PEC 32: fim da estabilidade, privatização dos espaços públicos e retirada de direitos

A PEC 32 ou Reforma Administrativa entra no segundo semestre de 2021 em uma fase decisiva. É uma bandeira da burguesia há tempos no país e cabe ao governo Bolsonaro cumprir mais esta tarefa de retirada de direitos da classe trabalhadora. Ela se insere em um conjunto de contrarreformas impostas pela burguesia que visam destruir os poucos direitos conquistados pelos trabalhadores durante o século 20.

A Reforma Trabalhista do governo de Michel Temer (MDB) flexibilizou as formas de contratação, favorecendo a maior exploração dos trabalhadores brasileiros; a Reforma do Ensino Médio (também do governo Temer) ataca o acesso já precário ao conhecimento e, principalmente, prepara a privatização da educação e terceirização da carreira docente; a lei da terceirização passou a permitir a contratação de atividades fim (médicos, professores, engenheiros etc.) pela iniciativa privada para atuarem nos serviços públicos; a Reforma da Previdência deu um salto no processo de destruição do direito à aposentadoria duramente conquistado e, agora, a Reforma Administrativa é a bola da vez.

O que propõe a PEC 32?

Os três principais eixos de ataque da Reforma Administrativa são: fim da estabilidade do servidor públicos, ampliação da privatização e terceirização dos serviços públicos e retirada de direitos.

1. Fim da estabilidade

Até 1967, a estabilidade era direito dos trabalhadores brasileiros dos setores público e privado. Em 1966, portanto durante a ditadura militar, o então ministro do Planejamento, Marechal Castello Branco, criou o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e impôs, por meio da Lei 10/1966, o fim da estabilidade aos trabalhadores brasileiros, com a finalidade central de facilitar a demissão dos trabalhadores1. Antes, aos trabalhadores com 10 anos de carteira assinada era concedida a estabilidade.

Embora a ditadura apresentasse a então Lei 10/1966 como uma “escolha”, mesmo senadores burgueses reconhecem hoje que a legislação impôs uma “escolha ilusória” aos trabalhadores:

A proposta de criação do FGTS (Projeto de Lei 10/1966), enviada pela Presidência ao Congresso, previa que os novos contratados poderiam optar entre a estabilidade e o Fundo de Garantia. Na prática, porém, as empresas só aceitaram contratar os que abriram mão da estabilidade.1

Com o gradativo fim do direito à estabilidade aos trabalhadores da iniciativa privada, hoje a burguesia atenta também contra a estabilidade dos trabalhadores dos serviços públicos. Embora o texto em si não diga “fim da estabilidade”, assim como a Lei 10/1966 não o fazia, o efeito na prática será o mesmo. E afinal, como disse Karl Marx, a prática é o critério da verdade.

O texto da PEC, no artigo 41, coloca que o servidor poderá perder o cargo “mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa.” Mesmo o governo afirmando que não haverá perseguição política, os critérios avaliativos são no geral subjetivos e não concretamente verificáveis. Dependem exclusivamente da percepção dos superiores hierárquicos dos servidores. Para darmos um exemplo, um professor da rede estadual de São Paulo durante o estágio probatório é avaliado conforme os seguintes critérios: disciplina, capacidade de iniciativa, responsabilidade, comprometimento com a administração pública, eficiência e produtividade. Com exceção do critério “disciplina”, não há parâmetros concretos para medida de nenhum dos demais critérios.

Um professor que se recuse a realizar atividades fora do horário de trabalho, como é comumente denunciado na rede, pode ser considerado “não comprometido”. O professor deverá produzir portfólios de suas práticas como forma de comprovar “capacidade de iniciativa”, visto que não basta “simplesmente” cumprir suas funções. Estudantes com notas baixas em testes padronizados poderão categorizar o professor como “inefetivo” ou “improdutivo”. Tudo isso justifica com facilidade a demissão de qualquer professor da rede pública estadual, grevista ou não, sindicalista ou não. Somos submetidos a assédio moral permanente já nas condições atuais. Com a aprovação da PEC 32 todos os mandos e desmandos da burocracia estatal serão oficializados.

Além disso, a PEC 32 proíbe:

 “[…] a concessão de estabilidade no emprego ou de proteção contra a despedida para empregados de empresas públicas, sociedades de economia mista e das subsidiárias dessas empresas e sociedades por meio de negociação, coletiva ou individual, ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada.”

Ou seja, com a aprovação da Reforma Administrativa o ingresso de trabalhadores de empresas públicas como Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), Metrô, Petrobrás etc. passa a ocorrer necessariamente SEM o direito à estabilidade.

2. Ampliação da privatização

Assim como o fim da estabilidade, o início da terceirização dos serviços públicos também se dá durante o governo militar:

No Brasil, a introdução da terceirização no serviço púbico iniciou em 1967, por meio de uma reforma que tinha como objetivo “impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa“, tal como justificado no Decreto-Lei (DL) no 200/1967. Neste decreto, definia-se a descentralização da administração pública, mediante a contratação ou concessão de execução indireta de serviços pelo setor privado2.

