No dia 31 de março, o presidente da República, Jair Bolsonaro, realizou mais um pronunciamento em cadeia nacional. Sem ironias, sem menções ao histórico de atleta, Bolsonaro falou da necessidade de união para combater a Covid-19. Não voltou a questionar a quarentena com a mesma dureza do discurso anterior e parecia, aos olhos da burguesia, estar recuando ao assumir uma posição mais branda.
Mas se esse discurso garantiu uma noite de sono mais tranquila para parte da classe dominante, tudo foi por água abaixo na manhã seguinte quando o presidente novamente voltou a atacar governadores, a quarentena, espalhou Fake News etc.O editorial da Folha de 2 de abril nos dá um exemplo dessa fagulha de esperança:
Por breves sete minutos e quatro segundos, na noite de terça-feira (31), o Brasil parecia ver o esboço de um presidente capaz de conduzi-lo em meio à imensa crise sanitária e econômica por que passa. (Folha de S. Paulo, 02/04/20)
Entretanto, não foram todos os que se iludiram com o discurso. No dia 31, os panelaços soaram pelo 15º dia seguido das janelas dos apartamentos e casas do país antes mesmo do início do pronunciamento. Em meio as batidas se escutava o “Fora Bolsonaro”, palavra de ordem que não foi apenas gritada, mas também projetada nos prédios de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Porto Alegre e tantas outras cidades.
O que explica a suposta ilusão de uns e a descrença de outros em relação ao presidente envolve uma questão muito prática: o interesse de classe.
A classe dominante, para preservar seus lucros diante da crise que se abre, precisa aplicar uma série de ataques às condições de vida dos trabalhadores. As medidas apresentadas pelo governo que supostamente têm como “objetivo reduzir os impactos sociais relacionados à pandemia de coronavírus”(Agência Senado), por exemplo, permitem a redução da jornada e salário em até 100% durante dois meses. Os trabalhadores que sofrerem redução da jornada ou contrato de trabalho suspenso irão receber, no máximo, uma porcentagem do valor do seguro desemprego que hoje varia entre R$ 1.045 e R$ 1.813,03. Isso significa que um trabalhador que recebe até três salários mínimos, terá uma queda de pelo menos 30% de sua renda, na melhor das hipóteses.
Achar que os trabalhadores irão engolir essas medidas seria pura ilusão e os patrões sabem disso. Por isso, além do discurso hipócrita sobre esse ser um momento em que todos irão perder, todos terão que se sacrificar um pouco etc., para a classe dominante, se faz necessário um chefe de Estado que seja capaz de dialogar minimamente com a população.
Essa preocupação também explica a defesa constante do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e as tentativas de evidenciar as divergências entre ministro e o próprio presidente. Mandetta apenas administra a crise como um “quadro técnico”. Jamais questionou cortes na saúde ou na ciência e não defende nenhuma medida real de combate à pandemia, como recuperação dos R$ 45 bilhões cortados da saúde, estatização de laboratórios ou empresas, para dar apenas alguns exemplos. Ambos são burgueses e as diferenças ministro e presidente existem mais na forma do que no conteúdo.
O medo de que o próprio presidente seja o catalisador da fúria das massas é tanto que na manhã de 1º de abril, logo após Bolsonaro retomar o discurso de combate aos governadores e à quarentena, os papagaios da burguesia esbravejaram por horas nos canais abertos e fechados de jornalismo.
Entretanto, o governo Bolsonaro não iniciou seu combate aberto à classe trabalhadora agora. Se é verdade que todas as medidas do governo desde o início da pandemia no Brasil são contrárias à classe trabalhadora (redução da renda, retirada de direitos etc.) em detrimento do lucro da burguesia, também é verdade que ataques mais brutais, como reforma da Previdência, já se tornaram realidades assim que o capitão do Exército assumiu o comando do país.
Então, mesmo que Globo, Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e toda a grande mídia burguesa, aliados aos patrões e aos reformistas que defendem a unidade nacional, tentem buscar uma conciliação em meio à pandemia, aqueles que sentem no bolso o que significa toda essa falsa ajuda não se deixam enganar tão facilmente.
O que estamos assistindo hoje, são manifestações de uma fúria contida por anos de destruição da saúde pública, pela destruição de direitos trabalhistas, pelo aumento do desemprego e da informalidade, pelos cortes à ciência e à educação até mesmo em um momento em que essas áreas poderiam estar contribuindo com o combate à Covid-19.
A classe trabalhadora está vendo que tudo o que é feito em nome da proteção do emprego, na verdade serve à proteção dos lucros. Hoje, uma parte dela se limita aos panelaços em suas casas, como forma de proteção, mas também porque não conseguem enxergar um caminho diferente já que seus próprios dirigentes estão aliados à própria burguesia na tentativa de salvar o sistema — basta ver as declarações de Lula (PT) e Doria (PSDB). Porém, nada impede que novos dirigentes surjam, que a classe volte, em um futuro próximo, a expressar sua indignação nas greves e nas ruas. Os trabalhadores italianos estão dando hoje o exemplo do que poderá acontecer aqui amanhã.