Os debates em torno da propaganda das ideias marxistas e sobre como influenciar a classe trabalhadora são essenciais para a construção de um partido político comunista. Afinal, nenhuma revolução transformou-se em revolução socialista sem propaganda revolucionária bem sucedida de um programa político. Entretanto, a propaganda das ideias do marxismo nem sempre leva à construção de um partido político comunista, podendo ficar restrita à propaganda cultural.
É notável a grande alcance público de “youtubers” empenhados em divulgar o marxismo de figuras públicas ligadas a associações, sindicatos, movimentos, e partidos “comunistas” ou “socialistas”. Entretanto, nos perguntamos: levando em conta que no Brasil estamos sobre um Estado burguês que se torna cada vez mais autoritário, sob quais bases se sustenta a “fama” nas redes sociais, e quais são os objetivos dos seus produtos, isto é, vídeos, podcasts, textos e imagens?
Tratemos, por ora, de diferenciar uma estrutura política de propaganda marxista de uma estrutura de propaganda cultural do marxismo. Um partido político faz propaganda marxista, o que vai muito além da batalha das ideias, do desenvolvimento da oratória ou da escrita de seus membros. O partido quer se organizar cada vez melhor, construir quadros e lideranças para intervir na luta de classes de forma mais consciente, fazer crescer sua influência pela construção de novas células em locais de estudo e trabalho. Cada milímetro conquistado na luta de classes pelo partido tem seu valor, o que se mostra pela quantidade de militantes, revistas teóricas vendidas, assinantes para o jornal, análises produzidas sobre greves e manifestações, cursos teóricos fornecidos, sindicatos intervidos, comitês e células em operação e assim por diante. Nessa realidade, o lugar que as “visualizações” , “curtidas” e “inscritos” ocupam com relação ao todo é sempre relativo.
Podemos sintetizar assim: 10 mil visualizações em um vídeo no YouTube de uma figura pública têm uma importância política inferior a de um trabalhador que foi convencido politicamente a assinar o jornal Foice & Martelo, e menor ainda que o da conquista de um novo militante para o partido. Claro que é possível reverter todas as milhares de visualizações, likes e inscrições dispersas em assinaturas e novos militantes, mas a relação que se estabelece entre um like e um novo militante não é óbvia, tampouco direta. Ela é construída, como uma ponte.
Aqueles que deixam essa relação jogada à própria sorte caem em uma perigosa armadilha. Uma coisa é ser a figura pública de uma organização política que pode ter maior ou menor influência nas redes sociais, outra é ser “influenciador digital” ou “youtuber” profissionais. Estes, em sua maioria, para suprirem suas necessidades materiais imediatas, precisam de doações diretas a sua pessoa por apoiadores, expor publicidade capitalista em seus vídeos, ou, tornar-se “garotos e garotas” propaganda de lojas e editoras.
Um revolucionário profissional, por outro lado, é um funcionário leal ao partido, e mesmo ganhando fama, deve satisfação e obediência apenas à direção eleita nos congressos do partido, não a apoiadores, patrocinadores ou editoras de livros. O combatente de um batalhão, durante uma guerra, irá atender unicamente a seu dirigente imediato, ou, em última instância, ao estado-maior do exército, mesmo que por trás de si mesmo esteja uma rede de familiares e amigos que lhe prestem solidariedade, enviem apoios, mantimentos e doações para o front de batalha. Nesse caso, todo o apoio prestado ao combatente pelos civis é administrado não diretamente pelo combatente, mas pelo exército como um todo.
Trarei outra comparação para ilustrar melhor o que quero dizer. Divulgar as ideias marxistas sem construir o partido é similar a deslocar militantes para a porta de uma fábrica, escola ou universidade, intervir em uma greve, participar de uma série de manifestações públicas e contabilizar os ganhos da intervenção pelo número de panfletos distribuídos ou pelo número de “interações” com o público alvo. Se a intervenção não se refletir em jornais e materiais vendidos, contatos e vínculos fortes estabelecidos, novas células operantes naquele espaço de intervenção, de que valeu todo o esforço? Nesse caso, não foi um partido que interviu nestes lugares. Devemos nomear da maneira correta para compreender o fenômeno. Quem interviu foi um movimento cultural organizado; que conserva muito mérito no campo da cultura mas que não é ferramenta para a tomada do poder.