Desde então esse processo só se aprofundou e o mesmo  ocorreu durante os governos do PT, com a presença de Organizações Sociais (OS) ofertando serviços à esfera pública, assim como o aumento da transferência de verbas públicas para a iniciativa privada. Caso a PEC 32 seja aprovada:

“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão, na forma da lei, firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira.” (PEC 32/2020)

Assim, tendo como base as contrarreformas supracitadas, a Reforma Administrativa viabilizará a terceirização irrestrita de professores, médicos e todas as profissões que qualquer administração pública julgar necessária. Mais do que isso, poderá, SEM CONTRAPARTIDA FINANCEIRA, ceder espaços públicos à iniciativa privada. Isso permite a concessão total ou parcial de parques, escolas, hospitais, já tão escassos à classe trabalhadora brasileira, aos empresários, banqueiros e acionistas.

Também passa a ser ampliado o direito dos governos a extinguir, fundir ou criar órgãos e instituições públicas. Quanto a isso ressaltamos: o governo Doria (PSDB) tentou extinguir quase que por decreto o Instituto Butantã. Ocorre que durante a pandemia esse instituto se mostrou essencial para garantir alguma vigilância sanitária, pesquisa e inclusive a produção de vacinas para combater o coronavírus. Caso a Reforma Administrativa já estivesse em vigor, Doria teria simplesmente extinguido o Instituto Butantã, diminuindo ainda mais qualquer possibilidade combate minimamente efetivo à pandemia no estado de São Paulo.

3. Retirada de direitos

Com o fim da estabilidade e a naturalização do assédio moral, quaisquer benefícios em função de tempo de serviço e ou de assiduidade se tornam supérfluos ao governo. Com a Reforma Administrativa, quinquênios, sexta-parte e adicionais por tempo de serviço são extintos. Da mesma forma, a licença prêmio e similares não mais existirão, visto que se o servidor não for assíduo estará passível de demissão.

Também ressaltamos o trecho que versa sobre “redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração, exceto se decorrente de limitação de saúde, conforme previsto em lei” (PEC 32/202). Isso significa que demandas tão caras aos servidores, como a redução da jornada de trabalho para possibilitar formação continuada, maior capacitação para atendimento da população e mesmo direito ao lazer estarão proibidas a partir da aprovação dessa PEC. Assim, trata-se de mais uma retirada de um direito democrático histórico dos trabalhadores, que é lutar pela redução da jornada de trabalho.

Falácias burguesas sobre o funcionalismo público

Os economistas e intelectuais burgueses, quando defendem esse tipo de reforma, argumentam sobre o “inchaço” e “ineficiência” do funcionalismo público. A solução para isso seria, então, o aumento de medidas de controle sobre os trabalhadores e privatização dos serviços, com desoneração do Estado.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o suposto “inchaço” do funcionalismo público brasileiro é irreal. De acordo com a própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), em relação ao total de empregados, o Brasil tem um percentual de servidores públicos abaixo da média mundial (12,08% contra 17,88% da média mundial). Isso é verdade mesmo em relação a países imperialistas famosos por seu liberalismo, como os Estados Unidos (15,89%). Inclusive, a taxa de crescimento do número de servidores públicos brasileiros é menor que a taxa média mundial estabelecida pela OCDE (0.3% no Brasil, contra uma média de 0,6% mundial)3.

O que é estarrecedor e que estrangula qualquer economia mundial não é a miséria investida nos serviços públicos, mas o saque do capital financeiro promovido pela Dívida Pública. Cabe aqui uma breve comparação: gastos federais com saúde (4,26%), educação (2,49%) e repasses a estados e municípios (9,72%) somam 16,5% do orçamento nacional. Enquanto isso, 39,08% ou 1,381 trilhões de reais em 2020 foram saqueados por banqueiros e acionistas do capital financeiro (4). Portanto, o verdadeiro estrangulamento advém não do parco orçamento aos serviços públicos, mas centralmente do sistema dívida pública, parte inerente do sistema capitalista como forma de saque dos trabalhadores em todo o mundo.

Um segundo argumento da burguesia é sobre a suposta efetividade dos serviços privatizados. Trata-se de um dos maiores contos do vigário dos capitalistas. É preciso ter claro: via de regra, serviços privatizados são menos eficientes do que serviços estatizados, pelo simples fato de operarem com objetivo de lucro e não de oferecer o melhor serviço possível. Ao contrário, eficiência e necessidade de lucro se contrapõe diametralmente na maioria dos casos.

Durante a pandemia isso ficou claro: a concorrência entre as diversas corporações farmacêuticas, ao invés da cooperação internacional dos melhores cientistas e equipamentos de pesquisa, atrasou a produção de uma vacina para a Covid-19. Com os pilares da sociedade capitalista em pé, a saber, a sociedade privada dos meios de produção e os limites estabelecidos pelos Estado nacionais, qualquer combate efetivo à pandemia é extremamente ineficiente.

