O Programa de Transição é o principal documento de fundação da 4ª Internacional. É a base programática dessa nova organização, adotada em uma reunião entre revolucionários ocorrida num subúrbio de Paris no dia 3 de setembro de 1938.
Escrito por Leon Trotsky, o documento analisa a situação mundial da época em uma perspectiva histórica e com uma concepção materialista-dialética, ou seja, marxista. Além disso, faz a ligação entre as condições de vida objetivas e subjetivas da classe trabalhadora e um conjunto sintetizado de ideias, bandeiras e métodos de ação para a conquista do poder pelo proletariado.
O Programa de Transição, portanto, está intimamente vinculado à necessidade de se construir uma nova Internacional revolucionária, tendo em vista a falência da 2ª e da 3ª Internacional e a decadência política das entidades sindicais, cada vez mais atreladas à burguesia e seu Estado.
É uma obra genial, pois resume com rigor científico fenômenos políticos inéditos, como o fascismo e o stalinismo, enriquecendo a teoria marxista ao mesmo tempo em que fornece um guia para a ação do proletariado na sua luta pela emancipação e buscava preparar uma vanguarda revolucionária para atravessar aquele turbulento período, no qual os tambores de uma nova guerra mundial voltavam a rufar forte em meio à maior crise do capitalismo até então.
Neste artigo, vamos tratar em linhas gerais um pouco mais sobre o contexto em que o livro foi escrito, além do conteúdo e atualidade do Programa de Transição.
Um novo programa para uma nova Internacional
Em 1933, Adolf Hitler chega ao poder na Alemanha, desencadeando um brutal esmagamento das organizações operárias, integrando os sindicatos ao Estado, suprimindo e censurando toda a imprensa operária e colocando o Partido Social-Democrata e o Partido Comunista na ilegalidade. Ao fechar a via para uma revolução socialista na Alemanha, é fundado o 3º Reich e uma poderosa máquina de guerra começa a se estruturar.
A derrota da classe trabalhadora alemã foi a pá de cal na 3ª Internacional como instrumento revolucionário, afinal, a política sectária desenvolvida pelo Partido Comunista Alemão, sob o comando da burocracia de Moscou, classificava as organizações social-democratas de “social-fascistas”, bloqueando assim o caminho para o estabelecimento de uma frente única proletária para enfrentar a ascensão do Partido Nazista.
Trotsky e a Oposição de Esquerda emitiram diversos alertas sobre a política equivocada de Stalin e dos líderes alemães do PC, buscando reorientar o trabalho dos comunistas e salvar a revolução. Contudo, os apelos foram em vão e não encontraram eco no interior da 3ª Internacional, nem sequer um setor do aparato se rebelou. A partir daí, o que era uma consideração teórica passa a ser uma batalha de vida e morte para o proletariado: encontrar um novo eixo de independência de classe, reunir a vanguarda revolucionária e construir uma nova Internacional.
Esse é o caminho que o exilado Trotsky irá trilhar, contra tudo e contra todos, junto com alguns poucos militantes oposicionistas espalhados pelo mundo.
Por sua vez, o fracasso do esquerdismo resultou em um giro burocrático direitista, ou seja, a 3ª Internacional passa a defender a política de “Frentes Populares”, que nada mais é do que a aliança dos partidos comunistas com os partidos social-democratas e setores burgueses supostamente democráticos. Assim, com a desculpa de combate ao fascismo, a burocracia do Kremlin buscava um acordo com as potências ocidentais capitalistas, como França e Inglaterra. Sem ameaçar a democracia burguesa, as Frentes Populares foram úteis para bloquear a revolução na França e totalmente inúteis para frear o avanço do fascismo na Espanha, por exemplo. Portanto, serviram apenas para manter de pé o regime da propriedade privada dos meios de produção e sabotar o proletariado.
Assim, diante de uma crise capitalista de enormes proporções e da ameaça iminente de guerra, com os partidos social-democratas, stalinistas e mais os sindicalistas controlando o movimento operário sem oferecer uma saída positiva para a situação, Trotsky vai batalhar pela fundação da 4ª Internacional e trabalhar para dar a essa nova organização um programa revolucionário.
Um programa de reivindicações transitórias
Trotsky parte de algumas premissas para iniciar o documento: as premissas objetivas e subjetivas da revolução. Para o revolucionário russo, “a premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que pode ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais ao crescimento da riqueza material”. Por outro lado, se as condições objetivas para a revolução “não estão somente maduras, elas começam a apodrecer”, não se pode dizer o mesmo das condições subjetivas, ou seja, da liderança do proletariado em luta. O partido revolucionário está ausente ou não é suficientemente capaz de influenciar a situação, enquanto o papel desempenhado pelas direções das organizações tradicionais do proletariado leva os trabalhadores a uma derrota após a outra.
