“Os homens jovens deverão lutar, os casados forjarão as armas e transportarão os suprimentos, as mulheres confeccionarão tendas e uniformes e servirão nos hospitais, os meninos transformarão a roupa branca em bandagem, os velhos serão levados às praças públicas para elevar o moral dos combatentes e pregar a unidade da República e o ódio aos reis”. (Levée en masse, França, 1793)
A ordem de “levée en masse”, ou recrutamento em massa, é considerada como o primeiro decreto militar universal obrigatório. A medida da Convenção da Revolução Francesa em 23 de agosto de 1793 foi responsável pelo recrutamento de 300 mil soldados e impediu que o país fosse invadido pelas potências europeias contrárias à Grande Revolução. A partir daquele momento, o serviço militar universal e obrigatório será instituído e perpetuado para o resto do mundo, alternando a forma e a época em que se aplica em cada lugar. Alguns países irão adotar o modelo de conscrição apenas em períodos de guerra.
O recrutamento universal levava membros de todas as classes sociais à guerra, era uma resposta de burguesia revolucionária ao regime anterior. Esse modelo não durou muito, os “franceses abastados podiam trocar a caserna pelo trabalho voluntário” [1].
Antes disso, em Roma, por exemplo, “as guerras eram travadas por soldados profissionais – a palavra soldado, aliás, vem de solidus, a moeda de pagamento dos legionários romanos, que deu também soldo” [2]. A manutenção do exército exigia um processo caro e constante de treinamento, seja nos períodos de guerra ou mesmo nos períodos de paz, para preservar as fronteiras conquistadas. O problema surgia quando os soldados não recebiam seus pagamentos, pois eles não lutavam.
O alistamento obrigatório não salvou só a França e sua revolução da invasão, como também foi extremamente vantajoso do ponto de vista financeiro. O novo modelo estabelece soldados que treinam durante um ano, com custos baixíssimos, e que lutam em defesa de uma invenção chamada pátria.
A circunscrição vai entrar em crise a partir da década de 1960 em diversos países. Nos países dominantes, argumentava-se que com a “crescente sofisticação e complexidade da máquina de guerra neste final de século tão marcado pela tecnologia exige soldados profissionais”[3].
Um argumento mais político sobre essa questão parte da análise da derrota dos EUA na Guerra do Vietnã. Percebendo que a oposição à guerra partiu dos jovens que se negavam a se alistar obrigatoriamente, o governo norte-americano iniciou uma política de criação de um exército de mercenários voluntários.
Na América Latina e na África, os EUA atuaram na destruição dos exércitos nacionais “populares” e criaram forças armadas completamente servis aos interesses de Washington. A Guarda Nacional da Nicarágua que atuou na repressão e no assassinato de trabalhadores e camponeses é fruto desse período.
Atualmente no Brasil a conscrição ainda é realidade. Todo jovem que faz 18 anos é obrigado a se apresentar na junta militar de sua região e fazer o juramento à bandeira. Anualmente cerca de 1,8 milhão de jovens se inscrevem e 100 mil são incorporados pelas Forças Armadas. O país possui mais de 300 mil militares na ativa e cerca de 3,5 milhões na reserva.
A criação do alistamento militar obrigatório surge como uma necessidade específica para que a burguesia consiga estabelecer seu regime econômico e modelo político. Porém, é preciso afirmar uma questão que não parece óbvia para a maioria dos que lutam pelo fim do regime capitalista: os marxistas não se opõem ao alistamento militar obrigatório. Tratemos do porquê.
A espinha dorsal do Estado Burguês
Lenin explica em “O Estado e a Revolução”, a partir do pensamento de Engels, que o Estado é uma força que consiste em “destacamentos de homens armados que dispõem das prisões, etc.”. O Exército e a Polícia compõe esse destacamento, que pode ser chamado assim por não corresponder “‘diretamente’ à população armada, isto é, à sua ‘organização espontânea em armas’ ”[4].
Desde o surgimento do capitalismo até os dias de hoje, nenhum governo burguês abdicou, e não abdicará, de ser o único a ter o controle da força armada porque ela é decisiva para manter seu próprio regime. Os aparelhos burocráticos podem até trair e enganar as massas, a mídia pode mentir e manipular a opinião pública. Mas, em última instância, é o destacamento de homens armados que garante que uma minoria se aproprie da riqueza produzida pela maioria. As massas são movidas por suas necessidades materiais, e só uma força capaz de reprimir e matar é capaz de segurá-las.
