Foto: Fernando Frazão, Agência Brasil

Pazuello, o exército e os marxistas

No último dia 23 de maio, o general Eduardo Pazuello, transformado em um dos ministros da saúde do governo Bolsonaro por um ano, participou de um ato político do presidente no Rio de Janeiro. A presença do general, que entrará para a reserva em 2022, causou animosidade no alto comando das Forças Armadas, na parcela liberal e na imprensa burguesa, que buscam construir a falsa consciência de que há isenção neste comitê de repressão e negociação da classe dominante, que é o Estado e suas instituições, neste caso o braço armado – o exército. Juridicamente, o mal estar se justifica pelo Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro, que proíbe a participação de militares em atos político-partidários. Aqui a ironia, há uma distinção entre ato político-partidário e ato institucional. Os atos político-partidários são punidos e os transgressores podem passar de advertências a prisões de até um mês e até expulsão dos quadros do Exército.

Em sua defesa, Pazuello argumentou na quinta-feira, 27, que não se tratou de um ato político, mas de um passeio de moto pela cidade com o presidente e que foi surpreendido com o convite para subir ao carro de som bolsonarista. Para além do fato e das torcidas, à direita e à esquerda, contra e a favor de Pazuello, é preciso entender o papel do Exército e dos militares no regime burguês, algo que a história da luta de classes e a análise marxista são capazes de explicar, e fundamentalmente por que parte da burguesia, mais consciente, está tão incomodada com a falta de “compostura” de Pazuello .

A República brasileira foi instaurada em 15 de novembro de 1889 a partir de uma conspiração da alta cúpula militar, dirigida pelos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto e intelectuais como Ruy Barbosa e Campos Salles. A participação de militares e das Forças Armadas na história tem sido crucial na manutenção do regime no Brasil e em toda a América Latina, não faltaram ditaduras militares sangrentas em todo o continente. Isto demonstra o papel político do Exército, complementando seu papel repressivo como o braço armado da classe dominante, e necessariamente exercido para a estabilidade do Estado em um país semi-colonial e dominado pelo imperialismo como o Brasil. Na proclamação da República, nas disputas entre São Paulo e Minas Gerais, nos processos dirigidos por Getúlio Vargas em 1930 e 1937, no golpe militar de 1964, em inúmeros exemplos recentes da história brasileira os militares participaram dos atos “políticos”, tentando assegurar a ordem e o progresso da exploração capitalista. Mas junto disso, também expõem as fissuras e a decomposição das instituições e da produção capitalista.

Proclamação da República, por Benedito Calixto (1893)
Esquizofrênica, a fração burguesa que tenta se afastar do governo ordena a punição de Pazuello, mas legaliza a participação do chefe das Forças Armadas, Paulo Sérgio de Oliveira, em atos de inaugurações de obras ao lado de Bolsonaro, que não seriam político-partidários, mas institucionais. Compreender a hipocrisia e a ideologia burguesa é fundamental para que os liberais e o código de ética do Exército sejam desmascarados. Os marxistas denunciam essas alucinações, que têm apenas o intuito de confundir os trabalhadores, mascarando os inimigos de classe.

Há questões interessantes a serem observadas diante do derretimento das instituições e da divisão da burguesia.  Por exemplo, Bolsonaro já se pronunciou em sintonia com as justificativas de Pazuello, além de encher de elogios a gestão de seu ex-ministro, que se destaca para a cúpula federal, ao menos, desde 2016, nas Olimpíadas do Rio. A partir do pronunciamento, o presidente deixou claro não estar disposto a aceitar punições ao seu apoiador. Portanto, caso exista, deverá ser algo brando como antecipar a ida de Pazuello para a reserva, podendo expressar suas posições políticas livremente. Ou seja, Bolsonaro aceita que Pazuello tire a farda e coloque um terno, esse é o limite. Pazuello, por outro lado, parece não estar disposto nem a tirar a farda, demonstra não querer ir para a Reserva, pois soaria como “covardia”, principalmente após seu depoimento à ilusória CPI da Covid-19.

