Foto: CGTP Intersindical

Portugal: os dias de paz social chegaram ao fim

A aparente paz social que se vive em Portugal nos anos recentes – sem grandes revoltas nem tumultos sociais notáveis – esconde uma realidade bem mais complexa e amarga debaixo da sua superfície frágil. Apesar da comunicação social, tanto nacional como internacionalmente, ter saudado a recuperação económica em Portugal como um renascimento, as cicatrizes que uma década de austeridade deixou na sociedade, agravadas pela pandemia da Covid-19, criaram o potencial para desenvolvimentos revolucionários no futuro.

A crescente instabilidade no seio do sistema político, particularmente com o crescimento da extrema-direita, é um indício de instabilidade social. As ilusões de que Portugal estava de alguma forma imune a um movimento de extrema-direita foram totalmente desfeitas. O último ano desacreditou completamente esse excecionalismo. Mas mais significativo do que isso é o facto de haver um forte e crescente descontentamento entre a esquerda, que ainda não encontrou expressão política adequada.

Açúcar e chicote sem o açúcar

Durante décadas, a classe capitalista portuguesa governou com um torrão de açúcar e um chicote através dos seus representantes políticos – respetivamente o PS e o PSD, o último frequentemente em coligações com o CDS. No entanto, o capitalismo já não é capaz de oferecer qualquer tipo de concessões ou reformas aos trabalhadores portugueses. Tem sido assim nas últimas duas décadas e principalmente desde a crise das dívidas soberanas de 2009.

No seguimento do resgate de 2011, os 4 anos de intervenção da troika resultaram numa cruel combinação de austeridade, impostos altos e desregulação do mercado de trabalho, com ataques aos direitos dos trabalhadores, aplicada pela coligação de direita entre o PSD e o CDS. Estas políticas danosas provocaram o disparo do desemprego para o nível recorde de 16.2% em 2013, com os mais jovens a serem os mais castigados por esta realidade deplorável.

O desemprego entre pessoas com menos de 25 anos atingiu os 38.1% em 2013. Apesar da ‘recuperação’, este valor era ainda de 22.6% em 2020. De modo semelhante, durante a década de 2010 a emigração atingiu níveis que não tinham sido vistos desde o êxodo dos anos 60 e tanto a permanente como a temporária foram mais vincadas entre a população com menos de 30 anos. Enquanto a larga maioria enfrentava estas condições tão duras, os ricos viram a sua riqueza aumentar consideravelmente.

Quando o PS, com o apoio parlamentar da esquerda, o BE e o PCP, substituiu a coligação PSD/CDS em 2015, houve a promessa de “virar a página” da austeridade. Nada do género aconteceu, com o governo a gabar-se de défices historicamente baixos antes da pandemia, tentando pintar a falta de investimento público numa cor positiva enquanto serviços públicos essenciais continuavam a sofrer de desinvestimento crónico. De facto, desde 2015 que o governo tem tentado atirar areia para os olhos da classe trabalhadora portuguesa, mantendo que o chicote com o qual esta é açoitada é na realidade um torrão de açúcar para comer. Mas os trabalhadores não são assim tão obtusos como os nossos governantes parecem acreditar.

Uma dívida pública alta, a terceira mais alta na UE, significa que o encargo dos impostos sobre os rendimentos é mais alto do que a média da OCDE, sem qualquer benefício visível para os trabalhadores. O salário médio ajustado ao custo de vida é o mais baixo na Europa Ocidental. Apesar do desemprego ter diminuído, tal tem sido à custa de um aumento do trabalho precário, com empregos sazonais, contratos a termo e a recibos verdes cada vez mais comuns, principalmente entre os jovens.

A especulação imobiliária desde a crise de 2008 fez com que os encargos com a habitação se tenham tornado cada vez mais incomportáveis para a classe trabalhadora, resultando num aumento do número de pessoas sem-abrigo ainda antes da pandemia. Em 2019, 21.6% da população estava em risco de pobreza ou exclusão social; este valor é apenas um pouco superior à média da UE, mas está significativamente acima da média quando calculado para agregados familiares com três ou mais crianças. Com um crescimento económico miserável, em média cerca de apenas 2% desde 2015 e graças sobretudo ao turismo, tudo isto tem causado perspectivas deprimentes para os trabalhadores e principalmente para os jovens.

O vírus expôs a doença

A pandemia apenas veio agravar as contradições que já existiam na sociedade portuguesa. O balão do ‘milagre’ económico dos últimos anos – assente largamente no turismo e em salários baixos que atraíram investimento na área das tecnologias – esvaziou assim que a Covid-19 pôs um travão na economia. O desemprego subiu novamente e 1 em 4 famílias perdeu pelo menos 25% do seu rendimento em 2020, principalmente por causa da perda de emprego e do facto do sistema de lay-off simplificado inicialmente ter coberto apenas dois terços dos salários.

