam que antes havia democracia e agora não temos mais e, por isso, mesmo aqueles que são críticos ao PT devem se unir nesta luta em prol da democracia e deixar as diferenças de lado na defesa do Estado Democrático de Direito. A factualidade dos acontecimentos mostra que ainda estamos sob a “forma” da democracia burguesa, não havendo uma ditadura formal instaurada no Brasil e que a sua implantação não é a tendência da conjuntura. É importante explicar ao petismo também que todo Estado é uma ditadura de classe, e que defender o Estado Democrático de Direito com unhas e dentes não é uma postura transformadora da realidade, mas sim, conservadora, pois mantém as instituições capitalistas existentes intactas. No capitalismo, a “forma” como se apresenta, se expressa, o “conteúdo” ditatorial, pode ser juridicamente “democrática” ou não, as “formas” de Estado variam de acordo com o nível da luta de classes, o nível de crise econômica, política e outras variantes. Estamos em uma ditadura da burguesia, expressa em democracia formal jurídica, isso no governo FHC, Lula, Dilma, Temer, todos eles. Nada obstante, é fundamental relembrar que a criminalização dos movimentos sociais e o aumento da militarização da vida civil foram medidas executadas desde os governos petistas. A Lei de Organizações Criminosas e a Lei Antiterrorismo comprovam isso, assim como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ou até mesmo a chacina dos jovens negros no cabula em Salvador (BA) chancelada por um governador do PT.

Nas teses do PT também avistamos o alarde de que estamos sob um forte crescimento fascista no país, de que o fascismo irá dominar tudo, uma onda conservadora enorme se desenvolve no tecido social, proclamações que fazem com que a gente se sinta nos famosos “Cadernos do Cárcere”, de autoria do italiano Antonio Gramsci. Imaginamos que eles já estejam criando os instrumentos da classe trabalhadora à parte do Estado para brigar pela hegemonia desta sociedade fascista. Aliás, não. Na leitura de Gramsci dos petistas a briga pela hegemonia se dá dentro dos instrumentos da ordem, das instituições burguesas, e não na criação das instituições proletárias para entrar em choque com as do capital. E adivinhem qual a proposta que eles fazem para combatermos tudo isso? É previsível, uma grande unidade de “esquerda” para combater a direita, pois só com uma unidade poderemos derrotar o fascismo e a direita, e mais que isso, uma unidade em torno de Lula, pois só ele tem capacidade para vencer essa batalha que beneficiará a todos nós. Afirmam que devemos evitar a prisão de Lula de qualquer jeito e apoiar ele nas eleições de 2018. Eles querem aprisionar toda a esquerda sob a bandeira do lulismo, mais uma vez.

Coincidência ou não, todos os pontos da narrativa do PT levam a um único caminho, a defesa de Lula. Na verdade, como anunciamos no início do texto, o problema não é de método analítico, é de outra ordem. É puro oportunismo, pois há treze anos o Partido dos Trabalhadores vem moldando “análises de conjuntura” para que fundamentem as suas ações e os seus interesses, falseando a realidade para lhe servir de baliza. Nesta dramaticidade conjuntural em que estamos, o cerco fechou para eles, sabem muito bem que irão precisar dos trabalhadores para buscar uma salvação e, por isso, convocam uma união, mas quando as massas mais precisaram deles, eles fizeram uma outra união, e foi com a burguesia, para atropelar os nossos direitos! Portanto, a melhor saída é à esquerda e fora do lulismo.