Produzido exclusivamente para o Netflix e lançando oficialmente no festival de Cannes em 2017, o filme escrito e dirigido pelo cineasta sul-coreano Joon-Ho Bong foi alvo de uma grande polêmica. Os produtores não tinham pretensões de lançá-lo nos cinemas, então muitos começaram a questionar a presença de obras assim em Cannes. A nova plataforma surge para muitos como uma ameaça, pois os consumidores de audiovisual podem substituir o cinema por tablets, computadores e até celulares. A experiência coletiva dos cinéfilos, em assistir um filme em uma grande sala escura estaria perdendo espaço para algo mais solitário, no intervalo do trabalho, no ônibus ou no sofá da sala.
É preciso entender a forma e conteúdo em uma relação dialética, não separada. A produção de um filme para uma tela grande, como para TV é diferente em cada meio. A diferença não está somente na “técnica”, mas também no conteúdo. Um dos grandes problemas da Netflix e do consumo de audiovisual por celulares, tablets e computadores, por exemplo, é limitação do enquadramento dos planos. Ver um plano aberto ou de conjunto em um celular ou tablet é diferente de ver a mesma imagem em uma tela grande.
Ao mesmo tempo, quando o cineasta tem consciência das limitações do meio e domina a técnica, a obra pode adquirir uma experiência única. Isso não acontece sempre, mas Joon-Ho Bong mostra porque é um grande cineasta. Ele utiliza essa limitação ao seu favor. Reparem como alguns closes parecem selfie tirados de celular ou como os ângulos ao acompanharem os personagens são semelhantes a quando gravamos algum momento por meio da tela do celular ou tablet. Elas também nos aproximam das ações, quando a menina persegue o caminhão, a câmera sobe e desce, sentimos o movimento da corrida.
A forma de filmar acrescenta na comoção ao acompanharmos Mija, interpretada por Ahn Seo-Hyun, em sua jornada. Semelhante ao Hospedeiro (2006) e Expresso do Amanhã (2013), obras anteriores do cineasta, Okja cria uma metáfora sobre a política, uma mistura de ficção científica e fantasia.
A trama começa com a posse da nova diretora da empresa de alimentos Mirando. Ela anuncia um novo animal, qual será uma revolução na indústria pecuária. Além de serem grandes, não destroem o meio ambiente e “ainda são gostosos para cacete”. Ou seja, um exemplo perfeito de empresa com “consumo sustentável”. Para promoverem a nova descoberta, eles farão uma competição, no qual produtores de 25 lugares do mundo irão criar leitões e em 10 anos saberemos quem recebeu o prêmio do animal mais perfeito para o consumo.
Um desses animais vai para uma montanha na Coreia do Sul e é criada por uma menina chamada Mkija e seu avô. O animal chamado Okja chegou quando ela era muito pequena e a ajudou a superar a ausência dos pais falecidos. A porquinha e a menina cresceram juntas e construíram uma relação familiar. Isso fica claro, quando ela sai de casa para dormir com Okja ou quando a abraça após passarem por uma situação perigosa.
A grande vilã do filme é a executiva Lucy Mirano, interpretada por Tilda Swinton. Ela realiza apresentação do novo “produto”, na antiga empresa do pai, onde segundo ela, muitos trabalhadores perderam a vida. Apesar do ambiente enferrujado e sujo, o telão de apresentação é extremamente colorido, cheio de animações que saltão para fora da tela. A apresentação mais parece um evento de moda, não de um frigorífico. A executiva é alguém extremamente descolada da realidade. Com problemas com o pai falecido, na apresentação parece querer não apenas dar um tom “artístico” para a empresa, mas também conquistar o amor das pessoas.
A intenção do filme aqui parece mostrar o quanto essas ações de marketing são vazias, pois lhes faltam sentimentos verdadeiros. Não importa o quanto calorosa pareça o acolhimento da empresa, elas sempre são acompanhadas pela frieza da venda de produtos e do capitalismo. Aparentemente tudo está bonito para esconder a sujeira.
Essa frieza pode ser notada nos ambientes durante o filme. A empresa Mirando e a cidade parecem não ter cor, tudo está tomado de uma apatia geral, enquanto o frigorífico e o lugar no qual os animais são presos é sujo e escuro. Tudo muito distinto da casa de Mija na montanha com rios e muito verde, onde tudo parece familiar e vivo.
As cores acrescentam um significado não apenas nos locais, mas na personalidade dos personagens com o figurino. Quando Mija vai para Seul, usa uma jaqueta vermelha e calça lilás, algo que a destaca em meio ao ambiente cinza da cidade ou frio do laboratório. A menina é a única personagem não caricata, ela nos parece transmitir, sem ser piegas, a força do amor e da sinceridade, mas também da esperança. Os outros personagens são exagerados em seus gestos e roupas justamente para destacar suas características, a atuação de Mija não precisa disso, pois para transmitir algo mais próximo do real é preciso de uma atuação naturalista.
Muito diferente de Tilda, que é apenas um simulacro, cheia de design, cores e vazia por dentro, sem conteúdo algum, uma caricatura dos burgueses “estrelas” como Jobs e Zuckerberg. Já Jay, Paul Dano, parece um James Bond ambientalista, sempre cheio de si, de terno e pronto para agir. Jhonny, Jake Gyllenhaal, é o mais caricato de todos, pois talvez isso represente o quão ridículo são os programas quando utilizam os animais para audiência, muitas vezes violando leis. Ao mostrá-lo como um palhaço, Bong quer mostrar o quanto sensacionalista essas subcelebridades são e como soa hipócritas os discursos em defesa dos animais, ao se associar as empresas que atacam a natureza.
Um ponto interessante do filme é o grupo de ambientalistas. Eles utilizam a tática de “ações diretas” para denunciar os crimes contra os animais e toda a destruição do meio ambiente. Querem atacar os símbolos e por meio da propaganda mostrar ao mundo o quão maléfico são as empresas. Apesar de essa tática possuir efeitos importantes de propaganda em alguns casos, não elimina a exploração animal. Alguns desses grupos, como o próprio filme mostra são sectários e não passam de seitas. A propaganda funciona como alerta e até conscientiza alguns setores da população, mas caso nosso objetivo seja realmente mudar a sociedade é preciso ter o controle de toda a indústria.
Consumir ou não carne é um debate legítimo a ser feito, mas ao qual a grande massa da população não consegue ter acesso. Apenas em uma sociedade socialista, no qual todos possam comer de tudo, no qual os alimentos sejam um direito, não um produto de consumo, nós conseguiremos mudar os hábitos alimentares de toda a população. Ou seja, o debate sobre a libertação animal passa pelo controle da economia pelos trabalhadores.
Ao fim, Okja firma a carreira de Joon-Ho Bong no ocidente como um cineasta dedicado a utilizar alegorias para tratar de temas atuais.
* João Diego Jornalista e especialista em cinema pela Universidade Tuiuti do Paraná.