“A religião é a autoconsciência e o autossentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu” (Marx em “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, 1843).
“É preciso fazer com que se calem, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não devem, com a intenção vergonhosa de ganhar dinheiro” (Carta do Apóstolo Paulo a Tito, capítulo 1, versículo 11).
A cada 3 brasileiros, 1 é evangélico. Em 1964, ano do golpe militar, havia cerca de 100 templos no país. Em 2024, somam-se mais de 60 mil estabelecimentos deste movimento religioso diverso, intrigante e capilarizado na classe trabalhadora brasileira (Jornal da USP, 2023).
Em janeiro de 2020, o Datafolha apontou para 31% da população nacional sendo evangélica, dado em franco crescimento nos últimos quatro anos, chegando a 60 milhões de pessoas. Uma atualizada pesquisa do mesmo grupo, publicada em junho de 2024 na Folha de S. Paulo, demonstra que a base social das igrejas evangélicas de São Paulo são mulheres negras, 58% do total de fiéis, espalhadas em inúmeras pequenas igrejas de até 200 membros. Trabalhadoras superexploradas em seus trabalhos, principais usuárias dos serviços públicos destruídos pelo capital, aviltadas pelo racismo e por toda sorte de opressão da sociedade dividida em classes.
Essa pesquisa ainda explicita que os evangélicos negros em SP somam 67%, equivalente a 43,5% da população. 4 a cada 10 entrevistados pelo Datafolha frequentam igrejas evangélicas desde a infância e 65% destes crentes recebem 1 ou até 2 salários mínimos por mês.
Esses trabalhadores não estão em religiões “ancestrais” ou “menos conservadoras”, como prega a “esquerda” pós-moderna. Eles são a massa do pentecostalismo e seu subproduto, o neopentecostalismo.
Como Marx afirmou, a religião é “expressão da miséria real” ao mesmo tempo que é um “protesto” contra as deploráveis condições de vida do proletariado. E num mundo onde a miséria é a regra geral, a “carência humana pela realidade concreta”, por dignas condições de vida, a sedutora Teologia da Prosperidade ganha mentes e corações de uma classe trabalhadora sem uma direção política comunista e revolucionária.
Diante dessa situação, o que são essas crenças e o que podem dizer sobre a luta de classes?
O Pentecostalismo
O protestantismo nasceu no século 16 das necessidades de reorganização da sociedade promovida pelo capitalismo. Os valores da antiquada Igreja Católica Apostólica Romana não correspondiam às novas realidades materiais desenvolvidas pelo trabalho livre e o poder burguês. Porém, no século 19, os velhos ritos e representações das igrejas históricas do mesmo protestantismo, como Luterana, Presbiteriana, Calvinista, Metodista e Batista, também se mostravam socialmente datados.
A partir de 1875, os seminários de Keswick, criado por evangelistas do nordeste da Inglaterra, passaram a defender a chegada de um “novo Pentecostes”, sendo a fagulha para todo o desdobramento deste movimento religioso que converteria massas de trabalhadores. A saber, na mitologia cristã, em um dia de Pentecostes, comemoração 50 dias após a Páscoa, teria ocorrido o derramamento do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus, como descrito no capítulo 2, versículos 1 a 13, de Atos dos Apóstolos:
“2. De repente veio do céu um som, como de um vento muito forte, e encheu toda a casa na qual estavam assentados. 3. E viram o que parecia línguas de fogo, que se separaram e pousaram sobre cada um deles. 4. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os capacitava. 5. Havia em Jerusalém judeus, devotos a Deus, vindos de todas as nações do mundo. 6. Ouvindo-se o som, ajuntou-se uma multidão que ficou perplexa, pois cada um os ouvia falar em sua própria língua. […] 9. Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, Judeia e Capadócia, do Ponto e da província da Ásia, 10. Frígia e Panfília, Egito e das partes da Líbia próximas a Cirene; visitantes vindos de Roma. […] 12. Atônitos e perplexos, todos perguntavam uns aos outros: “Que significa isto?” 13. Alguns outros, todavia, zombavam e diziam: “Eles beberam vinho demais”.”