Não podemos ver essa atitude daqueles que em palavras defendem a revolução ou o bolchevismo com naturalidade, muito menos achar que a construção do partido é “espontânea”, consequência de um trabalho fragmentado e disperso de vários “influenciadores”. Nunca foi assim. Construir um partido é construir um aparelho próprio, independente financeiramente e politicamente de todos os outros (Youtube, Instagram, Facebook, Twitter, TikTok…), para impulsionar e salvaguardar a tradição marxista.
Afinal, se levarmos à risca o papel do youtuber profissional que constrói o seu canal dentro de aparelhos alheios, sem a direção de um partido por trás em cada um de seus passos, ele estaria lutando para formar novas lideranças que também sejam… youtubers?(!) Muitos jovens estudantes e trabalhadores podem daí concluir que os marxistas só sabem trabalhar com a língua, que querem ajudar a classe trabalhadora a tomar o poder em concursos públicos de oratória contra os intelectuais da burguesia ou da extrema-direita. A fraseologia revolucionarista não pode nos impressionar. Muitas vezes ela ocupa o lugar ideológico de encobridora da práxis militante.
Saibamos diferenciar joio e trigo, ou seja, quem são os intelectuais pequeno-burgueses (professores carreiristas, youtubers, parlamentares profissionais, etc.) e os revolucionários profissionais. Um publicista, como Lenin referia diversas vezes a si mesmo, desenvolve sua atividade propagandística a partir de um partido político marxista, ele é a voz viva do programa político construído nos congressos e levado adiante pela direção eleita. Quando escreve, fala ou se manifesta publicamente, seja na internet ou fora dela, o publicista é porta-voz e construtor desse partido. Para isso, precisa ter um olho no peixe e outro no gato.
Isto é, enquanto um olho concentra-se na tarefa prática que está desempenhando, que pode ser realizar uma panfletagem, gravar um vídeo para o YouTube ou ministrar um curso de teoria marxista, o outro está empenhado em capturar ameaças e evitar que todo o resultado da tarefa prática seja levado por um “gato” qualquer. O “peixe já limpo” precisa ser protegido. Os propagandistas culturais do marxismo no Youtube são como bonecos de Olinda no carnaval de Recife. Eles chamam atenção de todos, destacam-se da massa, são grandes e pesados, mas desajeitados e apenas cópias estranhas dos marxistas que influenciaram diretamente o rumo das revoluções. Nada contra o entretenimento cultural, mas quais são os objetivos e os resultados em cada produto dos propagandistas culturais? Se forem estritamente as curtidas, visualizações, inscritos, interações, algoritmos impulsionados, livros vendidos da editora patrocinadora, apoios conquistados para seu “canal” que vão direto para sua equipe, já não se tratam de marxistas, mas marxólogos.
Por último, o marxólo despreza o perigo que corre. Toda a estrutura chamativa que criaram pode se desmanchar facilmente em momentos de maiores restrições às liberdades democráticas. As redes sociais controladas pelo imperialismo, os acadêmicos sustentados com dinheiro do Estado nas universidades, as editoras pequeno-burguesas de livros de “esquerda”, tudo isso desaba com ventanias políticas contrarrevolucionárias. Claro, desabará apenas se não houverem forças organizadas para protegê-la. E se desabarem, como serão reconstruídas? Clamando e pressionando por paz, lei, ordem, democracia e piedade para que os burgueses republicanos progressistas reestabeleçam as antigas instituições que sustentavam os meios de comunicação e as já restritas liberdades democráticas?