Todavia, a questão fundamental sobre o caso Pazuello é exatamente vermos como a mentira e a hipocrisia são naturais neste sistema. Precisam ser replicadas para ocultar as verdadeiras ações da burguesia e seu Estado. Isso fica evidente com este artigo do regulamento militar, que no anexo I, intitulado “Relação de Transgressões”, nos pontos 56, 57, 58, 59, 103 e 105 afirma1:

“56. Tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa;
57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;
58. Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária;
59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado;
60. Autorizar, promover ou tomar parte em qualquer manifestação coletiva, seja de caráter reivindicatório ou político, seja de crítica ou de apoio a ato de superior hierárquico, com exceção das demonstrações íntimas de boa e sã camaradagem e com consentimento do homenageado;
61. Autorizar, promover, assinar representações, documentos coletivos ou publicações de qualquer tipo, com finalidade política, de reivindicação coletiva ou de crítica a autoridades constituídas ou às suas atividades”.

Hipócritas determinações, como se esse ente repressivo não tivesse um papel político para a classe dominante, derrubando governos, impondo a barbárie no passado e no presente, garantindo os lucros capitalistas. E não poderia ser diferente, visto que o Estado surge para criar a “ordem” e legalizar a submissão de uma classe pela outra, amortecendo a colisão entre elas. Sua força consiste justamente nos destacamentos de homens armados e suas prisões, isto é, no Exército e na Polícia. O capitalismo não pode abdicar desses poderes, mesmo que os liberais busquem humanizá-lo em palavras, como nos explicou Engels:

“O Estado se caracteriza, em primeiro lugar, pela divisão dos súditos segundo o território. […] O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada.”

No entanto, a preocupação de uma parte da burguesia e da imprensa que a representa vai além, pois são conscientes de que, historicamente, o Exército não é uma instituição homogênea. Ainda que seja fundamentalmente um sustentáculo do regime burguês, sua base é composta por jovens filhos de trabalhadores (soldados, cabos etc.) e aqui mora o perigo para a burguesia. Em momentos revolucionários, a luta de classes como motor da história nos ensinou a capacidade do proletariado em ganhar frações das Forças Armadas. Em geral, são os filhos dos operários e camponeses que aprenderam os métodos e táticas de guerra nas fileiras da repressão, mas que, ao serem chocados contra as péssimas condições de vida, alinharam-se à guerra dos explorados contra a alta hierarquia do Exército e as classes dominantes, como nas revoluções russas e alemãs.

No Brasil, temos exemplos como a revolução de julho de 1924. Comandada pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, o levante iniciado no dia 5 de julho contou com a participação dos tenentes Joaquim do Nascimento Fernandes Távora, Juarez Távora, Miguel Costa, Eduardo Gomes, Índio do Brasil e João Cabanas e tinha como objetivo a destruição da Velha República e suas instituições. Esse episódio contou com amplo concurso das massas populares paulistanas, especialmente da classe operária. Também podemos citar a Intentona Comunista e o pré-1964 que tiveram uma parcela do exército descolada do domínio do Estado vigente e, em exemplos recentes, vimos o papel do exército na reversão do golpe na Venezuela em 2002. E também em 2011 no Egito, que vivia sob uma ditadura de 40 anos e que até o dia de sua queda parecia ser impossível derrubar. Todos os “obstáculos iniciais” (mídia etc.) não foram capazes de segurar as massas. Citaremos aqui o exemplo da história da Revolução Alemã, onde a divisão no exército foi o impulso de que necessitava a revolução. Na Revolução Alemã, a rebeldia começou entre os marinheiros de guerra, como bem explica Pierre Broué:

“Precisamente, uma agitação revolucionária nascia espontaneamente entre os marinheiros de guerra e vão se dirigir aos dirigentes sociais-democratas independentes para encontrar um elo, uma direção. Havia todas as condições para fazer dos navios de guerra ativos focos de agitação. As tripulações estavam formadas pela maioria de operários qualificados, especificamente metalúrgicos, com experiência de luta e consciência de classe. As circunstâncias da guerra, que deixavam os navios nos portos, permitiam a manutenção de um estreito contato entre marinheiros e trabalhadores de portos e de estaleiros e um tráfico de livros, panfletos, periódicos, intercâmbio de ideias e organizações de discussões a bordo. As condições de vida, a concentração do proletariado em um espaço restrito, a audácia de espírito coletivo que desenvolviam faziam mais insuportáveis as duras condições materiais dos marinheiros e foguistas, em um marco de uma inatividade onde  não conseguiam disfarçar os exercícios disciplinares absurdos, impostos por um corpo de oficiais particularmente reacionário.” (grifo nosso)

