No dia 11 de outubro, São Paulo viveu um caos climático com tempestades e vendavais que deixaram milhares de pessoas sem energia por sete dias. Uma frase praticamente igual iniciou um artigo nosso em novembro de 2023, quando a cidade passou por outro apagão tão calamitoso quanto. Os números foram escandalosos em ambas as situações: o apagão de um ano atrás deixou 3,7 milhões de pessoas sem luz, 40% dessas por mais de 24 horas, com 500 mil no escuro após três dias e várias por seis; na atualização de outubro de 2024, atingiu 2,1 milhões de pessoas, com 40% sem luz por mais de 42 horas, 400 mil sem luz após três dias e 36 mil após seis. Tudo isso ocorrendo em meio às eleições municipais.
Ambos os apagões expuseram a Enel, empresa italiana que em 2018 assumiu a distribuição de energia da capital do estado e região metropolitana. Expuseram, portanto, o resultado de estar à frente da operação de um serviço essencial para a vida de milhões de pessoas, uma empresa privada que tem como objetivo a busca por lucro, e não garantir o serviço em si. Entender as origens dessa empresa, as condições de crescimento de seu capital e suas estratégias é essencial para compreendermos sua atuação e relação com o governo.
Quando a forte chuva e os vendavais subitamente atingiram a cidade, as mídias não falavam de outra coisa: a falta de luz no epicentro financeiro do país, durante eleições municipais projetadas nacionalmente, fez suscitar por todos os lados críticas à Enel e a Ricardo Nunes (MDB), atual prefeito e, à época, candidato à reeleição. O político se esquivou, é claro, e focalizou o problema como falha da empresa, assim como fez Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador do estado, e um dos principais representantes, a nível nacional, de projetos privatistas. Mas o que isso significa? Que o prefeito e o governador, antes amantes das privatizações, agora caíram na real e defendem a rescisão do contrato com a empresa privada para reestatizar o serviço? Veremos o porquê das críticas de última hora de ambos os indivíduos não terem nada a ver com preocupações reais com o sistema e a prestação do serviço público.
Toda esta situação também serviu para exemplificar os limites rasos do discurso e da atuação de uma esquerda conciliadora e desmoralizada entre a classe trabalhadora, que descrevemos com maior profundidade antes mesmo das eleições. Chegaremos lá, mas veremos como Boulos (à época candidato à prefeitura paulistana pelo PSOL e eleito para o segundo turno) não conseguiu tirar qualquer proveito da profunda insatisfação das massas com o governo de Nunes naquele momento.
Quem é a Enel?
Apesar de ser uma empresa privada que ganhou contratos de concessão pública no Brasil e em outros países da América do Sul, a Enel é, em essência, uma companhia do Estado italiano, com filiais e subsidiárias espalhadas pelo mundo — o governo da Itália é seu sócio majoritário, com 23,6% das ações da companhia. É, portanto, um braço da burguesia italiana pelo mundo afora.
Em profunda expansão internacional nos últimos 30 anos, quando a empresa teve sua abertura na bolsa de valores, a Enel atua em diversos países além do Brasil, com destaque na América do Sul e Central: Peru, Colômbia, Argentina, Chile, Panamá, Costa Rica e Guatemala. Por aqui, além dos 26 municípios metropolitanos e a capital de São Paulo, a empresa é responsável pela distribuição de energia elétrica em 66 municípios do Rio de Janeiro (75% do estado) e em todo o território do Ceará.
Só que os números sobre sua capacidade de expansão pelo país são o oposto dos números sobre a qualidade do serviço prestado: quedas frequentes, processos no Judiciário, multas milionárias e ameaças dos governos de arrancá-la das operações são alguns dos traços que representam a atuação da Enel. Segundo artigo da CNN e outro do O Globo, no RJ , a prefeitura de Niterói aprovou relatório final de CPI para remover a empresa do serviço, além de, em Paraty, ter sido processada pelo MP-RJ. No Ceará, há cinco meses, a agência reguladora do estado a multou em R$ 28 milhões, pouco tempo depois de ter sido registrado um aumento de 82% no número de reclamações registradas pelo serviço precário. E o caso derradeiro: em Goiás, as constantes quedas no centro do Agronegócio fizeram com que a empresa rapidamente fosse substituída por outra: a Equatorial, conhecida como a mais nova sócia majoritária da Sabesp.
O serviço desastroso não é exceção, mas regra. E isso se reflete nas finanças.