Se para o velho catolicismo isso representou, em sua fabricação histórica, o início da Igreja, para o movimento pentecostal significou a ruptura com as igrejas históricas do protestantismo. Em seu revisionismo teológico, passaram a defender que o “dom de línguas” advindo do “Batismo com Espírito Santo” não ficou no registro das sagradas escrituras. A glossolalia, fenômeno de transe ou estado dissociativo, para os crentes seriam manifestações vivas e universais, onde todos, sacerdotes e fiéis, ricos e pobres, mulheres e homens, crédulos e incrédulos, poderiam ser batizados e santificados com tal poder, mediante sua real conversão e fé. Entretanto, o sentido do “dom de línguas”, segundo Atos e as Cartas de Paulo aos Coríntios, diz respeito à idiomas conhecidos, onde incrédulos, como uma prova de seus batismos no Espírito Santo, passariam a falar outras línguas, sem nunca terem as estudado, com fins de evangelização.
As misérias da vida na virada para o século 19 impulsionou a ideia entre esses grupos protestantes que o momento das “chuvas serôdias” estava próximo. Era uma analogia às chuvas de primavera na Palestina histórica, descritas na Bíblia como “últimas chuvas”, o fim dos tempos. Na Escritura, é uma referência à agricultura, como em Deuteronômio, capítulo 11, versículo 14, onde disse Deus através de Moisés: “Então darei a chuva da vossa terra a seu tempo, a temporã e a serôdia, para que recolhais o vosso grão, e o vosso mosto e o vosso azeite”. Na Palestina histórica, essas duas chuvas no outono (temporã) e na primavera (serôdia) são importantes para interromper o verão quente e seco.
Aos pentecostais, com o início destas chuvas é preciso intensificar as Missões de Evangelização pelo mundo, pois, como já estava presente nos seminários ingleses do fim do século 19, o novo Pentecostes anunciava o breve retorno de Cristo. Assim, o movimento pentecostal tem como fundamento a busca pela ampla conversão de pessoas, o testemunho dessas obras e a crença no iminente fim dos tempos com a posterior, volta de Jesus.
Entender essa “ruptura” teológica é importante para vermos como o movimento pentecostal vai ser capaz de cooptar os setores mais explorados nos EUA e no Brasil. Agora, Deus teria concedido os poderes de línguas, cura, profecia e apostolado a qualquer humano batizado no Espírito Santo.
Se as igrejas históricas do protestantismo exigiam uma liturgia consagrada, uma erudita formação teológica – restrita aos setores pequeno-burgueses e intelectuais da sociedade – e a ritos frios e ordeiros, o pentecostalismo possibilitou que negros recém libertos da escravidão, trabalhadores com baixa escolaridade e qualquer outra pessoa alcançasse uma conexão direta com os céus, fazendo sua missão e dando sentido às suas vidas miseráveis na Terra.
Estes passaram a ter propósitos, esperança e a possibilidade de construir comunidades de iguais em torno de algum sentido para suas existências. O pentecostalismo ampliou quem poderia desenvolver sua “autoconsciência e autossentimento”.
Símbolo disso é ato comumente destacado como a “inauguração” do movimento: o “Reavivamento” da Rua Azuza. O papel do indivíduo nesta história foi de William Joseph Seymour, um jovem negro e pobre, filho de ex-escravizados, nascido na Louisiana, que vagava por diversos estados norte-americanos buscando reencontrar parentes e conseguir algum emprego.
Em meio a sua peregrinação por condições de vida, participava de grupos protestantes de orientações restauracionistas, até que foi atingido pela varíola e acabou cego de um olho. Em 1905, ao chegar em Houston, passou a frequentar e a ministrar pregações em uma igreja de uma ex-escravizada chamada Lucy Farrow.