A crise económica tem esticado os orçamentos familiares ao limite, empurrando dezenas de milhares de pessoas para a pobreza, muitas das quais passaram a precisar de ajuda alimentar. Segundo o Banco Alimentar, a maior parte das pessoas a pedir ajuda atualmente está a fazê-lo pela primeira vez. A dívida nacional atingiu um nível recorde, com famílias e empresas a acumularem pagamentos em atraso.

O problema das dívidas tem sido empurrado com a barriga com moratórias. Mas com 22.2% dos pagamentos de dívida suspensos, muito acima da média da UE de 7.5%, esta “bomba-relógio” vai atirar milhares de famílias e empresas do precipício nos próximos tempos. Cerca de 86 mil famílias já tiveram de voltar a pagar a prestação da casa a partir de 1 de abril, com outras moratórias a chegar ao fim em setembro.

Com tantos problemas urgentes a afetar a classe trabalhadora, o governo anunciou recentemente com orgulho que o défice em 2020 foi de 5.7%, abaixo da previsão de 7.3%. Isto não é nenhum motivo de celebração e apenas reflete o facto do governo não ter gasto tanto quanto tinha planeado e – o mais crucial – não tanto quanto necessário para aliviar a provação dos trabalhadores de todo o país.

Por causa disto, as relações entre o governo minoritário do PS e os partidos da esquerda, o BE e o PCP, azedaram. O BE até votou contra o Orçamento do Estado para 2021 em novembro, numa quezília que pode parecer significativa após cinco anos de cooperação próxima entre estes três partidos. Na realidade, não demonstrou ser mais do que uma manobra política.

Mais recentemente, o parlamento aprovou um pacote de apoios sociais à revelia do governo, com os partidos da esquerda a tentarem distanciar-se do PS e a direita a juntar-se oportunisticamente a este esforço. O governo fez uma birra, mantendo que o pacote é inconstitucional. No momento em que este artigo foi escrito, o Tribunal Constitucional ainda não se pronunciou sobre o assunto.

Esta ‘frugalidade’ durante aquela que é a maior crise de sempre do capitalismo atesta a prioridade do governo: equilibrar as contas da burguesia, em primeiro lugar. O governo não mostrou a mesma frugalidade quando ofereceu um resgate de €1.200 milhões à TAP. Nem quando emprestou €850 milhões ao Novo Banco, que entretanto divulgou prejuízos superiores a €1000 milhões pelo quarto ano consecutivo e já pediu um novo empréstimo, ao qual o governo vai prontamente atender.

A pandemia também demonstrou as gritantes fragilidades do SNS, sujeito a décadas de subfinanciamento crónico que diminuíram a sua capacidade para lidar com uma crise sanitária desta magnitude. Um estudo concluiu que esta persistente erosão do serviço de saúde pública, que estava com falta de importantes recursos humanos e materiais, foi a causa de mortes evitáveis durante esta emergência.

O vírus expôs o capitalismo como a verdadeira doença. Os próximos anos vão ser impiedosos para os trabalhadores portugueses e para os mais pobres. O custo de vida vai aumentar. Os trabalhadores vão novamente ser chamados a equilibrar os números do sistema capitalista após ser disparada a “bazuca” europeia de €1.8 biliões. A austeridade, que nunca tinha acabado em Portugal, vai prolongar-se durante esta década e mais além, degradando ainda mais os serviços públicos e as proteções sociais.

A economia é cada vez mais assente em salários baixos e trabalho precário, com menos oportunidades para os jovens. Os padrões de vida estarão novamente sob ataque. Já estamos a testemunhar ataques contra as condições de trabalho, com os trabalhadores da TAP a enfrentarem cortes salariais e despedimentos como parte do acordo de resgate com o governo. A Groundforce tem salários em atraso e poderá ser resgatada também. Foi denunciado que trabalhadores da construção civil são pressionados a não comunicarem sintomas da Covid-19 nem contatos com infetados.

Uma crise de liderança à esquerda

O PS esteve no governo durante mais tempo do que os partidos tradicionais da direita. Uma vez que o BE e o PCP viabilizaram um governo minoritário do PS desde 2015, existe uma percepção alargada de que tem sido principalmente a “esquerda” a governar o país desde 1975. Existe também a crença entre algumas secções da população de que a economia frágil do país, assim como os seus problemas estruturais crónicos, são culpa da esquerda. A palavra “socialismo”, outrora popular, perdeu todo o seu significado devido ao comportamento dos partidos de esquerda e é frequentemente usada como um insulto pela direita.