No entanto, quando as massas entram em cena, decididas a enfrentar o aparato policial e militar do Estado burguês, podem gerar divisões no interior do aparato repressivo e impor sua vontade contra a classe inimiga. São inúmeros exemplos na história. No último período, vimos na reversão do golpe na Venezuela em 2002. E também em 2011 no Egito, que vivia sob uma ditadura de 40 anos e que até o dia de sua queda parecia ser impossível derrubar. Todos os “obstáculos iniciais” (mídia, etc.) não foram capazes de segurar as massas. Porém, a possibilidade de tomada do poder só se abriu no momento em que o exército egípcio se desmanchou e soldados começaram a confraternizar com a população. Se, naquele momento, existisse um partido revolucionário, a história seria outra.
A guerra e o exército
O general prussiano Karl Von Klauzewitz é autor da célebre frase “a guerra é a política por outros meios”. Tanto Lenin quanto Trotsky compreendiam isso e mostraram que a guerra imperialista era uma continuidade da política da burguesia de conquista de novos mercados num mundo em que já não havia mais território em que o capital não tivesse chegado. As mais de 65 guerras localizadas que acontecem hoje se encaixam no mesmo exemplo.
As guerras, de maneira geral, “começaram há cerca de 10.000 anos, no período Neolítico, com o nascimento da economia produtiva, acumulação de recursos e na mudança nas estruturas produtivas.”[5]. Lenin sempre teve uma posição crítica sobre o exército e a guerra:
Por todos os lados, em todos os países, o exército permanente serve menos contra o inimigo exterior que contra o inimigo interior. Por todos os lados, o exército permanente tornou-se o instrumento da reação, o serviçal do capital em luta contra o trabalho, o carrasco da liberdade do povo [6].
Ao tratar da questão do exército suíço, Lenin evidencia bem sua postura. Ele “jamais propôs que a Suíça constituísse um exército para que os trabalhadores se inscrevessem para aprender a manejar armas. Se ele não existe é melhor”[7]. Mas complementava deixando claro que “se [o exército] existe a melhor forma ‘para nós’ é que ele seja de caráter ‘popular’ ou seja, com recrutamento popular e por tempo determinado, suficiente para o aprendizado militar.”[8].
Após a traição da II Internacional, que permitiu que se aprovasse os créditos de guerra para os países beligerantes na 1ª Guerra Mundial, os socialistas que se mantiveram fiéis à classe operária se reuniram na famosa Conferência de Zimmerwald. Nessa Conferência, mesmo reunindo os socialistas mais conscientes da época, existia a posição pacifista e “sentimentalista” de que a guerra era terrível. A resposta de Lenin foi “sim, terrivelmente lucrativa!”.
Lenin sempre enxergou as contradições existentes. Ao mesmo tempo em que ele se opôs radicalmente a qualquer crédito para os exércitos permanentes e à guerra imperialista, também afirmou que os socialistas “não podem, sem deixarem de ser socialistas, ser contra toda a guerra”[9].
Em 1917 os bolcheviques defenderam a transformação da guerra imperialista em guerra civil. Essa mesma posição foi tomada pela Internacional Comunista logo nos primeiros anos de sua existência. O sentido dessa palavra de ordem era de converter a guerra da burguesia, que colocava operários de diferentes países lutando uns contra os outros, em guerras do proletariado contra a burguesia.