De Houston, Seymour migrou para Los Angeles e, em pouco tempo, abriu uma igreja em um edifício abandonado de um antigo templo da Igreja Metodista Episcopal Africana, localizada na Rua Azuza, n° 312, em 14 de abril de 1906:
“Os cultos ficaram conhecidos pelas manifestações físicas dos crentes, […] que dançavam, pulavam e caíam no chão devido ao poder divino. Um repórter do Los Angeles Times realizou uma matéria sobre a Azuza Street Mission (Missão da Rua Azuza) e afirmou que ali se reunia uma seita de fanáticos que era um grupo com problemas mentais e acusava Seymour de hipnotizar as pessoas através do seu olho acometido de cegueira. Após a publicação do jornal, a igreja passou a receber muitos curiosos que acabaram se tornando membros. Em pouco tempo o Azuza Street Mission ficou conhecida como Apostolic Faith Mission e se tornou a maior igreja de Los Angeles. A igreja se tornou amplamente conhecida após a publicação do jornal The Apostolic Faith” (MARTELLI, 2010, p. 32).
Em menos de 2 anos, o pentecostalismo, congregando os miseráveis que eram segregados por sua cor de pele nos EUA e/ou pela pobreza e desesperança, já estava disseminado em 25 países, incluindo “China, Índia, Japão, Egito, Libéria, Angola e África do Sul” (MARTELLI, 2010, p. 33).
Ressalta-se um elemento importante para a fácil conversão de negros, as quais podemos ver até hoje: a similaridade dos ritos pentecostais com as religiosidades africanas. Ainda assim, outros cultos anteriores também tinham traços parecidos, mesmo sem ligação direta com os ritos africanos e não obtiveram o mesmo sucesso.
Apesar de inúmeras linhas teológicas, o pentecostalismo no Brasil chegou como uma espécie de fio condutor deste processo. Em 1911, desembarcou em
Belém do Pará pelas mãos de dois sueco-americanos, Adolph Gunnar Vingren e Daniel Berg. Estes, por sua vez, conquistaram a fé de mulheres pobres que foram os pilares para a constituição da Assembleia de Deus no Brasil, que além de pentecostal tinha caráter arminiano. Um ano antes, em 1910, outra igreja pentecostal foi inaugurada no país, a Congregação Cristã, de tendência calvinista.
Essa diferença passa uma régua na ação e organização social dessas igrejas pentecostais. Os arminianos defendem o livre arbítrio, afirmando que Cristo teria garantido a salvação da humanidade com seu sacrifício, mas que ela precisaria ser vigiada e assegurada em permanência pelos crentes (Apocalipse 3:20). Já os calvinistas asseguram que Deus escolhe os escolhidos (Efésios 1:4-6). Ou seja, enquanto a Assembleia de Deus tem como foco as missões com a ampla conversão das pessoas, a Congregação Cristã possui um caráter de seita religiosa.
Assim, a Assembleia de Deus cresceu e gerou novas cisões. Mas o agrupamento assembleiano “original” se consolidou como a maior denominação evangélica do Brasil, centralizada na Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) com cerca de 6 milhões de membros, 22 deputados federais, 38 deputados estaduais e 1.010 vereadores, segundo seu site oficial.
Entretanto, um novo fenômeno ganharia espaço a partir dos anos 1970, fundamentado na Teologia da Prosperidade, na Confissão de Fé e na orientação ao domínio político em espécies de cruzadas da última hora.
O Neopentecostalismo
“Lembrem-se: aquele que semeia pouco também colherá pouco, e aquele que semeia com fartura também colherá fartamente.” (2 Coríntios 9:6).
A terceira “onda” protestante é o assim chamado neopentecostalismo. Apesar de atualmente nos templos e cultos a distinção teológica ser quase imperceptível com o pentecostalismo, estudos históricos sobre esses movimentos nos ajudam a entender como tais mitologias afetam não apenas seus crentes, mas compõem a ideologia dominante na sociedade capitalista.
