Há um debate sobre o papel da China, de sua economia e de suas empresas no atual mundo capitalista. É verdade, a China é hoje a principal base industrial do mundo, a que mais fornece produtos industriais. Mas, atenção: é preciso olhar com cuidado de onde vem o capital que move essas fábricas e como é comercializado o que lá se produz.
Aqueles que estudaram um pouco mais da história do Brasil, devem lembrar que já faz mais de 100 anos que o Brasil é o maior produtor mundial de café, e hoje é um dos maiores produtores de soja do mundo. Mas, na verdade, quem controla essa produção? Os produtores?
O café, no século passado, inclusive depois da fundação do Instituto Brasileiro do Café, com a finalidade de controlar a produção excessiva na crise de 1929 (ficaram famosas as queimas do café para impedir a queda do preço), era controlado por empresas que financiavam os insumos (sementes, tratores, adubos etc.), o transporte e depois controlavam os navios nos quais embarcavam o café.
A soja, hoje, é produzida com sementes feitas pela Mosanto, “protegida” com defensivos (agrotóxicos) fornecidos pela mesma empresa e tem a sua produção financiada por bancos brasileiros e estrangeiros. Bancos como o Bradesco, por exemplo, dependem de financiamento externo para fazerem contratos de financiamento em dólar para pagar empresas como a Mosanto ou fabricantes de tratores, colheitadeiras, programas de controle de tratores e colheitadeiras etc. Em suma, o grande capital financeiro internacional controla a produção agrícola brasileira do agronegócio.
Na China não é diferente. Para exemplificar, os EUA começaram a desviar mercadorias como Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), principalmente máscaras e respiradores para ele próprio. Como conseguiram fazer isso?
Lembrando, hoje a produção da China é 80% feita por capital privado.1 Assim, não se negocia “com a China”, mas com produtores, fábricas, controladas pelo capital privado. Uma boa parte destas são fábricas pequenas sem acesso ao mercado mundial. Dependem das empresas de “trading”2, ou seja, empresas que fazem o comércio internacional, negociam contratos, fazem financiamentos etc. Algo muito semelhante à produção de café nos séculos 19 e 20 no Brasil — com toda a distância que uma analogia dessa requer.
A questão é que a maioria dessas tradings são controladas por capital dos EUA e outros países imperialistas. Em momentos comerciais “normais”, elas comerciam com o mundo inteiro. Mas, na situação atual, o governo dos EUA definiu que toda a produção e comercialização de material médico é diretamente destinada aos EUA. “America First” (EUA primeiro), já explicou Trump em sua campanha. E usou um decreto baseado na lei de guerra para consolidar esse entendimento.
O resultado é que toda a comercialização de produtos vinda da China e controlada por empresas dos EUA começou a ser desviada para este país. A França denunciou esse ato como “pirataria”3, mas Trump não se importou com isso. O resultado? Diversos carregamentos de equipamentos, como respiradores, ficaram retidos nos EUA.4
A situação muda quando se trata de países imperialistas. A França despachou 12 aviões para a China e os EUA despacharam 22. Evidentemente, com contratos já estabelecidos e, como já estão escaldados, provavelmente os franceses evitaram tradings controladas por capital dos EUA. E o Brasil, um país atrasado, onde as suas “tranding” são fichinhas e não controlam nada?
Numa entrevista à Folha de São Paulo5, um diplomata chinês declarou:
“A vontade existe para ajudar. Mas é uma questão técnica e operacional. Nesse momento, a logística internacional tem sido um dos gargalos”.
Em outras palavras, o Brasil tem que se virar para conseguir fazer o material chegar aqui, já que o governo Chinês não controla isso. A melhor confissão de que a ditadura chinesa não é toda poderosa, mas que na verdade é controlada pelo capital e, em particular, pelo capital financeiro internacional.
O governo brasileiro, por sua vez, não consegue resolver as coisas de forma tão simples. O Brasil não tem grandes companhias áreas, que viajam pelo mundo inteiro, que transportam cargas pelo mundo inteiro. Depende da TAM, que é chilena, ou talvez de um acordo com a TAP, portuguesa, e que estão cobrando os olhos da cara para transportar um material que já se tornou mais caro ainda.6
Resumo da ópera: os países imperialistas conseguirão testes, conseguirão equipamentos, tudo o que precisam ainda que talvez não chegue a tempo por terem sucateado todo o seu sistema de saúde. Países latino-americanos, países da África, do Oriente Médio, da parte não industrializada da Ásia, sofrerão e muito com a epidemia. O grande capital financeiro controla, inclusive, quem vive e quem morre em uma epidemia, e não é à toa que nos EUA, proporcionalmente, morram mais negros que brancos.
Referências:
1 <https://elpais.com/ideas/2020-04-14/es-china-realmente-comunista.html>
2 <https://www.youtube.com/watch?v=ijFKT3_rrn4>
3 <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/03/comprar-da-china-agora-requer-agilidade.ghtml>
4 <https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/04/10/china-afirma-que-eua-retiveram-respiradores-comprados-por-estados-do-nordeste> <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/china-cancela-compra-de-respiradores-pela-bahia-e-carga-fica-retida-nos-eua.shtml>