Foram os bolcheviques que ensinaram como os comunistas devem atuar frente às forças armadas. A orientação é que sempre se atue em dois planos. Entrar no exército burguês durante o serviço militar obrigatório e construir dentro dele células comunistas. Externamente, organizar e incentivar a confraternização entre soldados e manifestantes. Obviamente, a união entre soldados e operários se dá após duros choques, mas a relação entre o povo e o exército se transforma num processo revolucionário. Em “História da Revolução Russa”, Trotsky relata como o exército se modificou ao longo de 1917:
O exército não era mais como antes da guerra, um meio separado do povo. Agora, encontrávamos os soldados mais frequentemente; acompanhávamos quando eles partiam para a frente, quando vinham de licença, ouvíamos as suas histórias, conversávamos com eles, nas ruas, nos tróleis, falava-se das trincheiras, íamos vê-los ao hospital. Os bairros operários, os quartéis, a frente e também, numa considerável proporção, as aldeias tornaram-se de certa maneira, vasos de comunicação. Os operários sabiam o que o soldado sente e pensa. Entre eles, haviam intermináveis conversas sobre a guerra, sobre as pessoas que se enriquecem, sobre os generais, sobre o governo, sobre o czar e a czarina. O soldado dizia da guerra: “Maldição!” O operário respondia, falando do governo: “Que eles sejam amaldiçoados!” O soldado dizia: “Por que calai-vos aqui, no centro?” O operário respondia: “Quando se tem as mãos vazias, não há nada a fazer. Em 1905, nós já afrontamos infelizmente a tropa.” O soldado, após reflexão: “Ah! Se todos se rebelassem conjuntamente!” O operário: “Sim, todos juntos.” Conversas deste tipo, antes da guerra, só tinham lugar entre indivíduos isolados e de maneira clandestina. Agora, era assim que se falava por todo o lado, a propósito de tudo, e quase abertamente, pelo menos nos bairros operários. [10]
Outra experiência importante foi vivida pelo Regimento de Volinsky do exército de Nicolau II. Na manhã de domingo do dia 11 de março de 1917, em Petrogrado, regimentos do exército russo foram chamados, sob as ordens do General Khabalov, para afastar o povo das ruas. O general tinha como objetivo cumprir as ordens do czar espalhadas em cartazes nos dias anteriores. A massa reunida só se dispersou depois que 200 pessoas foram fuziladas. Entretanto, uma companhia do Regimento Volinsky optou por atirar para o alto ao invés de acertar a multidão e uma companhia dos Guardas de Pavlovsky mirou suas armas para o oficial que deu comando de abrir fogo.
No dia 12, o Regimento Volinsky amotinou-se e foi rapidamente sucedido pelo Semonovsky, o Ismailovsky e pela Guarda Preobrajensky – o regimento mais antigo e leal fundado por Pedro, o Grande. O Ministério do Interior, o prédio do Governo Militar, o quartel-general da polícia, a Corte Judicial e um grupo de prédios policiais foram queimados. O arsenal foi pilhado, e à tarde, a Fortaleza de Pedro e Paulo, com sua pesada artilharia, estava nas mãos dos insurgentes. Ao anoitecer, 60 mil soldados haviam se juntado à revolução. No dia 17 de março, Nicolau II abdicava de seu trono.
O regimento Volinsky, que era um dos mais violentos e repressivos do exército russo, se convertia num dos mais disciplinados regimentos revolucionários.
Eu quero lutar, mas não com essa farda
As guerras fizeram parte da história da humanidade e só deixarão de existir quando a classe operária tomar as rédeas da sociedade em suas mãos. Somente a revolução socialista poderá pôr fim a todas as guerras. Até que esse dia chegue, é preciso lutar e no processo de derrubada do regime da burguesia. Se houver repressão, o povo vai precisar saber como usar armas para se defender.
No início deste ano, uma matéria do jornal burguês O Estado de São Paulo informava que uma parte da juventude buscava o exército como saída diante da falta de perspectiva de encontrar algum emprego[11] – Nas crises, os jovens são os primeiros a sofrerem as consequências e os índices de desemprego entre eles costuma atingir uma porcentagem alta. O fato é que, tirando essa exceção gerada pela crise, existe uma rejeição por parte de juventude trabalhadora pelo alistamento. Ela é ainda maior entre os que despertam para a luta, pois essa camada não se enxerga como parte de uma nação e teme a ideia de ter que guerrear por uma causa que não é sua.
Infelizmente, parte desses jovens se juntam ao coro dos reformistas e pacifistas e reivindicam “o fim do serviço militar obrigatório”. Palavra de ordem alimentada pelo discurso hipócrita pacifista da burguesia e pequena burguesia. Esse discurso pacifista também é o que sustenta a defesa do desarmamento da população.
Defender o alistamento militar obrigatório não significa ser a favor de que os trabalhadores de um país matem outros numa guerra. Mas apenas que eles possam se utilizar de um momento para aprender a usar armas e a se defender num período revolucionário. Engels explica em Princípios do Comunismo sobre a possibilidade de transformação social por via pacífica:
Será possível a abolição da propriedade privada por via pacífica?