Suas formulações são fruto das necessidades de responder às misérias sociais, além da busca individual de seus profetas por poder em um jogo de barganha com seu próprio deus. Um dos inauguradores dessa tendência mundial, conhecido como o Pai do “Movimento Palavra da Fé”, é o norte-americano Kenneth Hagin, com mais de 65 milhões de livros vendidos, presentes até em escolas públicas.
Junto da Teologia da Prosperidade, inventada pelo também norte-americano Essek William Kenyon, Hagin disseminou a filosofia da Confissão Positiva: decrete e declare o positivo, não confesse doenças ou tragédias, e tudo que desejar lhe será conquistado, pois a palavra tem poder!
Apesar de suas dinâmicas teológicas e de funcionamento, onde “cada grupo adota sua própria liturgia distinta, estilo de governo e costumes particulares” (MARIANO, 1999), o idealismo subjetivo desse movimento abriu fogo não apenas contra a realidade, mas também contra o protestantismo histórico. Com um sincretismo teológico cristão, gnóstico, New Age, da Ciência Cristã, dentre outros misticismos, formou-se o neopentecostalismo.
No Brasil, essa tendência tem como marco as ousadas ações do bispo canadense Robert McAlister, fundador da Igreja de Nova Vida, no Rio de Janeiro. Inicialmente com um programa de rádio, McAlister buscou alcançar uma nova camada social que via os pentecostais com estranheza e ridicularização, a classe média.
Nas palavras do reverendo Caio Fábio, o principal pastor brasileiro até os anos 1990, mas expurgado do meio evangélico por suas críticas às instituições religiosas: “das Assembleias de Deus, McAlister pegou o povo e os ritos populares; dos Presbiterianos ele pegou o dinheiro”.
Nesse sentido, a Igreja de Nova Vida é a raiz deste novo ópio nacional, pois nela converteu-se o principal artífice do neopentecostalismo brasileiro, o Bispo Edir Macedo, que fundou, junto de Romildo Ribeiro Soares, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em 1977. Da IURD, após conflitos entre os dois líderes, surgiu a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) de Romildo, autotransformado em Missionário R.R. Soares, em 1980, que passou a ser o principal divulgador de Hagin no país. De um novo racha, agora dentro da IIGD, foi gerada, pelo autointitulado Apóstolo Valdomiro Santiago, a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), em 1998. Sem cessar, as igrejas neopentecostais penduravam novos letreiros a cada esquina.
Crucial para todas essas igrejas, a Teologia da Prosperidade foi desenvolvida nos anos 1940, nos EUA. Mas tornou-se doutrina nos anos 1970, reunindo crenças de cura, poder e prosperidade material através da fé. As condições brasileiras com uma população paupérrima e a aspiração individual da classe média em enriquecer, imersa na ideologia das classes dominantes, fez as ideias de prosperidade se enraizar nestas camadas sociais.
A pesquisadora Carolyne Santos Lemos explica que a:
“Teologia da Prosperidade parte do princípio de que todos são filhos e filhas de Deus e, portanto, recebem os benefícios dessa filiação em forma de riqueza, livramento de acidentes e catástrofes, ausência de doenças, ausência de problemas, posições de destaque etc. Essa “teologia” oferece fórmulas para fazer o dinheiro render mais, evitar acidentes, livrar-se de doenças e problemas, aumentar as propriedades, além de viver uma vida sem dificuldades” (LEMOS, 2017, p. 12).
Ao neopentecostal, o crente tem o direito e o dever de prosperar na Terra, no mundo material, não aguardando o paraíso posterior. Claro, isso como resultado de ofertar “com alegria”. Os críticos evangélicos, tanto protestantes históricos, quanto pentecostais, afirmam que, enquanto sua teologia é teocêntrica, a teologia neopentecostal é, portanto, antropocêntrica e herética aos Evangelhos, ao Novo Testamento.