Por isso, Trotsky resume que “a situação política mundial no seu conjunto se caracteriza, antes de mais nada, pela crise histórica da direção do proletariado”. Mas ao mesmo tempo lembra que as leis da história são mais fortes que os aparelhos contrarrevolucionários, ou seja, apesar das direções, é a luta de classes que move a humanidade e, portanto, ainda estava (e está) aberta a possibilidade de os trabalhadores encontrarem uma saída.
Para tanto, Trotsky resolve um problema postulado pela social-democracia que estabelecia um programa mínimo e um programa máximo a ser apresentado aos trabalhadores. O programa mínimo eram as demandas imediatas e mais sentidas do proletariado, como emprego, salário, melhores condições de trabalho e de vida. O programa máximo eram as tarefas socialistas como nacionalização sob controle dos trabalhadores, organização do proletariado como classe dirigente e supressão da burguesia.
Evidentemente, a social-democracia abandonou o programa máximo para se concentrar no programa mínimo e, assim, batalhar para reformar o capitalismo e não para derrubá-lo. Porém, se no auge do capitalismo essa perspectiva reformista já tinha se mostrado uma traição de classe, na época imperialista, em que todas as conquistas alcançadas pelo proletariado são questionadas ou as que são obtidas com uma mão são retiradas pela outra logo em seguida, a separação entre programa mínimo e programa máximo não fazia mais sentido. Era preciso estabelecer uma ponte entre as demandas mais urgentes dos trabalhadores e a conquista do poder.
Assim foi desenvolvido um sistema de mobilização das massas através de reinvindicações transitórias. Cada “mínima” reivindicação acaba se chocando com as condições degradantes do capitalismo e, por isso, contém uma chama revolucionária. Mobilizar os trabalhadores por demandas concretas e ligá-las à necessidade de acabar com o mal pela raiz é a tarefa da 4ª Internacional.
Trotsky elenca vários pontos programáticos que podem cumprir esse papel e quase todos eles continuam atuais. A URSS não existe mais e há todo um capítulo dedicado à luta pela revolução política contra a camarilha stalinista, mas os pontos mantiveram toda sua força e validade histórica no período pós-segunda guerra mundial e que preservam sua força ainda hoje nos países de regime operário, deformado burocraticamente desde seu nascimento, como a Coreia do Norte, por exemplo. Também não há mais países com sistemas fascistas estabelecidos no poder hoje, mesmo que alguns regimes se assemelhem a eles ou almejem se tornar, mas o aprendizado de como combater o fascismo e regimes ditatoriais e totalitários também está presente no livro.
Já as tarefas relacionadas aos países de capitalismo atrasado conservam toda a sua integridade, bem como aquelas relacionadas à luta dos operários: como escala móvel de salários (medida popularizada no Brasil como gatilho salarial), escala móvel das horas de trabalho, o trabalho nos sindicatos (e a situação dos sindicatos na época imperialista), os comitês de fábrica e o controle operário, a expropriação de certos grupos capitalistas e dos bancos privados, os piquetes de greve, os destacamentos de combate, a milícia operária, o armamento do proletariado, a aliança dos operários e camponeses, a luta contra o imperialismo e a guerra, o governo operário e camponês, os sovietes. Enfim, todos esses pontos do Programa de Transição são imprescindíveis para a formação teórica e a luta dos revolucionários atualmente, ainda mais agora em que a agonia e a crise do capitalismo estão escancaradas com a pandemia do novo coronavírus e, mais uma vez, ameaçam conduzir a humanidade a uma catástrofe.
Um chamado para a vitória
Por fim, Trotsky alerta contra o oportunismo e o sectarismo: doenças que podem infectar até as mais bem preparadas organizações, caso não sejam detectadas e sanadas em todas as fases pelas quais passa a construção de um partido revolucionário.
Reclama ainda lugar à juventude, às mulheres trabalhadoras e a todos os oprimidos no seio da 4ª Internacional e conclui com um chamado, tal qual o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels:
“operários e operárias de todos os países, organizem-se sob a bandeira da 4ª Internacional! É a bandeira de sua próxima vitória!”
Mas para os céticos, que acham que a tarefa de construir uma Internacional revolucionária sob esses aspectos e princípios estabelecidos pelo Programa de Transição é impossível e que a Corrente Marxista Internacional — que se reivindica herdeira desse programa — é muito fraca, podemos responder tal qual Trotsky respondeu:
“Se nossa Internacional é ainda fraca em número, ela é forte pela doutrina, pela tradição, pelo programa, pela têmpera incomparável de seus quadros. Aquele que não vê isso hoje que continue afastado. Amanhã, isso será mais visível”.