Ópio do povo? Marxismo e Religião

Durantes os quatro dias da Universidade Marxistas Internacional 2020 os militantes da Esquerda Marxista, seção brasileira da Corrente Marxista Internacional (CMI) estão empenhados em disponibilizar em nossa página breves relatos dos 16 temas tratados na Escola. O objetivo é estimular nossos leitores a aprofundar o conhecimento sobre nossas posições e a juntarem-se a nós na construção da CMI. Para sua localização procure pelo dia e o tema que deseja fazer a leitura.

Na manhã do dia 28/7, no quarto e último dia da Universidade Marxista Internacional, ocorreu o debate “Ópio do povo: Marxismo x Religião”. O informe foi apresentado por Alex Grant, da seção canadense da Corrente Marxista Internacional e seguiu-se um rico debate, que não apenas ajuda aos que ainda têm concepções religiosas, mas também nossos camaradas marxistas a entenderem a melhor maneira de abordar o tema em seus debates com os trabalhadores e a juventude.

O materialismo e “Deus”

O marxismo tem base filosófica materialista. Para um materialista, Deus não existe. Nenhum deus, de nenhum tipo. O próprio marxismo nasce da ruptura de seus precursores com a filosofia idealista. O marxismo só tem oportunidade de ver a luz do dia após Marx ter virado a dialética hegeliana de cabeça para baixo, extraindo dela a concepção de uma “Ideia” anterior à matéria, apresentando ao mundo uma filosofia que explica que toda ideia é produto da matéria.

O materialismo deriva da compreensão de que nada é “sobrenatural”. Como afirmou Alex em seu informe?

O pensamento não ocorre sem cérebro. O cérebro não ocorre sem um corpo. Nenhum corpo sem comida. E nem comida sem ambiente material. (…) Tudo vem da natureza e é potencialmente compreensível observando e analisando a natureza”.

No princípio de sua existência, a humanidade se colocou perguntas que ainda estavam muito longe de ter condições objetivas e subjetivas de responder. Por que existimos? Por que o mundo existe? Quem criou o mundo e o próprio ser humano? As próprias perguntas eram um passo revolucionário. Mas as respostas eram apenas as possíveis para tal estágio de desenvolvimento. As ideias sobre deuses são fruto da imaturidade do pensamento humano em seu estágio primitivo. Ela ainda engatinhava em sua aventura na busca do domínio da natureza.

As principais religiões ocidentais dizem que “Deus criou o homem à sua própria imagem“. Mas um deus viking se vestia como viking, um deus grego como grego e assim por diante.

Não é deus que cria o homem à sua imagem, mas o homem que cria deuses que se parecem com eles. Com o desenvolvimento das forças produtivas, da técnica, com aumento da produtividade do trabalho humano, deu-se também o desenvolvimento da ciência e da filosofia. O ser humano tornou-se cada vez mais capaz de substituir o sobrenatural por teorias científicas, e mesmo a pergunta sobre quem nos criou teve uma resposta: a seleção natural, um processo evolutivo. A própria consciência humana tem uma origem e até uma história. E a história do desenvolvimento de nossa consciência evoluiu, em certa altura, até a religião! A religião é nada mais que um estágio da consciência humana em seu processo evolutivo. Um estágio em fase de superação.

Cabe, então, uma pergunta essencial: Se já temos ciência capaz de responder a tantos fenômenos, por que a religião sobrevive?

Alex Grant apresentou a questão citando Napoleão, que disse: “Na religião, vejo a ordem social. A ideia do céu salva os ricos de serem massacrados pelos pobres”.

As massas não superam as ilusões religiosas porque a sociedade de classes separa as massas do conhecimento científico e oferece a ela unicamente uma ideologia que a mantém dominada.

O camarada citou Marx neste ponto:

O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de um mundo sem alma. É o ópio do povo.

E complementou: “A questão principal não é se existe vida após a morte, mas se existe vida antes da morte”.

A Igreja e a sociedade de classes

Mas a necessidade de explicar o mundo por meio de deuses e do sobrenatural leva ao desenvolvimento da Igreja, justamente com o nascimento da sociedade de classes.

Aqui é criada uma classe de sacerdotes que, curiosamente, acabam desenvolvendo a própria ciência (astronomia, matemática etc), pois são os que dispõem de tempo livre, vivendo do produto do trabalho das classes que trabalham. Esse conhecimento, capacidade de previsão dos fenômenos, lhes confere poder ante os que trabalham para sustentar seu tempo ocioso, reforçando a divisão social do trabalho entre as classes.

A história da humanidade é a história da luta de classes e a história da religião também. O cristianismo surgiu como um movimento de massa revolucionário.

Os cristãos, no período inicial, apresentavam-se como aqueles que compartilhavam toda a sua riqueza. Foram severamente oprimidos, o que aumentou a atenção que recebiam.

Quando a crise no Império Romano provocou uma nova e determinante divisão na classe dominante romana, Constantino se apoiou nos cristãos para conquistar o poder e trabalhou para converter o cristianismo na religião estatal romana.

Quando da queda do Império Romano, o cristianismo católico com apenas um deus provou-se ser a religião perfeita do feudalismo. Uma única igreja, um único Deus, um Rei.

Foto: Mariusz Matuszewski, Pixabay

Mas quando, no seio da sociedade feudal, desenvolve-se a burguesia, a coisa muda. Lutero traduziu a Bíblia no século XVI e tirou dos sacerdotes o monopólio da interpretação dos escritos sagrados, até então sempre em latim. Tal qual na história primitiva, o deus protestante foi construído à imagem e à semelhança do burguês, permitindo a usura e dispensando pagamentos para a salvação da alma.

A luta de classes se expressa no seio do pensamento religioso. Tal qual o rei, o senhor feudal e o burguês, o camponês e o proletário também buscaram, em vários momentos, dar a este deus suas próprias feições de trabalhador.

Vimos a Teologia da Libertação na América Latina e o papel que cumpriu, inclusive no Brasil, na construção do MST e do próprio PT. Sabemos também dos trabalhadores que seguiram o Padre Gapon, resultando no Domingo Sangrento, em 1905, o grande ensaio da Revolução Russa.

Os burgueses revolucionários à cabeça da revolução inglesa ou francesa eram ateus e a contrarrevolução apoiava-se na tradição religiosa. Mas, tão logo se tornou senhora da situação, a burguesia precisou reconverter-se, pois não pretendia destruir o Estado único, com um governo único, mas ser sua nova governante. O deus único lhe serve. A ameaça do inferno, a salvação no paraíso, a fé que permite sobreviver à exploração e seguir obediente, buscando o conforto, ao menos no além vida.

Mas nós, a classe trabalhadora, não pretendemos ser os novos senhores do mundo, exploradores de outras classes. A ideia de um deus de nada nos serve, pois não pretendemos explorar, mas libertar.

Os marxistas sabem que deus não existe porque aprenderam com o materialismo dialético, e não vendem ilusões porque sabem que a ideia de um deus, um inferno e um paraíso são prisões para o pensamento. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que numa sociedade de classes, o pensamento dominante será sempre o da classe dominante.

Precisaremos nos livrar da sociedade de classes para que a classe trabalhadora possa, deixando de ser classe, livrar-se completamente de qualquer deus. Primeiro precisamos destruir as condições objetivas que separam as massas do pensamento filosófico e da ciência, das condições objetivas que a separam de uma educação que lhe permita acesso ao patrimônio cultural humano. E a derrubada desse sistema será feita pelas massas trabalhadoras, dentre as quais as massas de trabalhadores religiosos estarão conosco.

A religião é uma arma da burguesia para dividir a classe trabalhadora

Devemos unir a classe trabalhadora contra toda a opressão estatal e imperialista, que se manifesta sob a máscara da defesa da fé. Eles financiaram o Taliban no Afeganistão para desestabilizar o regime apoiado pelos soviéticos. A CIA e o Mossad construíram o Hamas como contrapeso aos movimentos socialistas palestinos. Vimos a ascensão da Al Qaeda e do ISIS e o papel fundamentalismo judaico em territórios ocupados. Vemos o crescimento de um fundamentalismo cristão nos EUA.

Há uma radicalização dessas tendências religiosas. Mas do ponto de vista da quantidade, Alex Grant apresentou uma série de dados que mostram que o número de religiosos vem diminuindo. Mesmo em países como a Irlanda, historicamente religiosa, um referendo recente aprovou o direito ao aborto com ampla votação pelo sim, principalmente na juventude.

Mas o combate dos marxistas tem armadilhas. O stalinismo, caricatura odiosa do marxismo, na União Soviética perseguiu as religiões, o que teve um efeito terrível. Isso levou a Europa Oriental a ser invadida por seitas religiosas após a queda do stalinismo, fornecendo bases poderosas para a reação.

Também não podemos acreditar que difundindo o “racionalismo” podemos converter as massas trabalhadoras em massas ateias. Aliás, sob uma fachada de racionalismo, o chamado secularismo também tem sido instrumento de opressão. Em seu nome, dissemina-se o antisemitismo e o anti-islamismo de formas cruéis por diversos governos autointitulados civilizados.

Não venceremos a religião por “educação” e nem por imposição. Nas atuais bases materiais da sociedade, não é possível superar este problema. A classe trabalhadora que vai fazer a revolução é a classe trabalhadora real. E inclusive, muitos dos melhores ativistas da classe trabalhadora vão se aproximar do marxismo antes de ter rompido com sua fé sobrenatural.Assim, Alex Grant explicou qual deve ser nossa conduta:

não fechamos as portas para bons lutadores de classe. Se você acredita que: 1) O capitalismo deve ser derrubado; 2) A classe trabalhadora precisa de uma organização para ajudá-los a fazer isso; 3) Você está disposto a se incorporar à CMI? Então você é bem-vindo em nossas fileiras”.

A luta dos comunistas pode começar com o ódio ao sistema e passar pela vontade de mudar o mundo. Mas ser comunista é ser um socialista científico, é distinguir-se no interior do movimento operário justamente por uma visão científica. O comunista é aquele que, além de ter ódio pelo sistema e vontade e disposição de mudá-lo, estuda e entende como funciona o mundo e como devemos fazer para mudá-lo. O melhor método para isso é materialismo dialético. Entender o mundo passa por entender que deus é uma ideia dos homens e serve à dominação que queremos extinguir. A verdadeira compreensão do método marxista pressupõe a superação de qualquer ilusão religiosa.

Mas não é colocando como condição o abandono da religião que se ganha alguém para o marxismo. É oferecendo a oportunidade de um verdadeiro estudo do marxismo, um ambiente de camaradagem e respeito, um debate que favoreça o entendimento do funcionamento da sociedade e da natureza que se oferece a oportunidade de que cada camarada supere por si mesmo suas próprias ilusões.

Religiões “oficiais” e uma “nova” espiritualidade

A adesão às religiões vem decaindo, particularmente entre os jovens. Mas boa parte desse espaço é preenchido por certa nova espiritualidade que inclui, para repetir os exemplos dados por Alex Grant, a “Nova Era”, Astrologia, Tarô etc.

Aqui o assunto pode ter especificidades regionais, inclusive. No Brasil, por exemplo, se expressa numa adesão ou numa romantização das religiões afro-brasileiras, politeístas ou crenças esotéricas.

Mantém-se a crença no sobrenatural, mas rejeitando a igreja vinculada ao Estado e à autoridade. No caso das religiões afro-brasileiras, uma simpatia com uma religião herdada de povos negros escravizados e de quem descende a maior parte da classe trabalhadora, uma religião marginalizada e geralmente oprimida, principalmente em função do racismo.

Em alguns aspectos, Alex considera que pode ser progressista que essas pessoas tenham rejeitado a religião organizada. É produto da atual situação de acirramento da luta de classes.

Mas aqueles que trabalham para guiar a classe trabalhadora têm uma responsabilidade maior e precisam guiar a si mesmos pela ciência, pelo materialismo dialético, pelo marxismo.

Podemos discutir se existe um paraíso no céu enquanto construímos um paraíso na terra”. Após derrubar a burguesia, quando as massas trabalhadoras terão definitivamente acesso às teorias astronômicas que explicam o surgimento da Terra, à teoria darwinista da evolução das espécies, ao marxismo, teremos tempo suficiente para discutir e explicar  que deuses não existem.

Temos absoluta convicção de que a grande revolução socialista mundial mudará isso. Uma humanidade livre não precisa criar deuses onipotentes, porque sua liberdade trará para a própria humanidade tamanho potencial que ela moldará a si mesma conforme seus sonhos. E ela não precisará idealizar paraísos nos céus quando construírá seus sonhos no mundo real em que vivemos.