Essa apreensão dá a letra do seu alcance e de seus subprodutos, como os fenômenos de coachs, vide Pablo Marçal. Este, por sua vez, ex-membro de uma destas igrejas neopentecostais, adotou no seu Quartel-General do Reino (QGR), movimento criado em 2021 com milhares de membros, o método apresentado nos anos 1990 pelo apóstolo Renê Terra Nova, que lidera o Ministério Internacional da Restauração, sediado em Manaus.
Em sua matéria para o Uol, publicada em 2 de outubro deste ano, a jornalista Anna Satie descreve: “Chamados de “generais”, os membros dizem que o único líder é Jesus, mas naquela noite Marçal era onipresente”. O relato de uma mulher demonstra o caráter do método de Terra Nova utilizado por Marçal: “Ele (Marçal) tem um dom, ele tem revelações. E por isso Deus mostra a ele coisas que não mostra para outras pessoas. Ele fala e a gente faz. Eu nasci e cresci na igreja tradicional Metodista. Em 2022, minha mãe morreu e eu percebi que a igreja me fazia muito mal. O QGR é a alternativa”, afirmou a fiel.
Embora menos conhecido, esse líder neopentecostal, Renê Terra Nova, transformou-se no cérebro do crescimento das Igrejas em Células, que dissolve as velhas estruturas dos templos no método de marketing multinível, como, por exemplo, os “grupo de 12” (G-12), que “formavam” novos discípulos com o programa dos líderes neopentecostais que assumiram o “código”.
Com essa “teologia”, Terra Nova chegou a ser condecorado pelo Embaixador de Israel no Brasil com a Medalha Jerusalém de Ouro, pois foi com suas orientações que o neopentecostalismo fomentou a defesa do Estado de Israel e o turismo evangélico obrigatório, como peregrinação à Jerusalém, que, em 2019, último dado sobre o tema divulgado pelo Ministério do Turismo israelense, levou 62.500 brasileiros àquele país.
Não à toa vemos em templos, manifestações e demais expressões neopentecostais o culto à Israel nos últimos anos. Essa propaganda mobiliza, inclusive entre os jovens adeptos do “movimento social” (neo)pentecostal, a defesa das forças de guerra israelenses, tanto para o massacre aos palestinos, quanto na busca por guerra total do governo Netanyahu no Oriente Médio.
O direto envolvimento destas figuras com o poder político também é justificado por outro pilar deste movimento, a Teologia do Domínio. Ela defende que há:
“sete esferas estratégicas da sociedade que devem ser conquistadas pelos cristãos, a saber: (1) Artes e Entretenimento, (2) Mídia e Comunicação, (3) Governo e Política, (4) Economia e Negócios, (5) Educação e Ciência, (6) Família e, (7) Igreja e Religião. […] Esse pensamento acaba por contribuir para o aumento do interesse das igrejas neopentecostais em lançar candidatos a cargos políticos tanto municipais quanto estaduais e federais” (PINI et al., 2023, p. 5).
Assim, para estes, como Silas Malafaia, a atuação política institucional também é um dever de fé, uma guerra santa, devido a guerra espiritual entre Deus x Diabo pelo domínio do mundo material, enfatizando a “existência de demônios hereditários e territoriais” (PINI et al., 2023) que devem ser combatidos pelos crentes.
Algumas lições da ressonância (neo)pentecostal
Vivemos a crise existencial do capitalismo. Este sistema não permite mais grandes avanços intelectuais, culturais e científicos, nos restringindo a misérias materiais e subjetivas. Em um país atrasado e historicamente dominado pelo misticismo ao invés da ciência, boa parte do proletariado enxerga como saída de sua tragédia o lema neopentecostal: “a morte e a vida estão no poder da língua, e aquele que a ama comerá do seu fruto”, inscrito em Provérbios capítulo 18, versículo 21.