Apesar do seu lucro geral, há evidências materiais que expõem uma empresa tentando cortar gastos e melhorar seus resultados financeiros. Em 2024, o lucro de R$ 480,492 milhões representou uma queda de 46% em comparação ao ano anterior. No Rio, havia registrado prejuízo de R$ 10 milhões em 2023, que agora saltou para R$ 60 milhões. Na lógica do capital, uma empresa com quedas na taxa de lucro precisa necessariamente encontrar saídas para voltar a lucrar: agudizar a exploração dos funcionários e cortar gastos se tornam as medidas cabíveis para gerar a mais valia necessária. De 2018 (ano da concessão) até agora, a Enel saiu de cerca de 27 mil funcionários para 15.721 – uma queda brutal de 55% no número de empregados que poderiam, por exemplo, atuar no restabelecimento mais eficiente da energia. E não se engane: dos 15.721, apenas 4.039 (32%) são funcionários próprios, com todo o resto terceirizado.
O dado fica mais escandaloso quando se sabe que a atuação da empresa cresceu 19% desde que assumiu o serviço. Há mais trabalho e menos trabalhadores. E esta falta é também um descumprimento de promessa com o Ministério Público: após o apagão de 2023, a Enel acordou com o governo que, em casos de emergências, trabalharia com mais funcionários. No último caso de outubro, não só não trabalhou com mais, como trabalhou com menos e o restabelecimento da luz na cidade foi ainda mais demorado.
Fora o impacto claro que a falta de empregados teve nos dois apagões, as falhas chegam em diversos outros pilares de sua atuação. Segundo a CNN, o Tribunal de Contas de São Paulo denunciou a empresa em diversos pontos: houve déficits de investimento de 32% em relação ao que havia sido prometido, aumento no tempo de resposta a emergências em 72% e um desempenho 20% abaixo da meta regulatória da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O índice de satisfação do consumidor está em nível crítico e a Enel acumula multas que somam R$ 355 milhões apenas em São Paulo.
Todo esse cenário nos ajuda a entender um aspecto essencial do apagão e as falhas: a lógica capitalista da busca por lucro a todo custo obriga a empresa, em seu cálculo matemático, reduzir gastos, contratar poucos, explorar todos e entregar um serviço inferiorizado. E não nos enganemos com a atuação do poder público, das agências reguladoras, dos governadores, prefeitos e representantes do Estado em todas essas pretensas pressões: as ameaças não são cumpridas, as multas são recorridas e as encenações logo, logo passam.
As encenações de Ricardo Nunes
Isso se refletiu claramente no caso paulistano. As movimentações feitas pelo governo de Tarcísio e Nunes, com a entrada na Justiça pela caducidade do contrato de concessão, por exemplo, foram uma tentativa de demonstrar que havia algo sendo feito, que o governo estava preocupado com a qualidade do serviço ou com a população. Agências reguladoras ameaçaram a empresa, deram ultimatos, abriram inquéritos etc. Tudo isso não teve qualquer resultado efetivo.
E mesmo que fossem reais as intenções de tirar a Enel da concessão, nada mudaria para nós. Outra empresa compraria a chance de ser a concessionária de energia e seguiria o mesmo roteiro: cortes de pessoal e gastos, aumento de atuação mesmo sem estrutura equivalente e tentativas, por vezes frustradas, de aumento do lucro líquido.
Além disso, Tarcísio é hoje um dos mais importantes representantes do projeto privatista no Brasil. A privatização de linhas da CPTM e do Metrô, da Sabesp, serviços escolares, entre diversos outros contratos em andamento é a evidência mais concreta que temos para concluir que qualquer insatisfação do governador do estado com a Enel será irrelevante para produzir mudanças reais no serviço ou política adotada.
Reação da classe trabalhadora e prejuízo à pequena burguesia
Mas a falta de energia impacta sempre os mais vulneráveis na sociedade. São os trabalhadores nas periferias e bairros proletários que sofrem mais com a falta de um serviço público de qualidade, pois não têm saídas. Segundo o jornal Espaço do Povo, em resposta à falta de luz generalizada, houve mobilizações em vários cantos da cidade:
“Na zona sul, moradores do Campo Limpo, atrasam cerca de 18 linhas de ônibus ao fechar parcialmente a Estrada do Campo Limpo. No Valo Velho, moradores fizeram uma passeata pedindo o restabelecimento da energia elétrica. No ABC, moradores de São Bernardo fecharam a Avenida Caminho do Mar. Já em Diadema e na Lapa, a polícia foi chamada para dispersar manifestantes que fechavam ruas locais.