Como podemos observar, o medo da burguesia de que se quebre a hierarquia do exército não é algo ingênuo e muito menos desprovido de história. Em entrevista aos meios burgueses de comunicação, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, deixa explícito o problema:

“A regra tem que ser aplicada para evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças, porque assim como tem gente simpática ao governo, tem gente que não é. Então, cada um tem que permanecer na linha que as Forças Armadas têm que adotar. As Forças Armadas são apartidárias. O partido das Forças Armadas é o Brasil.”

A classe operária não tem pátria e quando se choca com seu algoz consegue observar essa questão facilmente, por isso é preciso que as ideias reacionárias de apartidarismo e pátria sejam colocadas acima das classes.

Indubitavelmente, as revoluções necessitam de uma divisão nas Forças Armadas. Na Internacional Comunista, essa questão fazia, inclusive, parte das condições de admissão de um partido, que deveria propagar as ideias revolucionárias como necessidade especial nos exércitos. A Internacional de Lênin e Trotsky defendia as reivindicações dos soldados, como eleição de todos os oficiais pelos soldados, fim das punições disciplinares, fim dos privilégios dos oficiais etc., como fatores de destruição da disciplina do exército burguês e sua dissolução mesmo. Obviamente, isso não significa defender reivindicações corporativistas, como mais orçamento para a repressão ou defesa da não punição de inimigos de classe como Pazuello. Assim os comunistas explicam o caráter do exército e sua existência. Portanto, sem idealismos, concordamos com a constituição e expressão política de um exército de “caráter popular”, como cunhou Lenin, devido ao seu recrutamento, e de “tempo determinado, suficiente para o aprendizado militar” (Lenin, “O Estado e a Revolução”, 1917).

O medo da burguesia é de que uma não punição a Pazuello abra um precedente para que cabos e soldados possam se manifestar politicamente, que a hierarquia seja quebrada e que estes jovens, filhos de trabalhadores que estão no alistamento obrigatório, subam em carros de som não ao lado de Bolsonaro, mas gritando “Abaixo o governo Bolsonaro já! Pelo fim do Exército burguês!”.

No texto “Os marxistas e o alistamento militar obrigatório”, o camarada Evandro Colzani conclui dizendo:

“O papel do comunista é de incentivar a juventude trabalhadora a fazer o serviço militar, aprender a manejar armas para poder depois voltá-las contra os oficiais, os governantes e os capitalistas. A lição é simples: aprendemos hoje, com a farda do exército burguês, a manusear as armas que apontaremos para a burguesia com a nossa farda, a do proletariado.”

Assim, a esquerda não discute se é a favor ou contra a punição de um súdito de Bolsonaro, Pazuello, mas explicita ao povo trabalhador o caráter do Estado, do Exército e da imprensa burguesa. Devemos, tal como Marx disse sobre a Comuna de Paris de 1871, quebrar o “destacamento de homens armados” da burguesia, ganhar a nossa Guarda Nacional para a revolução e tomar o poder, “assaltar os céus”! Ou fazer como em 1917, apenas 46 anos depois de Paris, quando o Partido Bolchevique mostrou que havia aprendido as lições. Os revolucionários não pediram meras punições aos generais czaristas nem botas novas e capotes mais quentes para os soldados da I Guerra Mundial, mas organizaram a deserção e quebraram o exército de Nicolau II, constituindo a primeira República dos Sovietes de Soldados e Operários.

Diante disso, o que precisamos fazer para entender essas estruturas burguesas e como desarmá-las é estudar a história do movimento operário e as revoluções. Nossa tarefa é aprender, atuar e ajudar a classe trabalhadora a canalizar toda a ira contra este sistema para uma ação consciente e revolucionária.

1 Decreto N° 4.346, de 26 de agosto de 2002, Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outros providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4346.htm>. Acesso em: 31 de maio de 2021.