O principal problema para os partidos da esquerda é o facto de seguirem uma linha reformista tépida. Desde 2015, a prioridade do BE e do PCP tem sido evitar a ameaça de um novo governo de direita. Isto levou-os a apoiar o PS e as suas políticas contra a classe trabalhadora. Os dois partidos tiveram que concordar com concessões significativas impostas pelo PS, viabilizando orçamentos de austeridade ano após ano.

Ter como prioridade evitar uma nova coligação de direita pode ter feito sentido em 2015. Mas os sucessivos escândalos e promessas quebradas por parte do PS – particularmente as cativações de verbas orçamentadas – significam que o apoio quase inabalável oferecido pelo BE e pelo PCP faz com que estes dois partidos tenham ficado tão desacreditados quanto o PS. Num exemplo bem demonstrativo dos perigos do reformismo, muitos dos seus eleitores passaram a considerá-los como partidos do sistema. De facto, tanto o BE como o PCP foram penalizados nas legislativas de 2019.

Apoiar o PS faça chuva ou faça sol não impediu o crescimento da direita radical. Na verdade, a falta de uma alternativa clara de esquerda permitiu que a extrema-direita se apresentasse como a única voz contra o sistema. O BE e o PCP arriscam agora perder ainda mais deputados nas próximas legislativas, no seguimento das perdas em 2019. Recentemente, a direita voltou ao poder nos Açores após as negociações entre a direita tradicional e partidos mais pequenos (incluindo o Chega e a IL) que permitiram que o PSD formasse um governo regional minoritário. Se os partidos de esquerda continuarem a seguir uma linha reformista, podemos muito bem ver desenvolvimentos semelhantes a nível nacional no futuro.

Uma alienação crescente

As eleições presidenciais do início deste ano ilustraram bem o processo de alienação que está a acontecer perante a falta de uma alternativa clara. Embora Marcelo Rebelo de Sousa tenha sido reeleito com um resultado esmagador de 60.7%, o verdadeiro vencedor foi a opção “nenhuma das anteriores”, com uma abstenção histórica de 60.76%. Os governantes tentaram justificar esta participação tão baixa com a pandemia. Mas para isso temos de ignorar os dados de todas as outras eleições das últimas décadas, que mostram que abstenções altas são um problema crónico no sistema eleitoral português.

A abstenção tem aumentado consistentemente em todo o tipo de eleições ao longo das últimas décadas – legislativas, presidenciais, autárquicas e europeias. Por exemplo, foi de 51.4% nas últimas eleições legislativas e 69.3% nas últimas eleições europeias. A abstenção é maior entre pessoas no nível de rendimento mais baixo e particularmente entre os jovens. Estas pessoas rejeitam a política como a esfera de uma elite corrupta e privilegiada.

A abstenção não é a única expressão deste descontentamento. Muitos estão a procurar respostas fora do sistema tradicional. De facto, paralelamente ao aumento da abstenção, Portugal tem visto um crescimento do partido de extrema-direita Chega. O seu líder, o demagogo André Ventura, obteve o terceiro lugar nas presidenciais com 11.9% dos votos. Uma sondagem recente coloca o Chega em terceiro lugar em futuras legislativas com 7.3%. Isto é uma subida em relação aos 1.29% que o Chega obteve nas legislativas de 2019.

É compreensível que o crescimento do Chega tenha causado alguma preocupação entre trabalhadores e jovens de esquerda. O partido é conhecido pelo seu discurso inflamado, atacando as comunidades negra e cigana e efetivamente propondo derrubar a democracia e instaurar uma “Quarta República”.

No entanto, é preciso manter as coisas em perspectiva. O crescimento (modesto) do Chega tem acontecido principalmente à custa dos partidos de direita do sistema, o PSD e o CDS. Estes dois partidos formaram a coligação pouco popular de 2011-15, que infligiu aos trabalhadores portugueses um insensível programa de austeridade. Têm estado em crise desde então. O crescimento do Chega mostra, por um lado, que muitos conservadores estão a abandonar a direita tradicional. Por outro lado, é uma maneira desorientada que algumas camadas da classe trabalhadora encontraram para ripostar contra o sistema.

O crescimento do Chega não significa que o país esteja a virar à direita. É um sinal de polarização e da crise da esquerda.

Milhares de pessoas por todo o país juntaram-se aos protestos Black Lives Matter em 2020, realçando a existência de racismo estrutural em Portugal e exigindo o fim da violência policial contra comunidades negras empobrecidas, tal como as da Amadora e do Bairro da Jamaica. Exatamente dois meses após a morte de George Floyd nos Estados Unidos, Bruno Candé, um ator negro português, foi morto a tiro em plena luz do dia por um antigo combatente na guerra colonial. Este homicídio motivado por ódio racial ilustrou aquilo que os manifestantes vinham dizendo e desencadeou novos protestos no país.