No domingo (13) moradores do bairro de Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo, fizeram uma manifestação contra a demora na normalização do serviço de energia elétrica no bairro, a Estrada Ecoturística foi fechada na Vila Marcelo com galhos em chamas. Também no domingo, moradores da Ilha do Bororé, no Grajaú, fecharam o Rodoanel Mário Covas em protesto.” (grifos nossos)
Também no Marsilac, extremidade final da zona sul da capital, mais precisamente no “47” – aglomerado de casas, casebres e barracos que está em pleno crescimento há 20 anos de forma totalmente desorganizada e desassistida, gerando uma pequena favela populosa – houve fechamento da estrada e revolta.
A agudização das condições materiais de vida levou à revolta e a uma auto-organização espontânea da classe trabalhadora para expressar sua insatisfação. Nesses momentos, fica evidente a necessidade do partido: é o único que pode liderar e transformar tal tipo de espontaneidade em movimento revolucionário. A insatisfação contínua com os serviços de péssima qualidade entregue pelas empresas privatizadas pode fazer com que os trabalhadores passem a não só se revoltar com casos específicos, mas com todo o mecanismo. Em São Paulo, em um cenário onde o transporte público, a energia e até a água se tornam serviços privatizados e ainda mais precarizados, a revolta da população tende a se intensificar. É papel dos comunistas liderar situações espontâneas como essas.
É também nesses momentos em que a pequena burguesia se aproxima mais dos trabalhadores, pois sofre materialmente as perdas perpetradas pelo sistema capitalista. No contexto do apagão, principalmente os donos de pequenos negócios não tiveram nada a comemorar – em especial os bares, restaurantes, pequenos mercados e todos aqueles estabelecimentos que dependem dos freezers ligados. Foi assim em novembro de 2023 e agora em outubro. Segundo dados da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), da sexta-feira (11/10) até o fim da terça (15/10), as perdas de faturamento bruto já somavam pelo menos R$ 1,82 bilhão. A queda prejudicou frontalmente o Dia das Crianças e a área de serviços como um todo. Estoques de restaurantes nem foram incluídos nesse cálculo prévio, por exemplo, e esse número certamente foi muito maior.
E o Boulos?
É nesse contexto que podemos falar brevemente da pífia atuação de Boulos que, durante o ocorrido, estava em campanha contra o prefeito que nada fez além de encenações para resolver o problema que a sua cidade enfrentava. Em vez de dar um cavalo de pau em sua campanha, se colocar de verdade ao lado dos trabalhadores revoltados, o candidato do PSOL continuou com sua estratégia eleitoreira. Não estava em campanha contra as privatizações, o sistema capitalista, a precarização dos serviços públicos, e nem por mudanças radicais. Durante todos os dias do apagão, falava que Nunes não tinha feito a poda das árvores, que a responsabilidade era da gestão, que a cidade estava sem prefeito etc. Algumas palavrinhas contra a Enel, uma palavrinha que parecia ser contra privatizações; nenhuma palavra contra o sistema, nenhuma palavra a favor da reestatização do serviço de distribuição de energia na cidade de São Paulo, nenhuma palavra para se mostrar como uma alternativa revolucionária.
Se limitou a fazer o jogo politiqueiro que estamos acostumados e a permanecer desconectado da classe trabalhadora e suas mais óbvias e imediatas reivindicações. O discurso contra as privatizações era radical demais para o candidato que estava focado em se mostrar o lacaio perfeito dos burgueses se fosse dada a ele a chance de se tornar seu braço direito na administração da metrópole.
Como enfrentar de fato essas situações?
A questão climática deixou de ser apenas uma ameaça há muito tempo. Se converteu em realidade que precisa ser frontalmente enfrentada. Eventos como os vendavais e a forte chuva do fatídico dia de outubro vão voltar. Só que se repetirá também a incapacidade do Estado burguês e das empresas privadas em resolver a questão.
Se Boulos, Ricardo Nunes, Tarcísio e órgãos do Estado não conseguem resolver esse problema, os comunistas podem. Fortalecer a luta contra as privatizações é um dos caminhos que temos para enfrentá-lo. No caso de São Paulo em especial, isso se reflete nos atos contra as privatizações e pelo Fora Tarcísio, que estão sendo realizados pela OCI desde junho. A mobilização em frente única em torno desta reivindicação é uma das formas de frear o projeto privatista que só piora as condições de vida dos trabalhadores, seja em trens superlotados, curtos-circuitos em vagões ou dias sem luz. Junte-se aos comunistas para lutar pela reestatização dos serviços públicos e tirar do governo aqueles que lutam para dar tudo de mão beijada aos burgueses!