[Engels] Seria de desejar que isso pudesse acontecer, e os comunistas seriam certamente os últimos que contra tal se insurgiriam. Os comunistas sabem muitíssimo bem que todas as conspirações são não apenas inúteis, como mesmo prejudiciais. Eles sabem muitíssimo bem que as revoluções não são feitas propositada nem arbitrariamente, mas que, em qualquer tempo e em qualquer lugar, elas foram a consequência necessária de circunstâncias inteiramente independentes da vontade e da direção deste ou daquele partido e de classes inteiras. Mas eles também veem que o desenvolvimento do proletariado em quase todos os países civilizados é violentamente reprimido e que, deste modo, os adversários dos comunistas estão a contribuir com toda a força para uma revolução. Acabando assim o proletariado oprimido por ser empurrado para uma revolução, nós, os comunistas, defenderemos nos atos, tão bem como agora com as palavras, a causa dos proletários.[12]
A história da Revolução Russa está tomada de exemplos práticos sobre a questão. Petrogrado, em outubro de 1917, foi tomada praticamente sem o derramamento de sangue por parte dos operários.
O símbolo que representa o comunismo hoje, a Foice e o Martelo, foi elaborado primeiramente por um artesão que propunha colocar uma espada entre os dois instrumentos que representavam o camponês e o operário. Lenin foi contra colocar a espada explicando que os comunistas não defendem a guerra. A guerra é uma consequência da disputa pelo poder e os trabalhadores se utilizam das armas para se defender. A espada não entrou no logo que hoje simboliza a luta dos oprimidos.
Em 2005, um plebiscito popular foi realizado para decidir se aprovava ou não o Estatuto do Desarmamento no Brasil com o objetivo de impedir o comércio de armas para a população – processo que já não é muito fácil. Toda a imprensa burguesa, várias igrejas, ONGs, partidos como o PSDB, DEM, PMDB etc. estavam a favor do desarmamento. Os principais jornais exibiam as pesquisas que mostravam mais de 70% das intenções de votos pelo desarmamento. Porém, mesmo com toda a pressão e a ausência de campanha contrária, o estatuto foi rejeitado por 63% da população.
A segunda emenda à Constituição dos Estados Unidos garante o direito de aquisição e porte de armas por parte de qualquer cidadão. Aprovada em 1791, a emenda é fruto direto do período revolucionário norteamericano, da guerra pela independência. Esse direito possibilitou o surgimento do Partido dos Panteras Negras, que iniciou seu movimento se armando para defender os negros que eram reprimidos, violentados e assassinados pela polícia dos Estados Unidos. Com o fortalecimento dos Panteras Negras, a Assembleia Legislativa da Califórnia logo criou a Lei Mulford que objetivava proibir o cidadão de portar armas nas ruas.
Não se trata de defender a criação de um partido nos mesmo moldes no Brasil, mas sim compreender que as tentativas de desarmamento da população não significam um desarmamento geral. Se depender da burguesia, o trabalhador não portará armas, elas serão exclusividade do exército, da polícia, do tráfico e do próprio burguês. Combateremos sempre para que o operário possa ter o direito de se defender. Nossa posição é a posição de Lenin:
“A experiência da Europa Ocidental mostrou todo o papel ferozmente reacionário dos exércitos permanentes. A ciência militar demonstrou que a organização de uma milícia popular capaz de se elevar à altura das necessidades de uma guerra defensiva bem como ofensiva é perfeitamente possível. Deixemos a burguesia hipócrita ou sentimental sonhar com o desarmamento. Enquanto houver no mundo oprimidos e explorados, devemos exigir o armamento geral do povo e não o desarmamento. Somente o armamento do povo assegurará plenamente o futuro da liberdade. Somente ele abaterá definitivamente a reação. Somente com esta reforma que a liberdade, deixando de ser privilégio de um punhado de exploradores, tornar-se-á realmente o patrimônio de milhões de trabalhadores.”[13]
O papel do comunista é de incentivar a juventude trabalhadora a fazer o serviço militar, aprender a manejar armas para poder depois voltá-las contra os oficiais, os governantes e os capitalistas. A lição é simples: aprendemos hoje, com a farda do exército burguês, a manusear as armas que apontaremos para a burguesia com a nossa farda, a do proletariado.
- Serviço Militar Obrigatório: cidadãos em armas (super.abril.com.br/historia/servico-militar-obrigatorio-cidadaos-em-armas/)
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Id.
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Id.
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O Estado e a Revolução, V. I. Lenin, cap. 1: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap1.html.
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Engels estava certo!, Margherita Colella: https://www.marxismo.org.br/content/engels-estava-certo
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O Exército e a Revolução, V. I. Lenin.
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Qual o nosso programa militar para a revolução, Serge Goulart.
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Id.
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O Programa Militar da Revolução Proletária, V. I. Lenin.
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História da Revolução Russa, Leon Trotsky.
- http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,crise-faz-dobrar-procura-pelo-servico-militar-entre-jovens-que-se-alistam-em-sp,70001645212
- https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm