Presidiários: vítimas do sistema ou merecedores do sofrimento? Uma alternativa é necessária

Muitos debates vêm ocorrendo sobre como alguém pode tornar-se criminoso no Brasil e sobre o que fazer com aqueles que se encontram no sistema prisional e envolvem-se em atos como os da guerra de facções criminosas.

Decorrente dos últimos acontecimentos envolvendo os presídios brasileiros, muitos debates vêm ocorrendo sobre como alguém pode tornar-se criminoso no Brasil e sobre o que fazer com aqueles que se encontram no sistema prisional e envolvem-se em atos bárbaros como os que estamos vendo a partir da guerra de facções criminosas. Enquanto uns afirmam que a morte de centenas de presidiários na guerra de facções funciona como uma limpeza social dos indesejados, outros argumentam que o processo de criação do criminoso é resultado de um sistema que cria monstro por seu próprio mecanismo injusto, e entendem que os presidiários precisam de ressocialização e não de torturas, já que torturar agravaria o problema.

Diante desse debate que comporta múltiplos pontos de vista, iremos criar dois grupos gerais de opiniões para depois direcionar uma crítica a ambos, procurando construir um ponto de vista alternativo que saia do pensamento binário dividido entre “presidiário como monstro” e “presidiário como vítima”.

Grupo antidemocrático

De um lado, que parece compor grande parte da população e chama atenção nas redes sociais pelo ódio, defende-se tratamento desumano ou pena de morte para estupradores, assassinos, assaltantes, traficantes, sequestradores, e todo o tipo de pessoas que cometem atos frios em troca de benefícios imediatos. Afinal, mesmo sabendo que se pode destruir famílias, patrimônios, corpos e vidas para se conseguir o que quer, há sempre a possibilidade de escolha entre seguir o caminho certo e o caminho errado. Logo, para evitar que mais pessoas sofram na mão daqueles que escolhem o caminho errado, é preciso de uma punição exemplar que afugente esse tipo de gente do crime ou eliminar essas pessoas do mundo para que nunca mais machuquem alguém – e é aí que as centenas de morte dos presídios podem funcionar muito bem. Além disso, punir de maneira bárbara constituiria uma forma de vingança que a sociedade impõe àquele que fazem a escolha errada no lugar da certa.

Grupo democrático

Do outro lado, com uma visão humanista, afirma-se que os presidiários foram criados ao longo de sua vida em espaços e lugares que não os deram oportunidades para que desenvolvessem suas capacidades humanas como solidariedade, companheirismo, amor ao próximo, etc. Portanto, um presidiário é aquele que foi levado ao crime por ter tido seu horizonte cada vez mais estreitado pelas diversas pancadas que a vida lhe deu. Excluído de educação de qualidade, moradia digna, boa alimentação, trabalho, entre outras necessidades básicas, a escolha errada então é mais um ato de desespero do que uma opção moral ou operação racional. Como vítima, portanto, o presidiário não teria condições psíquicas para fazer a escolha entre certo e errado, bem e mal, e agiria por um impulso monstruoso que retirou dele suas potencialidades humanas. Como solução para essa realidade esse segundo grupo geral de opinião vê que a sociedade precisa ser mais igualitária para não formar mais vítimas, e propõe que os presídios devem funcionar como espaço de ressocialização, já que a tortura pioraria o que já é ruim.

O que há de comum em ambos

Nos dois grupos de opiniões opostas há a predominância de uma lógica binária: certo e errado, humano e desumano, moral e imoral. Outra característica dessa oposição é a naturalização do que seria um modelo de cidadão. Numa primeira naturalização, sempre existirá a necessidade de vigilância por um poder estatal e hierárquico de controle. Em uma segunda, é permanente uma diferença entre o presidiário e o cidadão normal, sendo este o modelo de civilidade que deve ser imposto ou pela tortura ou pela ressocialização àquele que se desvia. O mundo, portanto, é uma máquina que deve ser ajustada ou em nível global para que não se gere mais vítimas que deixem de ser cidadãos normais, ou a nível individual para que monstros não causem mais sofrimento aos cidadãos normais.

Quando existe a ideia de um cidadão normal como modelo que deve ser protegido ou buscado, por baixo dela afirma-se que o capitalismo ainda funciona para a maioria, e que ele deve ser aperfeiçoado. Com isso, a permanência da grande propriedade, a existência de um Estado que serve para que o interesse da burguesia seja atendido, a maioria da população vivendo apenas para conseguir reproduzir sua própria vida e de sua família enquanto gera lucros bilionários aos patrões, entre muitas outras manifestações desse sistema, não se relacionam com a necessidade de vigiar e punir.

Confrontam-se então setores da população antidemocráticos e democráticos. O primeiro quer tratar criminosos da lei sob custódia do Estado cometendo crimes de tortura e a pena de morte. O segundo vê que a expansão da democracia (leia-se democracia burguesa) através do acesso da população à educação e a condições de vida dignas pode erradicar o desemprego, a fome, e a miséria, o que com o tempo traria a extinção das prisões, assim como a ressocialização dos presos. Um grupo acusa o outro de ser o entrave para a solução do problema do sistema prisional. Por um acaso, enquanto essa troca de acusações acontece sob o manto da ideologia burguesa, milhares de “cidadãos normais” fora das prisões, economicamente viáveis para serem “cidadãos normais”, vivem uma vida de conto de fadas?

Encarceramento de massas

Segundo dados disponibilizados pelo InfoPen do Ministério da Justiça em 2013, no Brasil cerca de 40% dos presos encontram-se sob custódia, ou seja, não foram julgados e não podem ser considerados culpados. No Amazonas esse número chega a 70%. São cerca de 581 mil pessoas encarceradas com déficit de vagas que supera 230 mil. Uma das justiças mais caras do mundo, a brasileira, não consegue dar conta de tantos potenciais criminosos. Na dúvida, mandam os suspeitos também para dentro dos presídios como medida de precaução para proteger a lei e a ordem.

Vivemos tempos de política de encarceramento de massas. O que isso quer dizer? Que há a falência do acesso ao próprio modelo de cidadão normal pleno no capitalismo. Os moradores das cidades, quando não sublimam seu sofrimento por saídas “normais”, dentro da lei, como as fornecidas pelo entretenimento, álcool, pelas drogas psiquiátricas, etc., vão parar dentro das prisões. E cada dia mais os inadaptados revoltam-se.

A revolta do crime organizado não aponta uma saída

Os indivíduos revoltados que acabam nas prisões hoje não apresentam uma saída universalizante, ou seja, que englobe a sociedade como um todo. Pelo contrário, debatem-se por quererem participar do modo de produção atual, envolvem-se no crime para que com o lucro das operações ilegais possam ter acesso às mercadorias que o capitalismo produz.

No narcotráfico, por exemplo, o mercado não é regulado pela mão invisível da concorrência, mas pela mão que segura o fuzil. Nestes casos, a participação em grupos criminosos como facções de narcotraficantes, além de dinheiro, dá um sentido e uma unidade à existência que não é mais fornecida por instituições tradicionais como família e religião, muito menos pelo trabalho, visto apenas como uma obrigação que em troca mal garante a existência. Fazer parte de uma sigla ou organização criminosa é uma resposta que pode ser consciente ou inconsciente à falência das instituições tradicionais burguesas. Mas de modo geral, da maneira que são organizadas no Brasil, não fazem nem cócegas ao sistema. Pelo contrário, as facções e as guerras entre elas é mais um pretexto para o aumento da repressão e vigilância sob setores mais pauperizados da população, que sofrem de todo o tipo de arbitrariedade pelas forças policiais.

Os moradores da favela, negros e despossuídos, ou seja, os maiores candidatos às funções operárias e subalternas no trabalho, são os mais atingidos pela política de encarceramento. Essas populações hoje não conseguem canalizar sua revolta para a mudança de uma estrutura que claramente os oprime. Veem-se como impotentes. A polícia, antidemocrática por natureza e histórica defensora da grande propriedade, invade frequentemente as casas nas favelas sem respeitar a própria lei que diz defender em busca dos “anormais”, dos “bandidos”, seja para efetivamente encontrá-los, seja para lembrar das consequências de quem seguir o caminho da revolta.

A religião e a saída reacionária

As igrejas, principalmente as protestantes, hoje expandem seu poder político no Brasil em velocidade recorde na medida em que a pobreza, a repressão e a miséria aumentam. Com o Estado cada vez mais impotente para combater o pauperismo característico causado pela crise do capitalismo, concessões e patrocínios às igrejas fazem-nas funcionar como terceiro setor. Esse fica responsável por suprir as carências do assistencialismo estatal. Não é coincidência o crescimento das igrejas, mas uma alternativa reacionária que visa garantir a contenção da revolta das periferias e uma condução que evite saídas anticapitalistas.

 A miséria da vida terrena alimenta a esperança da vida eterna do espírito após a morte. Além disso, na terra, a luta contra o inimigo causador de todo o mal, o diabo, passa a trazer um senso de identidade ao oprimido e uma missão em vida pela busca da salvação espiritual de outros irmãos.