Em um período de aceleração da luta classes e desintegração social é previsível que o Estado, ou até mesmo grupos de extrema-direita, tentem fazer calar estas vozes “anticapitalistas”. Recentemente o camarada Johannes Halter, administrador da página Esquerda Marxista no Instagram foi ameaçado. A pergunta que todo youtuber deve se fazer diariamente é quando coisas parecidas, ou piores, ocorrerão com ele. Sem uma organização militante por trás destas vozes públicas, como sustentarão sua atividade cultural em meio a ameaças de suas próprias vidas, ou precisando criar, de uma hora para a outra, artesanalmente, novos meios para expressar suas ideias? Lembremos que a censura direta avança rapidamente no Brasil com as últimas medidas no STF e com a perseguição a perfis nas redes sociais.
Ressalto que há um indicativo importante no crescimento da visibilidade dos propagandistas culturais do marxismo nas redes sociais, que demonstra não só o sucesso de novos “empreendedores de esquerda”, mas também o aumento do interesse da classe trabalhadora nas ideias do marxismo. Entretanto, como vimos, esse sucesso precisa ser relevado em termos relativos.
Alguns youtubers que cresceram nos últimos anos, como os pioneiros Jones Manoel e Sabrina Fernandes, dizem repetidamente que constroem “trincheiras das ideias” ou espaços para as “ideias radicais”. Contudo, uma trincheira precisa de combatentes dispostos a matar e a morrer, não só de milhares de armas empilhadas ou grande número de pessoas circulando por ela. De que valem armas e pessoas dentro de trincheiras se as pessoas não estão aprendendo a combater a burguesia, isto é, a se organizarem cada vez melhor e a trazerem outros trabalhadores para o combate?
O lugar por excelência para acelerar e desenvolver este aprendizado e aprimorar a batalha é o partido bolchevista, onde cada um aprende a combater de acordo com sua capacidade e singularidade. De uma coisa podemos ter certeza: é mais fácil encher uma trincheira de terra novamente do que cavar uma nova. E se os que estão dentro dela não estão combatendo, serão todos facilmente enterrados vivos por quem está fora delas. Ficar dentro de trincheiras é repugnante, inglório, adoecedor, e todos os soldados sabem disso.
Portanto, os marxistas são defensores da cultura, afinal, é progressivo que a vanguarda tenha maior acesso a literatura e a renovadas interpretações da obra de Marx feitas por jovens aos quais ela pode se identificar. Entretanto, colocar a tarefa cultural a frente da tarefa de construção do partido, não ao lado, principalmente em uma época onde o Estado burguês afia suas instituições de repressão e os traidores de esquerda planejam a próxima traição, conta “ponto contra” a disciplina revolucionária. Somente com disciplina revolucionária poderemos transformar a luta defensiva diária da classe trabalhadora, assim como o interesse de amplos setores pela teoria marxista, em luta ofensiva contra a burguesia e o capital.
O sonho do amplo acesso a cultura está ainda distante. Somente no período de transição socialista os trabalhadores se apropriarão de gráficas, universidades, redes de computadores e tecnologia para levar não só a ciência do materialismo histórico adiante, mas a ampla cultura humana para as grandes massas. Hoje as condições de vida da ampla maioria, com pressões que não cessam nem durante o sono, tornam uma ação aparentemente simples, como estudar diante de um computador, smartphone, ou frequentar um curso presencial, uma missão impossível que nem Tom Cruise conseguiria cumprir.
O período relativamente pacífico onde o propagandismo cultural cresce não será permanente. Toda essa propaganda cultural irá se chocar, inevitavelmente, com a contrarrevolução que se aproxima junto com a revolução. Se as ideias do marxismo não estiverem associadas a preparação e a organização de um poderoso partido da revolução socialista, elas serão simplesmente caladas pela força quando a burguesia considerar oportuno e necessário. Marx, Lenin e Engels utilizaram suas “escrivaninhas” como instrumentos para a construção de um organismo de combate, por isso eram temidos mesmo em exílio. Seus objetivos com a oratória ou com a escrita passavam diretamente por fazer crescer a influência do partido no movimento operário, vide o Manifesto do Partido Comunista.