Os grandes períodos de crescimento econômico no pós-guerra, mesmo nos EUA, não foram possíveis em função de políticas de livre concorrência. Ao contrário, isso foi possível por conta do controle estatal e planificação de setores inteiros do processo produtivo. Em seu excelente artigo, o marxista Adam Booth assim descreve esse período:

É notável que o principal desenvolvimento na tecnologia e na inovação a partir deste período não tenha vindo do capitalismo e da concorrência do mercado livre, mas a partir do controle estatal sobre a indústria e da planificação que as nações capitalistas foram obrigadas a adotar para fins de guerra. A nacionalização e o controle público de setores-chave da Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) foram introduzidos nos países capitalistas avançados durante a 2ª Guerra Mundial a fim de inovar e desenvolver novas tecnologias. Aviões, plásticos, borracha sintética, medicamentos, telecomunicações, energia nuclear etc., todas essas tecnologias e muitas outras mais foram ou inventadas ou fortemente impulsionadas devido à II Guerra Mundial, ao lado de um desenvolvimento geral da indústria e da introdução de novas técnicas de produção para fins de guerra.

Este rápido período de desenvolvimento em termos da pesquisa e aplicação de novas tecnologias e técnicas, junto à destruição causada durante a própria guerra e à expansão do comércio mundial que se seguiu, por sua vez levou ao boom do pós-guerra – a assim chamada “Idade de Ouro” do capitalismo. De repente, nações inteiras, cuja base industrial tinha sido destruída durante a guerra, receberam ajuda através do Plano Marshall proporcionada pelos EUA – que saíram da guerra muito fortalecidos e com sua indústria e economia quase intocadas – e se tornaram capazes de importar e assimilar os mais modernos métodos industriais, o que proporcionou um grande salto a frente em termos de produtividade.5

Em contrapartida, nos países de economia dominada, como nas ditaduras militares na América Latina, foram implementadas, no mesmo período, políticas de privatização, descentralização econômica e flexibilização dos direitos trabalhistas, promovendo uma ampliação da exploração dos trabalhadores. Como vemos, a burguesia necessitou de controle estatal e planificação para competir com o modo de produção soviético. Por outro lado, o “livre mercado” serviu ao aumento e intensificação da exploração dos trabalhadores dos países de economia dominada. A PEC 32, assim como todas as políticas privatistas bolsonaristas não passam de continuidades desses processos.

Perspectivas de luta 

É preciso compreender a PEC 32 não como mais uma maldade do governo Bolsonaro, mas como expressão da necessidade burguesa de destruição mesmo dos poucos direitos trabalhistas conquistados durante o século 20. Trata-se de forma de redução do custo da força de trabalho dos brasileiros ao limite mínimo necessário para garantia do máximo de lucros à classe dominante.

Assim, é preciso lutar para barrar integralmente a PEC 32. Porém, mais do que isso, é necessário retomar o debate pelo direito à estabilidade de todos os trabalhadores dos setores público e privado. Esse debate é imprescindível para conectar o conjunto da classe trabalhadores contra os reais inimigos, contra a classe capitalista.

Por fim, é preciso compreender que a luta contra a PEC 32 se insere na luta nacional por Abaixo o governo Bolsonaro! Por um governo dos trabalhadores nem generais! Para isso, as centrais sindicais têm o dever de convocar e construir a greve geral dos trabalhadores para derrubar o governo Bolsonaro, já. Esperar 2022 dará o tempo necessário ao governo aplicar este e outros ataques ao conjunto da classe trabalhadora. Por outro lado, a derrubada do governo agora colocaria em questão todas as contrarreformas aprovadas, podendo colocar em questão inclusive o próprio sistema.

Com base no Manifesto do Encontro Nacional de Luta6, a Esquerda Marxista organiza comitês de ação construindo iniciativas e mobilizando a juventude e a classe trabalhadora para pôr abaixo esse governo. Parte da luta pela derrubada do governo Bolsonaro envolve a mobilização contra a PEC 32. Se você concorda com essa luta, com esse manifesto, entre em contato para construção de comitês de ação em seu local de trabalho, escola, bairros etc. Participe e construa mais essa luta conosco!

Fontes:

1  https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/05/05/em-1967-fgts-substituiu-estabilidade-no-emprego

2  A TERCEIRIZAÇÃO NO SERVIÇO PÚBLICO: PARTICULARIDADES E IMPLICAÇÕES – Graça Druck, Jeovana Sena, Marina Morena Pinto, Sâmia Araújo.

3 https://www.condsef.org.br/noticias/numero-servidores-brasil-esta-abaixo-media-ocde

4 https://auditoriacidada.org.br/

5 https://www.marxismo.org.br/tecnologia-inovacao-crescimento-e-capitalismo/

6 https://www.marxismo.org.br/manifesto-do-encontro-nacional-de-luta-abaixo-o-governo-bolsonaro-por-um-governo-dos-trabalhadores-sem-patroes-nem-generais/