Mas nada disto tem encontrado expressão adequada. Apesar de uma viragem à esquerda dentro dos movimentos de trabalhadores e estudantes, estes ainda não são representados por nenhum partido político. O BE e o PCP têm sido uma oposição meramente vocal à extrema-direita, mas não têm conseguido apresentar uma verdadeira alternativa para a classe trabalhadora.

Este país não é para a direita

Apesar de modesto, o crescimento da extrema-direita chocou muitos eleitores de esquerda. Portugal era considerado um país onde a direita estava desacreditada e onde dificilmente seria capaz de obter ganhos significativos.

No rescaldo da revolução do 25 de Abril de 1974, após 4 décadas de uma ditadura de direita, as massas tinham conquistado uma posição forte para os partidos de esquerda. Um partido que fosse considerado contrarrevolucionário ou que tivesse ligações explícitas ao antigo regime não teria qualquer base de apoio.

A constituição original de 1976 tinha um compromisso explícito para com o socialismo e a nacionalização e socialização dos meios de produção, que foi entretanto removido após revisões constitucionais promovidas pelos partidos do sistema. Os sociais-democratas do PS adotaram o nome de “partido socialista” em 1973 e ganharam as eleições de 1975 porque tinham um discurso mais radical do que o do PCP.

O maior partido da direita, o PSD, chama-se “partido social-democrata” e nas suas origens apresentou-se como um partido de esquerda moderada. O partido de direita conservadora cristã, o CDS, tem o nome caricato de “centro democrático social”. Até recentemente, era o partido mais à direita, onde se encontrava a maioria dos ultra-conservadores e simpatizantes do fascismo.

Estas convenções confusas para os nomes dos partidos atestam a forma como os partidos do sistema ganharam terreno. A direita nunca se autodenominou de forma precisa. Contudo, ao longo das décadas, o comportamento do PS no poder arrastou o nome do ‘socialismo’ e da ‘esquerda’ pela lama e fez com que os partidos de direita saíssem do armário. O crescimento de movimentos populistas de direita por todo o mundo em anos recentes também foi interpretado pela direita portuguesa como um sinal da sua legitimidade.

É necessária uma verdadeira alternativa

O crescimento da extrema-direita é uma manifestação, não obstante distorcida e muito reacionária, de uma insatisfação generalizada com o sistema, que por sua vez resulta de ressentimentos legítimos. A crescente abstenção eleitoral é outra expressão deste descontentamento. Muitas destas pessoas receberiam de bom grado uma alternativa capaz de responder à profunda crise social de forma clara e eficaz.

Além disso, há uma vasta camada de trabalhadores e jovens que procuram ativamente respostas junto da esquerda, mas que até ao momento não têm sido representados adequadamente por esses partidos. É por isso necessário que os Marxistas em Portugal apresentem à classe trabalhadora uma verdadeira alternativa, construindo o fator subjetivo a partir de uma análise sistemática das condições objetivas vivenciadas pelos trabalhadores.

Apenas um programa determinadamente socialista pode responder aos problemas com que os trabalhadores e os jovens portugueses se deparam:

  • Por uma economia socialista planeada democraticamente e sob o controlo dos trabalhadores!
  • Pela nacionalização sem compensação do setor privado da saúde para aumentar os recursos ao dispor do SNS e mitigar o seu subfinanciamento crónico, permitindo uma resposta eficaz à atual emergência!
  • Acabar com a educação privada, por um sistema educativo totalmente financiado pelo Estado para eliminar a desigualdade de oportunidades educativas!
  • Pela nacionalização das grandes empresas sob a posse dos seus trabalhadores – rejeitando acordos de resgate punitivos para estes, como no caso da TAP e da Groundforce!
  • Acabar com o trabalho perigoso! Pela criação de comités de trabalhadores por toda a economia, dando-lhes poder de decisão no local de trabalho. São os trabalhadores que devem decidir se, quando e como voltar ao trabalho de forma segura durante esta pandemia!
  • Pela expropriação das propriedades dos grandes senhorios para que a atual crise da habitação possa ser resolvida com um plano democrático que satisfaça as necessidades de todos, incluindo um limite máximo para as rendas que dependa do rendimento do agregado familiar!
  • Pelo financiamento de programas sociais e ambientais urgentes, assim como de outros investimentos estruturais necessários, através da expropriação das fortunas dos ricos e de todo o setor financeiro e bancário!

Estas exigências vão certamente encontrar apoio entre os trabalhadores de Portugal, fustigados por vários anos de austeridade e ataques por parte da classe governativa. Com uma organização capaz de liderar os movimentos de trabalhadores e estudantes no país, o potencial para uma transformação socialista da sociedade pode ser realizado durante as nossas vidas.

PUBLICADO EM MARXIST.COM