Os membros das comunidades religiosas têm como base a solidariedade, rituais, organização e hierarquias. Apoiam-se assim na busca por emprego, em auxilio psicológico no tratamento das mais variadas enfermidades que vão desde problemas amorosos até a dependência de drogas. O controle e a vigilância internos entre os irmãos fazem-os funcionar como sentinelas gratuitos da ordem e da preservação de uma saúde individual que possibilite uma sobrevida aos indivíduos dentro dos padrões civilizados do sistema.

Em um interessante projeto religioso para as populações pobres de conservação e salvação da ordem existente, não são infringidas as leis da grande propriedade. O tratamento da religião para a grande propriedade oscila entre reformismo e reacionarismo. Hoje com a disputa do poder político dentro da institucionalidade burguesa, a religião se apresenta como ponto de apoio para legitimar e reconstruir a família, reformar o Estado e propor novos princípios para a propriedade. Nenhuma das propostas atinge o controle do capital sobre o trabalho.

Quanto mais opções de reforma, antidemocráticas ou democráticas, para o problema da criminalidade nas grandes cidades, mais legitimamos a repressão das populações pobres e miseráveis pelo Estado e suas forças policiais.

A luta deve ser contra a totalidade do sistema

O sistema é irreformável pois a reforma gera o inverso do efeito desejado. É como uma represa mantida em operação sob remendos. Não é possível remendá-lo para sempre, tão pouco podemos acreditar que os remendos resolverão o problema. Seja pela via antidemocrática ou pela via democrática, ambas as saídas são ineficazes.

A história da humanidade já mostrou que o medo não evita a criação dos monstros, mas aumenta a produção desses. Da mesma maneira, se a cadeia pudesse funcionar como ambiente de ressocialização e de inclusão do criminoso no mundo do trabalho, em poucos anos ser preso tornar-se-ia a solução mais eficaz para o problema do desemprego e da miséria.

É preciso construir um movimento político ofensivo capaz de minar as estruturas que estão levando a humanidade para um estado de barbárie. É preciso construir uma alternativa socialista forte e capaz de ajudar ativamente a classe trabalhadora em um momento revolucionário convulsivo, que será o inevitável desfecho do aumento da miséria e aprofundamento da crise capitalista no Brasil.

As massas não conseguem mudar a sociedade de maneira espontânea. Portanto, é preciso criar um partido operário revolucionário que não seja mera adição de individualidades, mas que seja capaz de dirigir de forma revolucionária os acontecimentos quando as massas intervierem diretamente conscientes de que a tentativa de salvar as antigas instituições ou de dar sobrevida ao sistema está levando todos à barbárie.

Presidiários numa revolução

Atualmente os presidiários e suas ações são pretextos para justificar o aparato repressivo sob as populações pobres. Em um momento de crise revolucionária as regras podem ser alteradas, e ao invés de servir de pretexto indireto, presidiários podem se tornar força direta.

Conforme exista um partido operário revolucionário capaz de dirigir as reivindicações das massas apresentando uma alternativa de poder operário que unifique os oprimidos em torno de algumas bandeiras comuns, como aconteceu no lema “paz, pão e terra: todo poder aos soviets” na Revolução Russa, o aparato político-militar burguês se dirigirá contra essa organização.

Se necessário, os indesejáveis presidiários podem se tornar desejáveis na construção de forças paramilitares reacionárias pelo poder burguês, essas que surgem sempre em situações de acirramento da luta de classes [1]. E aí que surgirá o divisor de águas, e estes presidiários precisarão escolher um lado na luta de classes. Ou se juntarão ao novo poder que estará sendo construído sob liderança da classe trabalhadora, ou se juntarão como mercenários ao antigo em troca de ofertas e promessas da tal sonhada “inclusão social” dentro de um capitalismo restaurado – segunda opção essa que provavelmente se apresentará como a mais tentadora, e que exigirá respostas contundentes das forças revolucionárias.

Xeque-mate

O sistema presidiário no Brasil está em xeque-mate. Não há solução imediata nem solução a longo prazo dentro do sistema. A tendência é o problema aumentar em progressão geométrica até ser concreta uma saída revolucionária para a crise do capitalismo. Enquanto isso é preciso ser paciente e não aderir à nenhuma das duas opções reformistas que se apresentam de maneira fácil nesse momento de aumento dos debates em torno das rebeliões nos presídios em todo o país.

É preciso construir uma organização revolucionária que coloque o sistema em xeque-mate!

[1]Por todo o mundo temos vários exemplos de forças paramilitares reacionárias, formadas ou não por ex-presidiários: Patria y Liberdad (Chile), Schutzstaffel (Alemanha), Camisas Negras (Itália), Camisas Verdes (Brasil), Autodefesas Unidas da Colômbia (Colômbia), entre muitas outros.