Renato Meirelles, presidente do Instituto de Pesquisa Locomotiva, em sua entrevista no Roda Viva, da TV Cultura, no último dia 7 de outubro, ofereceu uma interessante análise das estatísticas sociais e eleitorais provocadas pelo neopentecostalismo na sociedade brasileira. Na atual conjuntura, são os criminosos apóstolos, bispos, profetas e coachs neopentecostais que conseguem cooptar corações e mentes de milhões de trabalhadores com suas promessas de uma vida de prosperidade na Terra.
Na aparência, é apenas mais uma prisão religiosa, mas, na essência, nos demonstra que uma massa de pessoas está farta da espera por um suposto paraíso pós-morte. De sua forma deturpada e com fins lucrativos, as ideias neopentecostais respondem aos anseios populares de que é preciso arrancar suas conquistas agora, no presente, materialmente.
De certo modo, Pablo Marçal teve 1.801.139 votos na cidade mais importante do Brasil representando essa filosofia e a vontade social por riqueza. Em uma de suas palestras, este estelionatário formado pelo neopentecostalismo, sabiamente ataca Mateus capítulo 19, versículo 24, famosa passagem onde Jesus condena o rico a não entrar no reino dos céus. E em conversa com Leonardo Sale, outro profeta neopentecostal, líder da Igreja Pentecostal Tempo de Milagres (IPTM), Marçal defende a abundância e a fortuna como um Dom Espiritual, baseado em Eclesiastes capítulo 5, versículo 19: “E, quando Deus concede riquezas e bens a alguém e o capacita a desfrutá-los, a aceitar a sua sorte e a ser feliz em seu trabalho, isso é um presente de Deus”. Ele não dá a mínima em dizer heresias, ele se comunica.
Um dos estudos apresentados por Meirelles no Roda Viva, produzido pela Locomotiva com a PwC em 2023, diz respeito à demanda de consumo das chamadas “classes C, D e E”. Ou seja, a massa do proletariado brasileiro, 3/4 dos consumidores nacionais, em grande parte evangélicos, está completamente reprimida e impossibilitada pela crise econômica. A pesquisa demonstrou que nos últimos 10 anos essa esmagadora parcela social sofreu regressão socioeconômica, sinal da “chuva serôdia”, as últimas horas da crise capitalista. Não há dúvidas que essa camada social deseja nada mais que riqueza e bens, prosperidade em vida.
Nesta realidade, independente das cisões por ciúmes entre figuras como Silas Malafaia e Pablo Marçal, Otoni de Paula, Jair Bolsonaro e André Valadão, independente dos líderes desses movimentos, o núcleo das ideias dos coachs da fé e das confissões positivas ressoam na classe trabalhadora não por serem verdade, mas por prometerem tirá-los das fileiras de despossuídos.
Diante disso, cabe aos comunistas apreender material e cientificamente esses movimentos históricos e suas repercussões na classe trabalhadora, pois não analisamos com generalizações levianas ou senso comum. Combatemos essas atrasadas ideias entendendo seus processos como resultados da luta de classes.
Explicamos aos trabalhadores, crentes e não crentes, que não queremos caridades ou mera partilha entre ricos e pobres, muito menos um futuro paraíso intangível. Queremos e devemos conquistar a completa supressão da miséria, da divisão entre ricos e pobres, que só é possível com o fim da propriedade privada dos grandes meios de produção, com a ação consciente dos trabalhadores para sua emancipação.
Sim, é a ação humana a responsável por mudar a realidade, não como uma simples confissão positiva pela palavra, mas pela prática guiada por ideias científicas, a única verdadeiramente antissistema, o marxismo. Em combate ao obscurantismo e a miséria filosófica, temos como tarefa conquistar as massas trabalhadoras, que hoje depositam suas esperanças nessas ideias nefastas, à luta pelo comunismo internacional.